Marlos Degani é poeta.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Escrever é um ofício como qualquer outro. Um engenheiro se levanta para o trabalho; um médico também. Acontece que, no caso do poeta, a única diferença é que NÃO EXISTE nem um poeta que viva somente de poesia. Por quê? Porque poesia não dá dinheiro. Não vende. Nem aqui no Brasil e nem em lugar algum do mundo. Desafio a quem possa citar um único poeta que sobreviva ou tenha sobrevivido somente de seus livros (e que não seja também tradutor ou crítico literário ou conferencista ou congêneres) em todos os tempos. Portanto, no meu caso, eu acordo cedo para trabalhar na iniciativa privada. As atividades de poeta somente de noite. E nos finais de semana. Não escrevo ficção, nem letra de música. Somente poemas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não há ritual algum. Como disse, escrever é um ofício como outro qualquer. O poema é um artefato inquieto. Vivo. Conceitualmente nunca termina, porque o tempo o faz diferente e sempre mutável. É um processo contínuo e, por isso, na medida que o poeta desenvolve a sua dicção poética, já que escreve sempre o mesmo poema (mesmo que não saiba disso), os temas ou insights surgem independentemente de rituais: vêm de sua sintonia com o idioma e com seus princípios ou conceitos artísticos. O ditado popular já é bem claro: o hábito faz o monge.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo um poema de cada vez. Não é bom afrontar o poema com a pressa. É necessário um certo distanciamento emocional do seu produto artístico; diminuir os efeitos umbilicais. Gosto de um hiato de pelo menos algumas boas horas ou dias. Sempre, invariavelmente, há mudanças no texto. Por incrível que pareça, tem gente que acha que essas mudanças corrompem a “originalidade” ou a “pureza” do produto inicial. Uma grande bobagem. Creio que o poeta deve facilitar a vida do leitor (o que não quer dizer adivinhar as preferências, até porque o artista não tem esse poder) e escrever um poema mais simples possível. Não simplório. Simples. E a simplicidade é algo dificílimo de se alcançar.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
No meu caso o processo de escrita reúne várias vertentes ao mesmo tempo subjetivas e objetivas. Um poema pode partir de um verso, de um mote específico ou até mesmo de um título. Ferreira Gullar escreveu certa vez que muitos poemas dele partiram do espanto; da volúpia subjetiva de um momento que o trouxe certo deslocamento em relação à realidade. Certa vez, ele continua, disse que levantou-se do sofá para atender um telefonema e seus ossos estalaram; daí teve a ideia de um poema (REFLEXÃO SOBRE O OSSO DA MINHA PERNA). Na verdade, pessoalmente, chamo isso de estranhamento, qual seja, algo que o subtrai de seu estado de normalidade; o retira de sua plataforma segura; que o move de ângulo. Essa tese serve de forte estrutura para o formalismo russo em sua tentativa de definir literatura (assim como em várias outras escolas de teoria literária). Para os formalistas russos, literatura é tudo aquilo que movimenta o ser humano de seu estado normal por conta de algum tipo de estranhamento causado por uma leitura, por algum gesto de alguém num ponto de ônibus ou por qualquer ato alienígena à sua rotina deliberada. Portanto, subjetivamente, um poema pode começar a partir de vários fatores do cotidiano e também de filmes, matérias de TV, de uma plantinha que nasce no concreto ou desse espanto ocasional. Nasce também da continuidade ou até mesmo a partir da obsessão de temas sensíveis ao poeta. Por exemplo, no caso do meu mestre Ivan Junqueira (1934/2014): muitos de seus poemas nasceram da reflexão sobre a morte, os mortos e interrogações de pós-vida, além de outras questões sobre o próprio poema, que o perseguiram desde o livro de estreia chamado “ Os Mortos”. Ivan Junqueira representa para este poeta o ápice da genialidade da criação artística. De volta ao meu processo, há também os aspectos técnicos. Pessoalmente não gosto de repetir palavras dentro de um mesmo poema, exceto se tudo conspirar a favor da clareza ou de uma linha enfática; evito o abuso de pronomes de quaisquer tipos, conjunções, preposições, artigos definidos e indefinidos e tenho verdadeiro horror ao gerundismo que empobrece demasiada e obrigatoriamente o produto final de todos os tipos de literatura. Há também uma questão sobre o uso das rimas. Tenho forte tendência a escrever com a utilização de rima, seja ela toante ou não. Aprendi que o uso da rima tem de estar, obrigatoriamente, a serviço do poema. E nunca ao contrário, sob pena de tornar o produto artificial e impossível de ser considerado de qualidade. Hoje em dia estou na fase de escrever em versos livres, mas durante anos fui adepto dos penta, hexa, hepta, octo