Marina Coelho é escritora, mestranda em filosofia pela UFSC, autora do livro de contos “Cenas”, pela editora Fractal.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou, privilegiadamente, uma turista das manhãs. Somente por acaso ou necessidade compareço acordada a esse período do dia que, no entanto, é para mim o mais bonito e letárgico, quando o sonho ainda pinta os contornos das coisas e dos afetos – com o perdão desse lirismo meio cafona. Não tenho uma rotina matinal, meu cérebro está em branco. Mas se um dia eu tiver, será como alegre espectadora – ou vítima da perversidade dos compromissos a esse horário – e não como agente.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como minha atividade no momento é também de pesquisadora em filosofia, e somente nas horas aflitas e efervescentes escritora, vou falar aqui das duas rotinas. No que tange à escrita acadêmica, escrevo melhor durante a tarde. Gosto de revisar textos no início da tarde e, então, sentar e escrever – de forma um pouco obsessiva – até metade da noite.
Na escrita literária prefiro a noite, às vezes madrugada, e meus rituais são basicamente mentais. Sei quando é hora de escrever quando uma frase, uma imagem ou ideia reverberam com força e plasticidade na minha cabeça, assim, o ato da escrita é o ato de parir e moldar essa coisa – construir um pequeno mundo, ou uma pequena situação ao redor dessa ideia fixa. Embora eu ainda seja uma inábil aprendiz desse ofício, que é tão difícil quanto aprender a lidar com as coisas livres e espontâneas que pululam na nossa frente e dar-lhes uma fisionomia e um temperamento, muitas vezes um mau temperamento.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Na pesquisa acadêmica escrevo em períodos concentrados (até dois meses) – que vêm depois da revisão bibliográfica do capítulo (normalmente dois meses também) – e minha meta diária é cumprir (ou quase) com os objetivos que programo (falar disso e daquilo, chegar naquela parte determinada). Normalmente, isso rende de uma a três (no máximo) páginas diárias, passando disso, só por pressão e com cansaço.
Na escrita literária também escrevo em períodos concentrados, normalmente períodos de crise, de necessidade criativa, embora eu gostaria de poder escrever todos os dias ou, pelo menos, de ter tempo suficiente para levar a cabo meus proto-projetos e experienciar melhor a matéria da escrita, seu ofício, que, na medida em que se realiza, vai criando também o próprio escritor. Como no momento escrevo contos, (cenas) curtas, normalmente escrevo até terminar o conto e depois reviso.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como falei acima no que diz respeito à escrita acadêmica, me movo da leitura bibliográfica à escrita. Normalmente isso significa ler várias vezes os mesmos textos específicos antes de escrever. Depois, monto um mapa, um caminho de assuntos que constituem o capítulo e os subcapítulo aos quais eu devo percorrer a partir de determinados textos, ocasionando em resultados interpretativos.
No que diz respeito à escrita literária, é mais difícil. Leio muita literatura e considero isso fundamental para escrever – as boas leituras são como cicatrizes que aparecem no corpo da minha escrita e, às vezes, percebo influências renegadas que estão ali, reverberando. Depois de ler muita literatura, eu leio mais – isso atrasa a escrita, é claro, mas, no momento eu estou sem pressa. Vou procurando meus precursores (desculpe a falta absurda de modéstia e o descompromisso com a realidade) e também os temas, as imagens, a forma e os estilos que sei que vão, de um modo ou de outro, ressoar. Depois disso, procuro fazer pequenos projetos de escrita – de três a cinco linhas – (todos falhos), que possam orientar aquilo que eu quero escrever, em matéria de tema, tonalidade, forma.
