Mário César Ferreira é professor no Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Habitualmente, ao longo da semana, acordo cedo. Por volta das seis horas já pulei da cama. Saboreio quatro páginas de cada livro que, quase todos os dias, leio. Agora, por exemplo, estou lendo Fernando Pessoa, Vinicius de Moraes e Fabricio Carpinejar. Começo o dia, portanto, com as novidades que me trazem estes escritores. Minha rotina de segunda a sexta é muito determinada pela agenda de trabalho docente (aulas, reuniões, orientações de alunos etc.). Em 2017 esta rotina teve uma singularidade, pois escrevi o meu primeiro livro não-acadêmico. Para a sua produção estabeleci uma rotina específica: todos os domingos escrevia uma crônica – do tipo narrativa argumentativa – com tamanho sempre de uma lauda sobre temas diversos daquela semana. Deste modo, ao cabo de 52 semanas, nasceu o livro “2017. Narrativas Semanais”. Precisei de disciplina para dar conta da empreitada. Foi uma rotina muito prazerosa, pois além das crônicas pude inserir 52 fotografias minhas e de meu irmão.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
É mais fácil dizer em qual período do dia eu não me sinto melhor para escrever: o vespertino. A minha produção bibliográfica, especialmente de natureza acadêmica, invariavelmente foi feita à noite – não raro avançando as madrugadas – ou durante as manhãs. Atualmente, tenho redigido mais durante o período matutino. É quando me sinto mais descansado, disposto. É importante mencionar que o café-da-manhã saudável (com cake saúde da Virgínia) é um combustível essencial para a redação. Não há propriamente um ritual.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Com a exceção do método adotado para escrever “2017. Narrativas Semanais”, não tenho regra para a tarefa de escriba. Nem tenho meta diária. É bem variável. Há textos curtos, por exemplo a coluna bimensal sobre Qualidade de Vida no Trabalho que assino há cerca de cinco anos na Revista Proteção, que me tomam duas horas de trabalho e há outros (artigos científicos, capítulos de livros) que são produzidos em doses homeopáticas. Textos literários, que são por natureza indissociáveis da criatividade e da livre criação, costumam ser alérgicos às metas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O meu processo de escrita se apoia em planejamento prévio. Faço sempre uma arquitetura de tópicos antes de me lançar à redação. Sinto necessidade de vislumbrar previamente a ideia do todo, ainda que este seja sempre provisório, mutável. Feito isso, não é difícil começar. Ao contrário, fica mais fácil prosseguir com a empreitada. O processo de redação, guiado pelos tópicos, vai também se materializando com ajustes de percurso. Com o recurso da internet (mega enciclopédia) escrever e pesquisar costumam se alternar. O cuidado com as fontes na internet é importante em face da erva daninha denominada fake news.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Penso que as diferentes travas da escrita resultam da combinação de três aspectos fundamentais: bem-estar físico e mental; lida cognitiva com as palavras; e experiência ou vivência. Nunca consegui escrever em estado pessoal de preocupação, inquietação, tristeza, mal-estar corporal etc. Se sentir bem e com disposição são requisitos fundamentais. A lida cognitiva é uma engenharia complexa para encontrar a melhor ou mais apropriada palavra, a construção linguística melhor, a inteligibilidade melhor. As palavras são como nuvens que permitem infinitas combinações, desenham coisas distintas e paisagens diversas. O escritor precisa soprá-las com o ímpeto devido para formar as imagens desejadas. As gotas que formam as nuvens são os 380 mil verbetes que compõem a língua portuguesa. A experiência ou vivência, por sua vez, constitui uma espécie de armário com infinitas gavetas que fornecem a argila da escrita. Quanto mais tempo de vida mais gavetas à disposição do escritor. Mais barro se dispõe para montar esculturas textuais. Creio que os obstáculos para a redação se manifestam quando estes requisitos não estão presentes, não estão em sintonia. Quanto a corresponder ou não às expectativas de possíveis leitores é risco permanente de quem escreve. Tenhamos ou não consciência escrevemos sempre para os outros. Nesse caso, concordo com Fernando Pessoa quando poetizou:
“E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostra-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.”
Fernando Pessoa, (2003). Ficções do Interlúdio / Poemas Completos de Alberto Caieiro. In Obra Poética, Editora Nova Aguilar, p. 227.