e, claro, dos decassílabos dos sonetos. Era obcecado por essa matemática que sempre me atraiu sobremaneira. De forma diferente dos grandes poetas que escreveram sob essa condição (e que desprezavam na contagem silábica dos versos — onde a última sílaba tônica de cada verso vale como parte final desta contagem — as preposições e cacos em geral), sempre contabilizava todas as sílabas sem exceção. Num dado momento, por pura falta de talento, essa mania atrapalhou um pouco a minha espontaneidade poética. E, naturalmente, resolvi mudar. Não pensem que isso foi fácil, mas consegui, digamos assim, me libertar dessa matemática e passei a escrever versos livres. Talvez um dia, quando estiver mais preparado, volte com a métrica pré-definida e consiga, mesmo sob esta condição, escrever poemas de qualidade.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não existe essa questão de trava. O poema é um processo contínuo. Faz parte da sua vida e de seu cotidiano. O poeta é travestido de diversas mentiras que, de alguma forma, ganharam tons de verdade, quais sejam: que pertence a um outro planeta, que é especial, que é sensível, que tem outro tempo, que vive no mundo da lua, que precisa ter inspiração para escrever, que precisa estar num determinado lugar e outras bobagens. Evidentemente que há momentos de epifania, mas são raríssimos. O que importa mesmo é o compromisso de escrever, independentemente dessas mentiras e tolices que tatuam na alma dos poetas. Ser poeta é uma profissão como outra qualquer. Infelizmente não é remunerada de maneira usual, como em outras profissões e eu entendo bem o porquê: porque a poesia possui uma linguagem muita vez hermética e não são todos que se identificam com ela. Conheço altíssimos intelectuais que nunca leram um poema sequer em suas vidas. Acho, portanto, absolutamente normal o fato da poesia ser uma forma de literatura pouco popular e pouco vendável, como os outros estilos feito romance, conto e novela.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Entendo a minha atividade de poeta como absolutamente solitária. Meu único juiz sou eu mesmo. E é simples explicar: como disse acima, o artista não possui receita de sucesso. Não tem (ainda bem que seja assim) o poder de adivinhar o que, no meu caso, o leitor deverá ou não gostar. Portanto, torna-se uma grande bobagem escrever pensando na satisfação do leitor. Eu escrevo para que, no meu julgamento, o poema saia como um produto honesto (escrito com correção, harmônico sob o ponto de vista estético, limpo em suas divisões, enfim, tudo o que estiver ao meu alcance para facilitar a vida do leitor) dentro da minha conjuntura e da maneira mais simples que eu possa conseguir. A partir do momento que, por exemplo, um poema meu é postado nas redes sociais, não tenho mais o domínio sobre ele, não tenho mais como prever as reações e as repercussões que vêm dele. O autor perde a propriedade. A questão da revisão é importantíssima, porque na minha concepção, se eu escrevo regido por uma gramática, devo respeitá-la integralmente. Jamais publicaria um livro sem contar com a revisão de um colega. É impossível que eu mesmo faça esse trabalho, primeiro por pura incompetência e, segundo, porque seria como um médico que tivesse de operar um ente querido. Tento ser o mais rígido possível quando o assunto é o respeito à Norma Culta, entretanto, aproveito essa questão para comentar que ser poeta não exige prerrogativa alguma. Nem mesmo a de saber escrever e ler. Patativa do Assaré está aí para não me deixar mentir. Qualquer pessoa que, por exemplo, escreva somente uma frase na vida e achar que aquilo seja um poema, tem a possibilidade legítima de se autodeclarar poeta e não tem ninguém que possua o direito de questioná-lo sobre isso. Ele é, de fato, um poeta. Talvez seja a única profissão no mundo em que nada é exigido para exercê-la. Nadica de nada. Como disse acima, nem ler e nem escrever é preciso para ser poeta. Outra questão: abomino determinadas pessoas que fazem chacota com outras por conta de deslizes na aplicação do idioma. Eu tenho a obrigação de respeitar as regras, porque exijo isso de mim mesmo espontaneamente, mas o que importa é o ato da comunicação. Se duas ou mais pessoas conseguem dialogar por escrito e têm o sentimento de compreensão e interlocução, nada mais importa.