Marion Bach é advogada criminal, professora de Direito Penal e doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho uma rotina matinal porque, em verdade, não tenho rotina.
Há manhãs – que variam de semestre para semestre – em que dou aula (de Direito Penal) na graduação, logo cedo. Nesses dias, o tempo é apenas de acordar, tomar banho e sair. Como algo enquanto dirijo (que o Detran não me ouça!). Normalmente, um biscoito qualquer (que a nutricionista não me ouça!). E, para garantir o bom humor, escuto música no carro (meu carro é mais movido à música do que à gasolina).
Há manhãs, infelizmente raras, sem compromissos. Nesses dias, consigo acordar um pouco mais tarde e fico lendo e colocando meus e-mails em dia. De pijama.
Por fim, para que fique registrado o meu (pequeno, mas orgulhoso) lado atleta, duas manhãs por semana eu jogo tênis.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sinto que trabalho melhor em dois horários: pela manhã, se me concentrar logo após acordar, ou à noite. Para mim, o horário da tarde é o mais difícil em termos de concentração: compromissos demais, telefone tocando demais, distrações demais.
Não tenho um ritual específico de preparação para a escrita. Não me considero uma pessoa muito sistemática. Admito, porém, que há diferença se a escrita é técnica ou se é literária… Se a escrita é mais técnica – petições, pareceres, artigos, dissertação, tese -, prefiro o silêncio. Se a escrita é literária, consigo escrever em cafés, consigo escrever com música, consigo escrever com movimento ao redor… e inclusive é, por vezes, esse movimento que me traz alguma inspiração.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Todo dia eu escrevo algo. Mas confesso que isso não faz parte de um plano ou de uma meta. Escrevo todos os dias porque escrever faz parte de – praticamente – todas as minhas atividades profissionais e pessoais.
Escrevo, portanto, um pouco todos os dias.
Naturalmente, como todo advogado e acadêmico, trabalho com prazos. Por isso, há períodos (os malfadados períodos que antecedem os prazos fatais!) em que a escrita fica concentrada (eufemismo para “desesperada”…).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Pode não ser o mais adequado metodologicamente, mas eu não faço todas as leituras antes de começar a escrita. Eu leio, releio, penso, repenso, escrevo e reescrevo. Concomitantemente, de certo modo.
Essa pergunta, aos meus olhos, guarda uma relação mais direta com trabalhos acadêmicos, em especial os de longo prazo (monografias, dissertações e teses). Nesses casos, eu leio um tempo significativo, paro e penso. Me parece essencial um tempo de pensamento e amadurecimento das ideias. Inclusive, converso muito com amigos da área, na intenção de por à prova as minhas próprias ideias. Então, organizo os tópicos que pretendo desenvolver. A partir daí, vou (novamente) lendo e amadurecendo em mim o que li, bem como anotando no respectivo tópico as ideias e as obras que dele deverão constar. Quando canso de ler, eu escrevo. Volto a ler. Volto a escrever. Não obedeço, portanto, muitas regras metodológicas. Aliás, o amor que eu sinto por português e literatura é inversamente proporcional ao amor que sinto pela metodologia.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Tento levar tudo de uma forma leve. Sou muito feliz na profissão que escolhi, pois reúne tudo o que gosto e prezo: ler, escrever, aprender, argumentar, lidar com pessoas e lutar contra o que considero injusto. Tenho, por isso, muito prazer em participar dos projetos com os quais me envolvo e me nego a transformá-los em “problemas”.
Naturalmente, existem dias em que a inspiração nos escapa ou que o cansaço nos vence. Nessas horas me permito deixar tudo de lado e apenas ler um bom livro, comer um bom chocolate (deviam vender em farmácia, tamanha eficácia desse remédio…), ficar com minha família e com os meus bichos. Ou seja, “me perdoo” pelos dias em que não rendo o que havia planejado.
Dos itens mencionados – procrastinação, medo de não corresponder às expectativas e ansiedade de trabalhar em projetos longos -, é esse último o único que me incomoda. Sou imediatista. Projetos longos são verdadeiros testes de paciência. Mas descobri que intercalar projetos longos com outros projetos diferentes e mais curtos ajuda a controlar a (minha) ansiedade. Eis o motivo pelo qual sempre tenho vários projetos caminhando ao mesmo tempo…
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Durante o processo de escrita eu mexo bastante na construção de cada frase. Troco palavras. Mudo pontuação. Seja o texto técnico ou literário, eu presto atenção na construção do texto e procuro deixa-lo fácil e agradável de ser lido. Acredito que um texto sobre Direito Penal pode, sim, – e deve, aliás – contar com recursos típicos da literatura.
Se quero mostrar ao leitor, por exemplo, a importância do desenvolvimento histórico da dogmática penal, posso faze-lo contando que foram séculos e séculos de pesquisa. Décadas e décadas de estudo. Páginas e páginas escritas, desenvolvidas, repensadas, deletadas, reescritas. A forma insistente – repetitiva, árdua e prolongada – com que construo as frases pretende justamente convencer que o desenvolvimento histórico da dogmática possui essas mesmas características.
