Marina Matos é escritora, mãe, parceira, autora de “Depois daquele dia” (Moinhos).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho uma rotina fixa. Sou mãe de duas crianças (e estou gestando a terceira), então me guio mais pelo ritmo do dia, tentando equilibrar as demandas delas com as minhas. Mas confesso que eu já era assim antes da maternidade. Ter flexibilidade de espaço e de tempo é uma das coisas mais importantes para me manter bem, criando, com a saúde mental em dias.
Nem sempre consigo antever como será a manhã, mas me comprometo a dedicar um tempo para mim. Na maioria dos dias consigo acordar pelo menos 2 horas antes das minhas filhas, Agnes, 6 anos e Liz, quase 2 anos, e do meu companheiro, Cleber. Gosto de estar sozinha, ter um tempo de quietude, observar a árvore que fica bem em frente a janela da sala – quem não tem vista para as montanhas aprende a apreciar uma única árvore mesmo.
Vejo a rotina matinal como um momento de ritualizar. Colocar intenção nas coisas que faço, sentir o que estou precisando. Não é um momento em que fico lendo notícias, ou vendo todas as atualizações das redes sociais. Claro, já fiz isso várias vezes, mas fui percebendo que não me fazia tão bem. O comecinho da manhã é um momento de nutrição, me abasteço com o que me faz bem. Primeiro, faço uma oração ou meditação, escrevo os sonhos da noite, às vezes desenho ou faço pinturas no papel, às vezes leio por um tempo. Preparo o café da manhã, faço a refeição e escrevo mais, quando o tempo permite. Quando as meninas acordam junto comigo, ou se preciso sair logo cedo, faço esse ritual assim que posso, mesmo que já seja a hora do almoço.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Com certeza, meu melhor momento é pela manhã. Com a mente mais descansada consigo escrever de forma mais fluida. Porém, nem sempre dá para engrenar nesse período, então o que me ajuda é o silêncio. Meu ritual mais frequente é mesmo estar em silêncio. Diminuo o máximo os ruídos, fico alguns minutinhos sem fazer nada. Arrumo a mesa, às vezes acendo uma vela, e começo a escrever. Mesmo que seja um rascunho que eu já sei que vou apagar em meia hora, vou escrevendo para movimentar. Uma das melhores coisas sobre escrever é que podemos mudar o que for preciso. Há esse tempo entre a ideia, os rascunhos, o texto em si, a edição, a publicação. Não é tão urgente ou grave. Isso me acalma e me ajuda a simplesmente escrever.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo todos os dias, mas nem tudo que eu escrevo é publicável ou útil, de alguma forma. A escrita em si, além de ser uma ferramenta de autoconhecimento, também me ensina sobre o tempo de cada coisa, a permissão, a liberdade de pensamento. Por exemplo, acabei de finalizar um livro que eu nem sabia que iria escrever. Foi feito de poemas e experimentos escritos ao longo de dois anos, em momentos diferentes. Nem sempre eu sei que estou escrevendo algo que vai compor outra coisa, primeiro eu só permito que venha à tona. Depois tem o tempo de descanso. E em algum dia tenho o clique de ir montando, agrupando, para ver se funciona bem como um livro, como um texto para o blog, ou não.
Isso no cotidiano, olhando de uma forma mais ampla para a relação que tenho com a palavra. Algumas vezes, dependendo do projeto, ou se estou numa fase de maior procrastinação, me desafio a escrever um número médio de palavras por dia, ou me sentar e trabalhar por uma hora inteira, sem abrir outras abas do navegador. Depende do foco, do prazo. Não acontece sempre.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sendo bem sincera, pesquiso pouco. Pelo menos antes de começar. Se eu tenho uma ideia, um insight sobre algum enredo, primeiro eu coloco tudo no papel. Escrevo e deixo fluir. O que eu sei que vai demandar mais tempo de construção e aprofundamento, deixo registrado como esboço para fazer com calma nos dias seguintes. Só depois de um tempo, quando já está encorpado, procuro por publicações e autores que embasem de alguma forma o projeto, como uma forma de inspiração ou dose extra de coragem. Se eu focar primeiro nas pesquisas, começo a escrever de forma semelhante ao que já existe e fico presa no limbo de achar que nunca está bom o bastante. Quando preciso confirmar informações, faço quando surgir a necessidade.