Uma outra matéria de pesquisa, ou melhor, vivissecção, em que me baseio para a escrita literária é o sonho – do qual posso falar mais na resposta à pergunta oito. Meus sonhos e meu inconsciente fazem um trabalho magnífico o qual me poupam de fazer, dão imagens, ideias, frases, afetos – a maioria é bem horrível, é verdade, mas me alegra. Gostaria de sonhar muito mais. As épocas de sonhos frequentes são as mais criativas. Mas, sim, é difícil começar a escrever, tanto na pesquisa, que, no início, leva a seções de auto tortura mental, no embaralhamento inicial das ideias e na escolha do caminho a seguir, e muito mais na escrita literária – uma fonte de procrastinação disfarçada de enriquecimento intelectual e estético, até que vem a crise; nada como a angústia. Minha meta seguinte é tentar escrever em algum momento são, ainda acho que é bastante possível.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Na verdade eu não sei. Na escrita acadêmica, tento ser o mais séria, responsável e comprometida possível, ainda assim é bastante possível não corresponder às expectativas da banca e do orientador – que normalmente estão lá para fazer isso mesmo, a crítica, dizer o que faltou ou o que não corresponde, em maior ou menor grau -, isso sempre gera apreensão e tensão. Tento ficar confiante no meu trabalho, saber que fiz o melhor que pude, de forma comprometida, e tento justificar a mim mesma meu trabalho e o caminho da pesquisa.
Dificilmente procrastino na escrita acadêmica, estabeleço datas de início e de fim dos blocos de escrita. A ansiedade é sempre a de ter que estar preparada para quando as datas de escrita chegarem, a de cumprir com as atribuições, mesmo que no meio do processo aconteçam desvios e coisas inesperadas – o que geram uma certa sobrecarga, mas tento lidar com isso. A disciplina na escrita funciona para mim, mas é um tanto perigoso. Tentar manter as coisas sob controle é bom para mim, mas agrava a minha ansiedade clínica – que tem sintomas bons e ruins no meu caso (o doente gosta do sintoma?), mas deixa pra lá.
Quanto a escrita literária, também é uma pergunta difícil. A escrita literária é, para mim, um longo processo que vai sendo amadurecido – desde a leitura, a fermentação de ideias, perspectivas (da própria vida), tonalidades, até a escrita propriamente dita. Isso pode se confundir com procrastinação. No entanto, foi num momento de crise criativa e também pessoal, aliada a uma intensa necessidade de escrever, que escrevi meu primeiro livro, num período de, mais ou menos, oito meses. A minha principal trava, no momento, é a falta de tempo para a escrita literária, infelizmente. O último ano do mestrado não deixa quase nenhum espaço de sobrevida – quando deixa, eu o preencho com leitura de literatura, ou vinho. No momento, estou transitando do meu primeiro livro, que foi também uma transição, um primeiro amadurecimento da minha atividade literária, para outra coisa, que não sei bem o quê ainda, mas que já está sendo conjurada, é quase possível ver sua fisionomia se transformando, talvez ficando mais risonha – ainda que maldosa – e menos sisuda.
Quanto ao medo de não corresponder às expectativas na literatura, poderia dizer aqui até um palavrão (não para a sua pergunta, é claro, mas para a palavra expectativa). Em primeiro lugar, expectativa de quem? Existe muita gente e círculos para os quais eu não gostaria de corresponder à expectativa nenhuma. As minhas expectativas, até agora, foram correspondidas, até porque elas variam de bem baixas à imensas. Se algo não corresponde às minhas expectativas, seria hora de rever, reescrever, jogar fora, ou, se já publicado, escrever um novo livro. É extremamente difícil eu me dar ao luxo mórbido do arrependimento. No entanto, ainda não recebi muito retorno sobre minha escrita (é uma confissão), digo críticas, ou comentários que, muitas vezes pululam entre os escritores mais conhecidos na praça, mas mesmo isso me deixa feliz. Ainda não deu tempo de o livro fermentar, de ser lido, falo com otimismo. Eu mesma tenho ainda dificuldades na sua divulgação, pretendo me empenhar mais. Ou talvez eu ainda não tenha correspondido às expectativas, mas será que as expectativas correspondem ao meu livro? (esta última frase, porque imprescindível para o meu humor, não deve ser levada a sério). Estou alegre com o resultado, creio que tenho e terei ainda meus amigos leitores.