Se quero, por outro lado, demonstrar ao leitor – ou ao juiz – quão evidente é determinada prova, posso faze-lo brevemente: sim, porque a evidência torna dispensável toda e qualquer palavra. A forma curta – e cortante – como a frase foi construída, também pretende um impacto (o mesmo impacto que se busca com a tal prova).
Se é verdade que mexo muito na construção do texto durante a escrita, também é verdade que, depois de pronto, não reviso mais de uma vez. Mas mostro, sim, para outras pessoas. Confesso – e espero que isso sirva de atenuante – que menos por vontade de ser corrigida e mais por vaidade. Todo mundo tem uma vaidade para chamar de sua. Alguns gostam de ser admirados pela aparência física, outros pela voz afinada, outros pelo dom na cozinha. Eu gosto de ser lida.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
É uma típica relação de amor e ódio.
Petições, artigos e textos maiores, eu escrevo diretamente no computador. Mas não abro mão de fazer o “esqueleto”, ou seja, as anotações sobre os tópicos que quero desenvolver, bem como as ideias centrais, à mão. Eu adoro papel, caneta, lápis. Não posso ver uma papelaria… quero comprar tudo. Desde pequena e ainda hoje.
Uso agenda de papel. Na verdade, uso um “planner”. Agendo todos os meus compromissos, monto cronogramas, faço listas de tarefas do dia, da semana e do mês. Toda a minha organização e planejamento é feito assim, em estilo antigo!
Não nego que a tecnologia, por vezes, é uma aliada. O meu bloco de notas do celular, por exemplo, é repleto de anotações que faço quando tenho alguma ideia e não tenho papel e caneta à mão.
Por outro lado, me sinto um pouco escrava da tecnologia… fico nervosa de perceber que, sem computador, o trabalho fica limitado. Além disso, uso muito (mais do que deveria) o celular. E, o que é mais grave, perco um tempo considerável em redes sociais.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não sei dizer de onde exatamente vêm as minhas ideias. Sei dizer, porém, três coisas que nitidamente fomentam a minha criatividade.
A primeira – e óbvia: a leitura. Eu leio de tudo. Revistas, gibis, bula de remédio, carta de amor (alheia, inclusive), pichação em muro, jornal, poesia, conto, crônica, romance, livro inteiro, livro pela metade, orelha de livro. Eu sempre gostei de ler. E muitas das ideias sobre os textos que escrevo – técnicos ou literários – surgem enquanto estou lendo textos alheios.
A segunda: o contato com todo tipo de arte. Teatro, cinema, música, museu. São espécies de alimentos para a alma. Alma faminta não tem tempo, e nem ânimo, para a criatividade.
A terceira: eu tento enxergar as entrelinhas da vida. Tento ver o lado menos óbvio das situações. O lado cômico que (quase) sempre habita as tragédias. É um hábito que herdei do meu pai. Inicialmente, usava para lidar melhor com problemas e para estar sempre alegre. Depois, passei a usar também como fonte de inspiração para as crônicas que tanto gosto de escrever.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu sempre gostei muito de escrever. Português e literatura sempre foram as minhas disciplinas preferidas. Mas penso que desenvolvi a escrita mais pelo contato frequente com a leitura, pelo treino e pela intuição do que propriamente pelo estudo. Se pudesse voltar no tempo, teria me dedicado mais a estudar – verdadeiramente – sobre o processo de escrita. Esse seria o meu primeiro conselho à minha versão mais nova.
Como segundo conselho, diria para ter menos receio de me expor, quando escrevo. Eu acredito que a pessoa diz muito de si, quando escreve (mesmo que o escrito seja ficção). Tinha – e ainda tenho – um pouco de receio dessa exposição. Mas cada vez menos.
Como terceiro e último conselho, me aconselharia a seguir escrevendo e a nunca ter vergonha do que escrevi. Seria como ter vergonha do que já fui, um dia.
Quanto a mudanças no meu processo de escrita… o fato de ter estudado (e continuar estudando) Direito, me faz ter constante contato com uma linguagem peculiar: as formalidades e erudições tão próprias dessa área. Não vejo que isso seja necessariamente uma vantagem ou uma desvantagem. Caso tais características acabem tornando a escrita inacessível (ou entediante), certamente é uma desvantagem. Mas se tais características forem encaradas apenas como um instrumento a mais na eterna tentativa de tocar o leitor, pode ser uma vantagem.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Muitos projetos que eu gostaria de fazer e ainda não comecei! Seja no Direito Penal, seja na Literatura, seja na combinação entre ambos.
No Direito, gostaria de escrever um livro sobre a aplicação da pena, tema que gosto muito (confesso que já comecei…). Gostaria de futuramente publicar a minha tese de Doutorado, sobre a relação e os limites entre as punições advindas do Direito Penal e do Direito Administrativo. Gostaria, também, de trabalhar com publicações que tratam da (bonita) interseção entre Direito Penal e Literatura, Direito Penal e Arte…
Qual livro eu gostaria de ler e ainda não existe? Que pergunta difícil! Direito Penal, parte geral, escrito por Valter Hugo Mãe em coautoria com Mia Couto… vale?