Pode acontecer do processo ser mais caótico, quando tenho ideias e rascunhos espalhados em arquivos diferentes (bloco de notas, Google Docs, cadernos). Preciso ir compilando todos no mesmo lugar, que funciona como um depósito, um suporte. Por fim, abro um documento novo para começar a escrever “do começo” e encaixo o que já existe quando sentir que é a hora.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
São desafios constantes. Tem fases que estou mais tranquila e não me cobro. Tem fases que quero ter um desempenho diferente do que consigo e isso me frustra. A minha cabeça não para, estou sempre tendo ideias novas, e por vezes quero realizar todas ao mesmo tempo, o que é uma ilusão completa, mas acontece. Mesmo com tanto movimento mental, ou exatamente por isso, ainda procrastino bem mais do que gostaria de admitir. O que eu faço é ter pequenas metas: um texto, um parágrafo, uma ação que seja.
Com o medo de não ser correspondida, vou acolhendo e aprofundando para saber de onde vem. Se trago pra mim, se cuido do que me cabe, fica mais tranquilo avançar sem me prender nessas vozes, que são mais internas do que concretas, de fato.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Os textos que compõem a página que crio no Instagram, o @paracuidardemim, são muito pouco revisados, eles vêm praticamente prontos e são escritos, quase todos, direto na legenda do aplicativo. Outros trabalhos, sim, são feitos em ritmo mais suave e são revisados várias vezes, no mínimo três. Não tenho o hábito de mostrar a alguém antes de publicar. No primeiro livro, enviei a uma amiga, apenas. Meu marido é quem mais cumpre esse papel, mas ultimamente não tem acontecido tanto.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não tenho muita regra. Tenho cadernos sempre por perto, mas também rascunho no computador e no bloco de notas do celular. Como digitar costuma ser mais rápido, dependendo do fluxo de pensamento eu prefiro a tela. O papel é para ver melhor, sentir as palavras e o que elas despertam em mim. Quando finalizo a primeira versão de um livro, faço a impressão do arquivo, espalho as folhas pelo chão e começo a trocar algumas coisas de lugar, releio, vejo as mudanças necessárias; depois atualizo no computador. É uma edição analógica, rs.
Posso dizer que uso a tecnologia e a escrita à mão com a mesma frequência, ambas caminham bem juntas e vou misturando conforme a intenção e a demanda do momento.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm da própria vida. Por mais clichê que possa soar, hoje eu abraço essa frase, não tento mais encontrar outra. As experiências que vivo, as cenas que vejo, tudo isso me alimenta. O maior hábito é o de prestar atenção. Prestar atenção ao que está acontecendo ao meu redor, dentro de casa, na rua, no mundo. Estar atenta aos desdobramentos disso dentro da minha mente. É como se algo que eu visse de passagem na rua, ou uma frase que a minha filha diz numa brincadeira, por exemplo, abrisse uma porta para novas possibilidades. Exercitar esse lado da imaginação faz muito bem à minha criatividade. Algumas frases soltas eu anoto, outras não. Se eu quiser anotar cada coisinha que ouço ou penso como potencial de texto, entro no modo controladora, fico ansiosa, e isso não faz bem – nem para mim, nem para a escrita. Outros hábitos são estar mais próxima da natureza, pintar, ouvir histórias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Hoje eu me permito mais. Os formatos, os gêneros, me travavam com mais frequência, quando comecei – ou melhor, quando assumi que queria ser escritora, porque escrever de fato, contar histórias, fazer livrinhos, eu faço desde a infância. Foi no começo dos vinte anos que passei a mostrar mais os meus textos, levar a sério o ofício. Só que foi sério demais e em vez de ajudar, deu uma bloqueada no processo. Esperava que o retorno fosse imediato, que o reconhecimento ou não eram indicativos únicos de que eu estava “no caminho certo”.
Hoje eu diria para relaxar mais. Não se prender tanto, não esperar por inspiração, nem dias certos. Levantar, sair de casa, espairecer. Isso é tão importante quanto a disciplina de sentar e escrever. É preciso viver para escrever bem. Diria também para seguir em frente, da forma que der, aos poucos ou em doses de impulso, que seja, apesar do medo ou de qualquer dúvida – mas isso eu acabei fazendo, de uma forma ou de outra; é o que eu ainda repito nos dias de neblina.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero dar aulas de escrita livre e conduzir processos de ressignificação da memória através das palavras. Estou começando a esboçar esse projeto, sinto que é algo que vai levar uns anos, mas estou animada com ele.
O livro que eu quero ler e não existe é a história das minhas bisavós. O que eu sei sobre elas e o que sinto que aprendi com essa força ancestral – esse livro estou escrevendo. Mas o ponto de vista delas, saber o que viam, o que acontecia dentro do micromundo que habitavam, isso fica como uma utopia que sei que não irei alcançar.