Fico feliz quando as pessoas compreendem bem o que escrevi, gostam ou fazem críticas que me permitem aprender mais para futuras redações. Os projetos longos que tomam a forma de arquiteturas redacionais cumprem, na minha experiência, duas finalidades: reduzir ou atenuar a ansiedade de projetos com esta envergadura; e contribuir para simplificar a complexidade da extensa tarefa. Trabalhar, em certa medida, é sempre simplificar o complexo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Normalmente reviso mais de uma vez. Não raro tenho pensamento acelerado e minha capacidade redação ou digitação não consegue acompanhar os meus pensamentos e isto me transforma em um “comedor” de palavras. É vital reler sempre. Além disto a psicologia cognitiva ensina que o cérebro antecipa a leitura das palavras e muitas vezes a palavra lida mentalmente não está de fato presente do texto escrito. Por conta disto costumo ler em voz alta os textos curtos, pois me facilita identificar as palavras fantasmas no papel ou na tela do computador. Isto também me ajuda a lapidar o texto, retificando frases e incorporando acréscimos. Sempre que posso também mostro para outras pessoas antes dos textos seguirem para os destinos visados. Mesmo nos casos de textos acadêmicos, quando posso solicitar a ajuda de especialista, a revisão gramatical e ortográfica é sempre momento de novas aprendizagens. Se escrever é como fazer viagens, a língua portuguesa é uma espécie de cosmo tão vasto, cheio de ruas e endereços que por ora o nosso tempo existencial não dá conta de tudo visitar, conhecer.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou da geração que conheceu a máquina de datilografia. Sei bem o custo pessoal que era apagar uma palavra datilografada erroneamente. Nunca gostei muito de escrever à mão. O advento do computador e dos processadores de textos foi fantástico. A minha relação com a tecnologia é amigável até onde ela me trata bem, respeita minhas características e facilita a sua própria usabilidade. Há muito tempo faço uso do computador para escrever. Lógico que isto teve um preço: a minha caligrafia, que já não era de boa qualidade, piorou muito ao longo dos anos. Os aplicativos computacionais de textos amplificaram em muito a capacidade e o desempenho redacional.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Creio que aqui há pelo menos dois registros diferentes em face da natureza das ideias e sua relação com a criatividade. Primeiro, penso que a redação de textos acadêmicos tem como insumos os conhecimentos e scripts relativamente bem definidos para a execução do ato redacional. Aqui as ideias nascem das pesquisas, especialmente dos delineamentos teóricos-metodológicos estabelecidos e dos resultados alcançados. Os artigos científicos de relatos de pesquisa, por exemplo em ciências humanas, têm estrutura relativamente clássica e padrão de linguagem pré-estabelecido. O espaço para a criatividade redacional é restrito, vigiado e, às vezes, até proibido. Assim, certas produções bibliográficas acadêmicas costumam ser, para os leitores e leitoras, chatas, sem graça, desinteressantes, tediosas, monótonas. Puro insosso. Segundo, penso que com a criação literária e poética o modus operandi é quase imprevisível e a liberdade de criação é total. A porteira da alma fica aberta, escancarada. Nesse caso, constato que o processo cognitivo é de natureza instintiva, guiado por impulso natural e finalístico que vai sendo toureado, mediado e moderado pela racionalidade. Às vezes uma palavra é como fio de novelo que basta puxar a ponta para nascer o escopo da história, o repto poético, o parto do enredo. Para o primeiro registro – produção acadêmica – o cerne do hábito consiste em produzir previamente as arquiteturas redacionais. Já para o segundo registro – produção literária – a regra é não ter regra, salvo muita disciplina como foi o caso da produção do livro “2017. Narrativas Semanais”. Existiria um meio termo entre esses dois registros? Penso que sim. Tal é o caso dos textos semificcionais que, por sinal, gostei muito de fazer quando escrevi “Entre Zeros” (sobre o trabalho do caixa bancário) e “2017-2117. A Aposentadoria Aposentou-se” (sobre a reforma da Previdência Social brasileira). Tais textos combinam fatos reais com situações e personagens fictícios.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Muita coisa mudou. Os anos de vida, as leituras, a teimosia em querer escrever para outros, os resultados produzidos com a escrita… foram elementos que paulatinamente mudaram e continuam mudando o meu olhar sobre o mundo, as pessoas, as coisas, os fatos… e o próprio processo de escrever. De vez em quando, retomo o texto de minha monografia de especialização feita há anos e fico perplexo com a qualidade sofrível de certas passagens, me pergunto: “Eu escrevi isto!?” O processo de escrita é indissociável de novas descobertas. Processo vital que se opera ad infinitum. Adoro conhecer palavras novas. Quero logo fazer amizade perpétua. Palavras têm sexo: substantivo masculino, substantivo feminino. Sexos que mudam de um idioma para outro. Adoro também conhecer a etimologia das palavras, pois ela nos permite resgatar a gênese de sua história e aí fazemos novas descobertas. Recomendo sempre aos estudantes com os quais convivo que tenham muitos dicionários e entre eles destaco a importância do etimológico. Se pudesse voltar à escrita de minha tese, diria: “Que pena não conhecer melhor a língua francesa para relatar com mais precisão e encantamento os resultados de anos de trabalho de pesquisa!”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Com a aposentadoria que se aproxima a galope, tenho muitas potencialidades criadoras para as quais eu gostaria de dar vez, voz, vida. Na fila de espera, gostaria de produzir um livro de matiz poético, ilustrado com os meus próprios desenhos. Mas, entre o desejo e a realidade costuma existir supermercado para fazer e… para breve cuidar do meu filho Pedro César que vai nascer. Como não conheço todos os livros que existem no planeta, não sei, portanto, se o que eu gostaria de ler já não foi escrito por alguém. É melhor não dar palpite errado. Pensando melhor… vou arriscar um palpite: um livro que revelasse o mistério do universo. Simples assim.