Martha Maria Gomes é escritora e professora de Língua Portuguesa.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo de forma bem lenta. Vou despertando aos poucos. Em três dias da semana trabalho em uma biblioteca escolar pela manhã, o que é muito prazeroso, mas que me custa menos umas horas de sono. Depois que me levanto, porém, não paro minhas atividades até dormir novamente. Tenho outro emprego, um tanto mais burocrático, mas em um ambiente bem harmonioso. Já nos finais de semana, me dou ao luxo de fazer algumas leituras que estão em atraso. Leio livros de ficção e teóricos, revistas culturais, de papel ou pela internet. Acho importante não se afastar do mundo das ideias.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Já percebi que funciono melhor à tarde, pelo motivo, já citado, de que me desperto aos poucos. Quanto a um ritual para a escrita, não existe para mim. Existe uma preparação, um cuidado, quando há prazos. Fora isso, a escrita flui em qualquer horário, lugar ou momento. Acho que seria entediante ter que cumprir uma rotina de escrita literária, que é a que desenvolvo melhor. Creio que a escrita literária parte sempre de uma provocação. Algo que vemos, sabemos, uma situação ao nosso redor, uma imagem, um estranhamento, há infinitas possibilidades.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo quando sou tomada pela arte. Quando algo não cabe mais em mim. Posso escrever uma frase profunda em um dia que me levará a um texto maior que surgirá em outros momentos. Acho que meta com poeta é mais uma rima a uma combinação. A palavra meta me passa algo rígido que não combina com os momentos em que extravaso, como uma catarse.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
As notas vêm, muitas vezes, de maneira aleatória. Por mais que saibamos que há uma tendência no texto literário de uma escrita livre, não necessariamente sujeita ao léxico, à norma, há uma preocupação na organização de um texto. Penso que deve haver um mínimo de compreensão, ainda que a compreensão seja subjetiva. Há uma preocupação da minha parte com o estético. Isso também é uma forma de respeitar quem escreve e quem lê. Um texto precisa ser lapidado para ser apresentado de forma que atraia o leitor.
Minha escrita caminha na contramão desta pergunta. Vou da escrita à pesquisa para depois retornar à escrita. A não ser que seja algo encomendado, não consigo pensar em uma pesquisa antes da escrita nos meus textos literários.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho medo, pois não trabalho com prazos. Não vivo da escrita. Respeito quem vive dela. A escrita, para mim, é um transbordar, uma necessidade da alma. Mas toparia um projeto longo, desde que houvesse respeito à minha forma de escrever, minhas experimentações.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende de onde escrevo. Costumo postar textos na internet, por achar que precisa ser postado naquele dia, em determinada situação. Em geral são crônicas. Depois que posto, vou consertando. Não acho que isso seja bom, mas é mais forte do que eu.
No caso de textos que irão ser publicados, tenho mais cuidado. Mostro para autores conhecidos meus e não tenho problemas em aceitar sugestões. Acho difícil um texto nascer pronto, em uma tacada só. Se não for algo emergencial, deixo na gaveta, vez ou outra volto ao texto, com outro olhar, mais amadurecida.
Gosto de participar de Oficinas de Escrita Criativa. Sempre aprendo. A escritora Ninfa Parreiras, hoje minha amiga, faz excelentes oficinas onde aprendemos a trabalhar melhor o texto. Atualmente tenho uma visão melhor de “economia” de certas classes gramaticais, algumas vezes desnecessárias em muitos poemas, por exemplo. Hoje posso dizer que não aprecio textos clichês. Fiquei mais seletiva em relação a textos e autores. Mas isso vem com o tempo, com o ouvir, com leituras de qualidade (isso dá outra discussão).
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo com o que estiver mais perto. Muitas vezes, à noite, me vem algo à mente e o que está mais perto de mim é o celular. Faço as anotações nele mesmo. Mas posso estar em um bar e escrever em um guardanapo. Tanto faz. O importante é salvar a ideia para que ela não se perca. Gosto muito do livro de papel, mas creio que quem gosta de ler precisa ir se acostumando com outros suportes. A tecnologia está aí e é um caminho sem volta.
Participei de um concurso de contos da plataforma Educoteca, da Educopédia, que faz parte da Prefeitura do Rio. O prêmio era ter o livro publicado de forma digital. Em momento algum pensei na faixa etária do leitor. Ganhei o concurso e qual foi minha surpresa quando vi que fizeram de uma forma que atingisse o público infantil e juvenil, com muitas ilustrações e recursos lúdicos. A literatura é assim. Como bem diz Andruetto, não cabe adjetivá-la. Pode fazer sentido para muitos, independentemente da idade.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acho fundamental estar sempre lendo alguma coisa. O que era hábito já virou prazer. Reconheço que com a correria do dia-a-dia, como escreveu Daniel Pennac, o tempo para ler é sempre um tempo roubado. Muitas vezes é a sensação que tenho. Mas precisamos alargar nossos horizontes, trazer o irreal para nossas vidas para respirarmos um pouco de ficção neste mundo tão violento. Ao escrevermos podemos dialogar com outros autores. Tudo é possível.
A leitura e a escrita nos humanizam, nos tornam seres melhores. Está bem, essa frase anterior é clichê, mas é verdade. Além de ler, acho importante, para um processo criativo, estar atento ao que está ao nosso redor. Nos detalhes. Nas coisas “desimportantes”, como bem focava Manoel de Barros. Isso enriquece muito o texto literário.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não escreveria o óbvio, nem nada que tivesse uma função de ensinar algo. Quanto menos didatizante um texto, mais literário é. Tiremos tudo que é utilitário de um texto e o que resta pode ser literatura. A literatura é livre para ser o que quiser. Pode emocionar ou pode ser um soco no estômago.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho um livro na gaveta que fala das memórias da minha família, ou melhor, das desmemórias, já que o Alzheimer acometeu boa parte dela. Vez ou outra acrescento um texto, poema ou prosa-poética, assim mesmo, em pedaços, nada linear. Um dia pretendo publicá-lo. Como o mercado editorial está difícil, talvez o faça de forma independente. O importante é tocar os leitores. Gostaria de ler um livro, mas ele já existe: Grande Sertões: Veredas, de Guimarães Rosa. Começo e paro, intercalo com outras leituras, mas um dia retorno a ele e acabo. É maravilhoso!