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho 51 anos e “passei a limpo” os meus primeiros poemas numa máquina de escrever de maletinha da Remington. Sempre tive cadernos e canetas de estimação. Copiava um poema duas mil vezes na mão, por conta das infinitas alterações. Com um pouco de amargura, mas convicto de que é um caminho sem volta, confesso que não pego numa caneta para escrever há muito tempo. Não há como abrir mão das facilidades de um editor de texto. Ainda mais no meu caso que tenho um texto inquieto, sujeito a mudanças constantes. Considero um luxo impagável ter a minha disposição um drive onde posso escrever, editar, armazenar e organizar a minha vida de poeta. Gostaria também de comentar algo que revolucionou a receptividade dos meus poemas na grande rede… Durante nove dos onze anos que faço parte do mundo das redes sociais, sempre postei meus poemas copiando-os do editor. Mal sabia que cada aparelho celular tem a sua configuração personalizada de cada usuário e percebi que meu poema era disponibilizado de maneira diferente para cada leitor, por conta dos tamanhos das fontes. Era pouco provável que a formatação que arduamente trabalhei fosse respeitada. Até que veio uma luz não sei de onde e passei a fotografar o meu poema e editá-lo no Google Fotos. E dessa forma pude garantir uma uniformidade em que todos os meus leitores pudessem ler o poema da maneira que eu o concebi: sem versos quebrados, sem espaçamento diferente e, também, oferecer ao leitor uma experiência mais fidedigna. Além disso, notei rapidamente que as fotos me ofereciam uma repercussão infinitamente maior e um número de interações que eu nunca poderia imaginar. Para ratificar o que escrevi acima em outra resposta: facilitei, dentro das minhas possibilidades, a vida do leitor. Ofereci para ele uma experiência mais agradável e, por consequência, mais intensa. A tecnologia é algo de que não abro mão. Hoje em dia você mesmo pode fazer o seu livro gratuitamente. É um caminho sem volta e cada vez mais independente para o poeta.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
O estado criativo de um poeta como eu vem da insistência na busca de respostas para perguntas que não as têm. Vem da teimosia. Da repetição exaustiva de temas. Da obsessão que tenta entender o que é o poema, a poesia e o poeta. Vem dessa metalinguagem de perguntas sem respostas fixas. Vem dessa interrogação. De mil interrogações. Faço perguntas ao poema. Tento assimilar o estado volátil da poesia que parece-se muito com a felicidade. Não somos felizes. Estamos em certos momentos com a felicidade. A mesma coisa acontece com a poesia. Ela está num determinado momento, numa nuance por vezes quase imperceptível. Ela não é. Ela está. Como disse em outro momento dessa entrevista, entendo que o poeta escreve o mesmo poema durante toda a vida. No meu caso tenho muito nítida essa percepção. Isso atua de maneira definitiva na manutenção do meu estado criativo: questionar de um jeito diferente a mesma coisa. Alternar os ângulos de visão da mesma pedra; tocá-la não somente com as mãos, mas com o plasma da alma. Saber e ter a convicção de que o poeta é fadado ao fracasso em sua busca infinita. Saber que o poema é um artefato vivo, sem ponto final que o encerre, pois o tempo sempre atuará na sua constituição que rejeita o fim estático. Será sempre melhor amanhã. Mais completo. Mais perto do que está sempre longe.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A intimidade com o idioma parece-se com um processo de lapidação. À medida que o tempo passa você passa a enxergar o que, antes, era praticamente invisível. Certamente isso ocorre em todas as profissões, mas no caso do poeta, essa limpeza no olhar é absolutamente subjetiva e pessoal. Tem pouco de técnica e muito de uma certa ampliação no seu olhar. No meu caso a ourivesaria das horas torna o processo de construção mais assertivo, se é que posso usar essa palavra. Perdemos o medo de pressionar a tecla Del. Ocorre uma certa conjunção que o faz mais corajoso. Mais eficaz. Menos tolo. Menos simplório. Mais simples. Se eu pudesse voltar aos meus primeiros poemas? Rasgaria todos sem piedade e fingiria que eles nunca existiram. Creio que somente poetas têm capacidade de analisar, digamos assim, o texto de outro poeta. Justamente por aquela questão da identificação com uma linguagem um tanto mais hermética e pessoalíssima. E o tempo dedicado ao poema ajuda muito nessa leitura.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho uma enorme vontade de escrever um livro de poemas baseados em alguns longas. Já fiz uma seleção de 50 filmes total e exclusivamente pessoal. Seria um poema para cada filme. No final um glossário com os detalhes e a ficha técnica de cada um deles. Tenho muita identificação com essas pontes entre diferentes tipos de expressão artística. Já fiz em conjunto com artistas plásticos, poemas para as suas telas. Esta interlocução é riquíssima e sempre é você quem aprende mais com a dicção de outro artista. Tenho certa obsessão pelas cores, pelo céu e seu constante ineditismo, pelo vento e aspectos naturais do cotidiano. Gosto de me relacionar com as calçadas, com auroras e ocasos. Sou um poeta do comum. Do sal e do alho do arroz e do feijão.