Mario Pirata é poeta e brincadeiro.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Soltar os cachorros no quintal. Tomar medicação. Abrir janelas da casa. Dar uma geral nas nuvens do céu e nas digitais. Preparar um café. Regar a folhagem. Molhar a linguagem. Respirar, respirar muito. Rotina nunca tive, pois como escreveu Maiakóvski, a poesia é a invenção de novas regras.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Qualquer hora, qualquer lugar. Todo canto é território para pousar ou levantar voo. Remexer baús de textos, pegar um para trabalhar durante o dia. Soltar pandorgas nas redes virtuais. Tenho uma propulsão inata para a bagunça criadora.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sem meta ou linhas retas, apenas arco e seta. Ocorrem períodos de silêncio, outros barulhentos. A pandemia e o isolamento desconstruíram tudo, acentuaram alvos, diluíram planos, redesenharam paisagens por dentro. O olhar anda nublado, mas ainda procurando horizontes.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A leitura de autores, a audição de músicos e compositores, a multiplicidade de formas de pintores e fotógrafos, e, principalmente, as notícias das ruas, tudo alimenta antenas. Por vezes, uma palavra puxa outra, pela saia, pelo cabelo, pelo lúdico.
(palavras não dão conta / nem pagam a conta / e não devemos / confiar nas contas / que as palavras carregam / afinal de contas / as palavras contam coisas / que não são da nossa conta)
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Ler e escrever são brinquedos antigos que carrego comigo, desde quando chupava pirulito. Ninguém pode quebrar, ninguém pode me tirar. Apenas a morte pode calar. Algum desenho ficará, pois a imaginação é carrossel que não sabe parar de girar. A noção de longo e demorado transforma-se com a idade. Estou convicto que a única pessoa que preciso e devo alegrar e satisfazer com escrituras sou eu mesmo.
(escrevo, pronto. / o que pensam e digam / não muda o ponto.)
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depois de publicados, perdem relevância. Com exceções. Tenho um poema longo, on the road, que está sendo construído há trinta e cinco anos. Originais para crianças, para adultos. Vários castelos de areia. Recentemente, organizo arquivos. E tem coisas que nascem prontas, não ouso mexer. Uso muito os meus perfis em aplicativos para ter um feedback. Considero uma indelicadeza expô-los a alguém se isto não me for solicitado.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Vez em quando volto a usar a mão, como um recurso de escritura, exercício e pescaria. Em casa e na rua, uso blocos e pedaços de papel para anotações, pois se não registro, esqueço. Depois o material vai para uma pasta de rascunhos. Ou jogo na vida, para que se virem sozinhos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Ler, ouvir música e mundo. E pelas antenas parabólicas. Observar o movimento das marés de dentro e de fora. Sou um descascador de ninharias, um catador de pétalas-palavras. A poesia é um sapato velho e furado, usado para caminhar nas nuvens, um jeito de não tirar o barco das ondas do mar. Quem escreve está apenas pescando e riscando estrelas imaginárias. A arte é invenção e não trabalha com a mentira.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O mágico da infância, armamento da adolescência, virou trabalho, cisma, quando adulto. Agora é isso ainda, embora já não carregue tantas significâncias. Sustento e alimento, há bastante tempo, virou sina e signo. Sou um artista desqualificado, não sei fazer outra coisa. Nem tenho esse desejo. Arte é o tesão que restou na vida. Afora ela, filhas e netos, camaradas e parceiros, estou absolutamente insatisfeito com o que resta.
A escritura é o bagulho, o resto é entulho. Neste momento, sinto saudade de voltar a visitar escolas e feiras, saraus e eventos. Mas isto é insignificante perto da caminhada em busca da relevância do encantamento.
A poesia é maior que poemas e muito maior que poetas.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero aprender a fazer podcasts e e-books. Transformar o sítio onde moro numa comunidade alternativa, uma ecovila cultural, com criatividade. Com horta orgânica, biblioteca comunitária, terreiro para atividades criativas e ponto de resistência social. Assusta-me a mediocridade fascista que vem se alastrando pela humanidade. Boto fé na união das tribos dos povos originários e de núcleos solidários em bairros e cidades. Nas ocupações, nos quilombos, nos terreiros, nos areais, O macro está apodrecido, precisamos fortalecer o micro, o sustentável. Continuar ou retornar ao jeito de viver que tínhamos é tolice inaceitável, como a submissão ao desprezível que vivenciamos no presente.
Atualmente, querendo reler alguns clássicos, como Garcia Marques, Lorca, Tchecóv, Guimaraens Rosa. Mas ando na onda do bloqueio com a leitura. Acho que já li tanto. Fiquei dez anos dentro de duas universidades, acampado nas bibliotecas. E no pátio tenho duas caixas d’água abarrotadas de livros. Mais um tanto dentro da casa. Anseio agora fazer uma nova leitura para o sentido da existência da humanidade, da parte apodrecida e da parte que ainda pode madurar e gerar frutos doces. E seguir escrevendo, se possível.