Mário Baggio é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia invariavelmente pela leitura de jornais (leio dois todos os dias) e um ou outro portal de notícias. O café, que eu mesmo preparo, nunca falta. Costumo sair cedo da cama e gosto do silêncio da cidade nas primeiras horas da manhã. Depois da leitura dos jornais (que, quase sempre, me dão ideias para histórias), faço anotações para meus textos (um título, uma frase, uma palavra). Mexerei com isso no decorrer da manhã, até por volta do meio-dia. Aproveito as horas do meio do dia para as coisas comezinhas da vida: pagar contas, responder a e-mails, fazer compras, ir ao dentista, resolver problemas, enfim.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
As melhores horas do dia para escrever são as primeiras da manhã, quando o dia ainda não se fez de todo. A cidade ainda não acordou e há silêncio, que pra mim é fundamental. Depois que leio os jornais, faço anotações, reviso o que escrevi no dia anterior, escrevo alguma coisa nova. Gosto também de escrever à noite, depois das 11h, quando a cidade se aquieta um pouco e o silêncio volta. Aproveito esses momentos também para ler (leio sempre dois livros ao mesmo tempo) antes de dormir. Não tenho um ritual específico, mas não deixo de anotar nenhuma ideia que me passe pela cabeça: meu notebook está permanentemente aberto e estou sempre anotando coisas, às vezes é uma palavra que ouço ou leio, isso será matéria-prima para as histórias que um dia vou desenvolver. Não desprezo nenhuma ideia, não jogo nada fora, por mais insignificante que seja. Guardo tudo em arquivos no computador e sempre olho, reviso, reescrevo. Muitos contos meus nasceram dessa maneira: uma palavra ou frase que escrevi há um ou dois anos, que estava dormindo numa página de Word, de repente adquire (mais) sentido e percebo que é o momento de me debruçar sobre ela, desenvolvê-la, acarinhá-la, criar uma história em torno dela. Não passa um dia em que não preencha pelo menos uma página de Word com frases, coisas que li nos jornais, alguma frase pinçada de uma conversa, uma palavra ouvida ou lembrada etc.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias. Desde que me retirei do mercado formal de trabalho (em 2014) e passei a me dedicar só à literatura, não houve um dia sequer sem que eu escrevesse algo. Pode ser só um esboço, um rascunho, um simulacro de história, mas sempre existe algo no final do dia. É uma alegria perceber isso, me dá uma grande satisfação saber que o dia não passou em branco. Não penso em metas, quantidade de páginas ou algo parecido. Quero contar uma história, que surgiu numa ideia, numa palavra, num fato que chamou minha atenção e considero merecedor de ser contado. Aí vou trabalhar no estilo, na forma de contar, se será em primeira pessoa ou não, se haverá diálogos ou não etc.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu preciso de um “gancho” para começar. Uma vez identificado e estabelecido esse “gancho”, a escrita flui. Pode acontecer de, no desenvolvimento da redação, eu não ficar satisfeito com o “gancho” escolhido ou com o rumo que a história tomou, então paro um pouco e recomeço. Procuro outro “gancho” e refaço tudo. Esse “gancho” tem a ver com o desenvolvimento da história, porque, quando me debruço e ponho as mãos no texto, já tenho tudo na cabeça, sei o final que quero dar, sei o que quero dizer, sei até onde quero ir. Se uma dessas premissas sofre mudança no decorrer do processo, o “gancho” precisa ser mudado e eu faço isso sem me incomodar ou achar ruim. Antes de começar, abro uma folha em branco no computador e digito as anotações para o desenvolvimento da história. Elas me servirão de guia para que a escrita flua. Tudo começa, então, quando eu encontro o “gancho”. Aí é uma beleza.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação é um problema. Quando sinto que a escrita não vai fluir, prefiro deixar o texto de lado e voltar a ele numa outra ocasião (que pode ser no dia seguinte ou um ano depois). Se a escrita empacou, começo a pensar em outro texto, outra ideia, outra história. Não fico insistindo muito numa coisa que está emperrada. Sempre penso que aquele não é o momento de desenvolver aquela ideia e passo para outra.
