Marília Velano é escritora, doutoranda do Instituto de Psicologia da USP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia de escrita- uma manhã e os finais de semana dedicados exclusivamente a isso- começa cedo com bastante café. Como divido meu tempo com outras atividades acabo encaixando a escrita nos intervalos durante os outros dias da semana. A ausência quase total de traços obsessivos faz com que eu não estabeleça uma rotina rígida para o trabalho de escrita. Com este perfil achei melhor comprar um computador que pudesse andar sempre comigo para estas ocasiões.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Durante a manhã, preferencialmente bem cedo, quando é possível, sinto que é o melhor horário para escrever. Quando consigo acordar de madrugadinha, por volta das 6hs, com o silêncio, sinto que concentro e rendo muito. Gosto de tomar duas xícaras de café, arrumar a mesa que, de preferência, não fique de frente para a parede.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo em períodos concentrados que reservo para isso, principalmente durante o final de semana. Durante a semana eu escrevo um pouco e alguns dias não escrevo. Não possuo uma meta diária. Geralmente eu leio ao mesmo tempo que escrevo e nunca sei o tempo que a leitura vai me tomar.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu costumo ler ao mesmo tempo que escrevo. Quando estou buscando um aspecto mais específico do texto eu abro outro arquivo e faço um fichamento do texto com as citações e ideias importantes. Depois disso, eu volto para o texto corrido e incluo as ideias do fichamento em articulação ao texto. De um modo geral, eu sinto que escrevo ainda muito perto da fonte, muito colada ao autor. Na medida em que vou ganhando confiança para comentar eu me afasto um pouco do autor e escrevo mais livremente, mas estes momentos são mais raros.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como eu sempre fui muito ocupada, até o doutorado, eu lidava bem com os prazos. Sempre fiz as coisas em cima da hora, mas sabia que seria capaz de cumprir o prazo embora faltasse um pouco de capricho e revisão. Com o doutorado, talvez por ser uma atividade a longo prazo, eu passei por longos períodos de angústia e procrastinação. Acho que é a primeira vez que eu procrastinei profissionalmente, rs,. Nesses períodos, na hora de escrever, eu dispersava e fazia outras coisas, muitas das quais sem nenhuma urgência, necessidade ou importância. Já comprei cadeiras para a casa, samambaia, senti fome, arrumei minhas bijuterias, aguei as plantas, senti fome, entrei nas redes sociais e senti fome. A ansiedade é um afeto predominante do doutorado. Tenho a sensação de que ela nunca se esgota. Se estamos escrevendo e dedicados ela está presente como expectativa, se estamos procrastinando ela sinaliza o corpo todo do que não foi feito. Eu me sinto um pouco melhor quando estou dedicada. A análise tem sido um espaço importante de elaboração das angústias da tese. A escrita da tese, na minha opinião, é um processo que coloca em relevo nossas dinâmicas mais neuróticas que vão, desde a relação com o orientador e os colegas, até a própria dinâmica do texto. No que diz respeito à pesquisa em psicanálise- e talvez nas humanidades em geral- ainda ocorre um outro fenômeno particular. Nunca estamos tão distantes daquilo sobre o que a gente pesquisa e esta proximidade pode respingar no próprio texto atravancando, confundindo, angustiando. Além disso, durante quatro, cinco anos que é o tempo da pesquisa de doutorado, a nossa vida continua acontecendo, alterando as expectativas, os projetos e nosso investimento.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu leio muitas vezes o texto e sempre mexo um pouquinho. Não gosto de compartilhar o texto que não está pronto porque sinto que quando o processo está inacabado, fragmentado, as críticas ou sugestões atravessam muito o texto e acaba sendo improdutivo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre escrevo no computador. Recentemente descobri o recurso de “ler em voz alta” do word e fiquei fascinada. Tenho começado minha rotina sempre escutando os últimos parágrafos. A leitora eletrônica promove um distanciamento do texto e produz uma escuta e compreensão diferentes da leitura silenciosa que fazemos. Eu uso também um programa de referências bibliográficas que se chama endnote que foi uma imposição do meu orientador. No início achei estranho mas logo me habituei e pretendo continuar usando. As redes sociais também tem sido um lugar tecnológico importante para este processo. Gosto de postar algumas notas do que estou escrevendo e observar o que elas produzem nas pessoas, sobretudo, naquelas pessoas de outras áreas.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu sou atenta e curiosa com as coisas ao meu redor. Geralmente quando alguma coisa me interessa ela cresce e volta espontaneamente na minha cabeça. Atualmente eu tomo pequenas notas no celular de coisas aleatórias. Pedaços de frase, palavras, textos, sonhos, fotos e pensamentos. Sou muito introspectiva, apesar de ser comunicativa e aberta. Tenho uma verdadeira adoração pelo pensamento. Lembro do dia que eu, pequeninha, descobri que o meu pensamento era privado e livre. Foi uma grande descoberta, rs. Além de pensar gosto muito de escrever também. Desde que aprendi acho que nunca parei. Eu tinha uma relação muito profunda com os meus diários. Lembro de um episódio muito engraçado: na ocasião que dei meu primeiro beijo na boca eu queria que acabasse logo a festinha para eu ir para casa escrever o que tinha acontecido. A escrita ate hoje para mim tem esta função de realização, apropriação subjetiva, de ser um processo que torna as coisas mais reais.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Para a escrita acadêmica eu acho que falta eu me afastar um pouco mais do autor que estou lendo e produzir um pensamento mais dialético. Mas, de todo modo, eu espacei dez anos entre o mestrado e o doutorado e acho que já amadureci muito. Sinto-me mais apropriada do assunto, em condições de produzir um pensamento complexo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de escrever um romance. Eu gostaria de ler um livro para crianças que tenha uma forma, mais próxima possível da experiência que elas estão tendo da construção do mundo e da linguagem. Difícil explicar.