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sobre literatura: reviso, mais ou menos, três vezes e, mesmo assim, saem inacabados. Raramente mostro meu trabalho, a não ser a pessoas que considero abertas, de boa vontade e bons ouvidos para ler. Quanto à escrita acadêmica, reviso duas vezes e mostro para o orientador, pois sei que ele pedirá para revisar uma terceira vez.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Na pesquisa, sempre no computador. Na literatura, normalmente à mão. Não por arcaísmo, mas porque, normalmente, a escrita pode ser requisitada, por mim, a qualquer momento e, até recentemente, eu tinha um computador extremamente lerdo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Como eu mencionei na pergunta quatro, muitas vezes minhas ideias vêm dos sonhos, ou ideias fixas. Nesse sentido, a carga psicanalítica, não de autobiografismo ou automatismo ou autoIDgrafismos, mas de temas, da violência dos temas da psicanálise – como o pictórico, o surreal, o sem sentido, o desejo, a violência, a animalidade e os arquétipos bizarros – é bastante forte na minha escrita. Quando as ideias não vêm dos sonhos, ou ideias fixas e imagens que reverberam na minha cabeça e que penso: preciso escrever um conto sobre isso, vêm da literatura. Não por mimese de estilos ou autores (por exemplo, há vários novos Bukowski por aí, risos), mas por afinidade na composição de mundos, pela fagulha que a literatura acende, por atrito, às vezes, pela sua capacidade de afetar e transfigurar a vista, o sentido, abrir horizontes. É claro que, ao menos para mim, esse não é um processo passivo, mas um processo ativo em que tudo vai se misturando, literatura, vida, criatividade, mas, o mais importante, a partir de tudo isso, é ser capaz de gerar uma metamorfose do olhar para as coisas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu ainda sou bastante jovem na escrita. Acabei de publicar meu primeiro livro. Se pudesse voltar às minhas primeiras escritas não publicadas, poemas no geral, diria somente para continuar a escrever, para continuar lendo e para, talvez, sair de minhas obsessões estilísticas, mas não tentaria mudar o destino que me trouxe até aqui e, se isso não fosse possível, não falaria nada. Para a Marina de hoje: menos niilismo, continuemos, apressa-te!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Ao mesmo tempo em que eu pretendo continuar a escrever contos mais ou menos fantásticos, pictóricos ou oníricos, eu estou entrando num processo mais romanesco. Gostaria de escrever textos mais longos, um romance. No entanto, por enquanto, o meu único horizonte possível é ainda ultra-modernista, experimental, faulkneriano, glauberrochiano – antes era beckettiano (falo porque é verdade). Nesse sentido, tenho medo de me perder ao longo da escrita. Minha imaginação é ainda muito primária, pantanosa; o espírito necessário para escrever o romance que eu gostaria ainda não existe, mas talvez possa existir justamente por ter de ser inventado. Às vezes é preciso também transfigurar o próprio autor, travestí-lo. Gostaria também de me aproximar na escrita mais da concretude, de Brasil; que Brasil? essa grande incógnita, no entanto, completamente mística e fértil para o escritor, artista, que tem olhos para ver e um apetite canibalesco – o que exige estômago, mas também fantasmagoria.
Sobre o livro que quero ler: uma vez ouvi dizer (ou estou inventando, provavelmente) que se você quer ler um livro com tais características, se a literatura te mostra a falta, não apenas a falta que atravessa, mas a falta que ela mesma engendra – na medida em que um livro chama outro, um autor desperta o outro – então é você quem deve escrever o livro. Outra vez também ouvi um personagem dizer: se eu quero ler um livro, eu mesmo o escrevo – aqui perdi a referência para sempre, acho que Campos de Carvalho escreveu isso, talvez, achei muito engraçado e fico repetindo. Outra vez eu também ouvi dizer, no livro do Caetano, que fulano tem um compromisso com a literatura de seu século. Todas essas expressões megalomaníacas eu levo comigo, todos os dias, dentro do meu casaco.