O medo de não agradar é uma coisa que existe sempre. Já foi mais forte em mim e me entristecia muito, hoje nem tanto. A prática de escrever me deu alguma segurança. É claro que o escritor sempre quer ser lido e apreciado, mas isso não acontece a toda hora. Se determinado texto não agrada ao leitor, prefiro pensar que é por alguma razão estética e não porque está mal escrito ou é um texto ruim. Enfim…
Ainda não tive experiência de trabalhar em projetos muito longos, que me ocupassem por muito tempo e com exclusividade. Gastei uma média de seis meses com cada livro que escrevi, mas sempre misturado com o que publico no meu blog (Homem de Palavra). Então é tudo bem dosado, não tenho a sensação de ficar muito tempo debruçado sobre uma coisa só.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso os textos de uma forma moderada. Procuro por possíveis erros de digitação e gramática, palavras que gostaria de substituir, desenvolvimento que gostaria de trocar etc. Três ou quatro leituras bem atentas são suficientes, eu acho, para sentir que está tudo conforme eu imaginava.
Jamais mostro os textos para outra pessoa antes de publicá-los. Gosto de observar e sentir a reação de quem lê um texto inédito, gosto de ver a surpresa do leitor. Talvez seja até superstição, mas mostrar um texto para alguém ler antes de publicá-lo me dá a impressão de que, ao publicá-lo, ele já não é inédito, não tem viço, tem idade! Não mostro não.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre no computador. Não tenho muita intimidade com tecnologia, mas sei lidar o suficiente para criar e manter arquivos com minhas anotações e não perdê-las. Não faço nada no celular ou em qualquer outra plataforma. Há muito deixei de manuscrever, minha letra é horrível e muitas vezes, se anoto algo em papel, tenho dificuldade em decifrar depois. Fico mais à vontade diante do notebook com uma tela em branco e um teclado disponível.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias vêm principalmente das leituras que cultivo. Os jornais são excelentes fontes de histórias. Tenho vários contos que nasceram da leitura deles. Há portais de notícias que leio habitualmente, que também são matéria para textos. Costumo dizer que minha fonte principal de inspiração é a vida. Não por acaso, o título de meu primeiro livro é “A (extra)ordinária vida real”, uma coletânea de contos sobre o comezinho da vida, sobre o mais ordinário da existência, aqueles pequenos fatos que quase nunca notamos e que se mostram de alguma maneira grandiosos quando colocamos luz sobre eles. Os outros livros que escrevi em seguida, “A mãe e o filho da mãe” e “Espantos para uso diário”, também de contos, seguem a mesma linha. Tenho profundo interesse pelo “desinteressante” da vida. Gosto de olhar pessoas na rua (cultivo o hábito de olhar uma pessoa caminhando e imaginar uma vida para ela, uma história para ela, um nome). Gosto de ouvir conversas na padaria enquanto tomo café, observo o comportamento das pessoas em fila de cinema, em fila de restaurante etc. E há também o que absorvo dos livros que leio. A vida sempre surpreende, basta que estejamos ligados e atentos ao que ocorre ao redor, no elevador, na vizinhança, no bairro.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A maturidade trouxe calma, diminuiu minha ansiedade para ser aceito. Tirou de mim a necessidade de ganhar “likes” e a urgência de ser visto como bom escritor. Estou mais leve porque mais ciente do que posso produzir, de até onde posso ir, de quais são meus limites. Conhecer meus limites foi fundamental para que eu aquietasse o coração e focasse mais no que quero transmitir com meus textos. Publiquei três livros, os três de contos, sendo uma modalidade específica de conto: a narrativa breve. Meus textos são curtos porque é assim que os vejo e os sinto. A necessidade de pôr ponto final vem logo, porque logo percebo que já disse o que era preciso. Meus textos prescindem de descrições, eu os considero como um recorte da realidade, em que o leitor tem a chance de pôr sua imaginação para trabalhar e até complementá-los. Sou fã ardoroso de Dalton Trevisan e apaixonado por seu estilo seco, de frases curtas, de frases às vezes com uma só palavra, e essa palavra determina todo um contexto, configura uma situação inteira. Nada mais precisa ser dito. Adoro esse estilo e procuro cultivá-lo.
Tal como no começo de minha vida literária, ainda hoje escrevo muito rapidamente, produzo muito porque não tenho outra ocupação, e escrever é a atividade que mais me completa e satisfaz, mas hoje estou menos afoito e menos preocupado com quantidade, embora tenha um estoque razoável de material. Gosto de produzir bastante e depois ficar namorando o texto por algum tempo, alterar coisas, frases e palavras, mudar sequências e andamentos, enfim, deixar o texto dormir um pouco antes de publicá-lo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Penso em escrever um romance. E um livro de poemas. E tenho textos prontos para mais dois ou três livros de contos. Não sei dizer que livro gostaria de ler. Leio o que me chega às mãos e deixo que eles me surpreendam. Uma grata surpresa foi descobrir o escritor catalão Fernando Aramburu, de quem já li dois livros. É um grande escritor, ainda não traduzido para o português.