Marília Moschkovich é socióloga, mestra e doutora pela Unicamp, e fellow da Fundação Alexander von Humboldt, residindo atualmente em Berlim.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu tinha, antes de ter um bebê. Quando estava escrevendo a tese de doutorado, aprendi muito sobre meu ritmo de escrita. A vida inteira fui uma pessoa noturna, de acordar tarde. Mas quando passei pelo retorno de Saturno, que coincidiu com o doutorado, muita coisa mudou – corporalmente, até. Comecei a ficar mais cansada à noite e mais disposta pela manhã. Comecei a gostar do silêncio da manhã de outra maneira – se antes eu gostava de varar a madrugada, ver o sol nascer e aproveitar o friozinho e o silêncio do começo do dia, passei a preferir dormir cedo e acordar cedo pra aproveitar o mesmo momento. Tive alguns problemas de saúde que também acabaram me encaminhando para essa mudança, na mesma época (início do doutorado). Eu tinha duas formas de organização do início do dia que funcionavam pra mim. Uma delas só era possível quando eu não tinha nenhum compromisso com horário durante o dia, por vários dias, então não era muito prática: dormir em dois turnos. Eu dormia cedo, lá pelas nove da noite, acordava perto das quatro da manhã. Fazia um chá (nunca café, pra não acordar demais), sentava no computador, lia e escrevia. Ainda naquele estado meio onírico, meio sonolento. Depois que o mundo começava a acordar, lá pelas sete, oito, eu dormia de novo até umas onze. Então fazia café (agora sim, pra acordar), tomava café lendo notícias (um hábito que adquiri ainda na adolescência, quando meu amigo Pedro Malavolta me disse que se eu queria ser jornalista eu deveria criar o hábito de ler jornal – não virei exatamente jornalista, mas quase). Então começava a escrever.
Para mim, o melhor momento de escrita são sempre as primeiras horas de trabalho. Depois disso, parece que o mundo chama, me distraio e minha cabeça se cansa – então aproveito pra fazer coisas que não requerem tanta concentração (trabalhar com planilha, atualizar redes sociais, gravar vídeos, etc). Depois que tive minha filha, no início deste ano, esse tem sido um desafio importante: voltar a escrever. Por vários motivos, mas também pelas mudanças de rotina.
Agora, com um bebê de seis meses em casa, as coisas são diferentes. Entre o terceiro e o quinto mês dela eu trabalhei de casa e descobri que era possível conjugar essas coisas, contanto que eu não precisasse escrever. Então, conversei com minha chefe e pedi que me pagasse um plano num espaço de coworking perto de casa (para eventuais mamadas da pequena durante o dia). Quando comecei a sair de casa para trabalhar, tive que descobrir uma nova rotina e ainda não peguei um bom ritmo de escrita. A rotina começa a entrar nos eixos: acordo antes de todo mundo, tomo um banho, como alguma coisa, amamento minha filha, caminho quinze minutos para o escritório enquanto ouço podcasts ou música, entro pela cozinha, pego um capuccino (às vezes com uma dose extra de café), escolho uma mesa pra trabalhar, coloco meu material na estação de trabalho, ligo o computador. Aí é que o problema começa, porque começaria a rotina de escrita e isso ainda não engatou. Mas vou procurar responder na próxima pergunta.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como eu mencionei ali em cima, escrevo melhor de manhã. Em geral, cedo. O ideal sempre foi acordar, café, escrever. Mas com um bebê isso se tornou impossível – porque eu preciso de todo um tempo e sequência de atividades para começar o meu tempo de escrita e leitura, trabalho, computador. Então tudo balançou e ainda estou tentando aprender a escrever nesse novo ritmo. Por outro lado, como tenho bem menos tempo disponível para trabalhar – escrita inclusa – me parece que sou muito mais produtiva. Seis horas diárias de trabalho, finais de semana sem trabalhar, mas consigo dar conta (praticamente) de tudo que preciso. Antes eu trabalhava direto, quase sem pausas, workaholic que sou. Seguia apenas o fluxo da minha inspiração e a necessidade. Hoje não dá, porque mesmo com meu companheiro cuidando do bebê, se ela grita, eu não consigo pensar em mais nada (quem me viu, quem me vê…). Então, neste momento eu diria que trabalho melhor longe da minha filha, durante o dia.
Meu ritual de preparação sempre foi o combo café + leitura de quadrinhos na internet + notícias (o meu Feedly). Ainda não consegui retomar isso e me pergunto se a escrita anda meio travada por isso, também. Decidi parar pra responder essa entrevista aqui, aliás, como forma de tentar entender por que eu não estava conseguindo sentar pra terminar o texto da minha coluna pro blog da Boitempo, mesmo já tendo pegado o café, estando no escritório, etc. Por outro lado, também sei que sou capaz de escrever em condições “adversas”, tipo intervalos de cuidado com minha filha quando ela era pequena. Eu pegava o celular mesmo e ficava digitando textos enormes e complexos, alguns dos quais ainda não consegui parar pra revisar e publicar, quando ela tinha semanas de vida. Loucona de hormônios e sono em padrões bizarros, mas eu estava lá, escrevendo de qualquer jeito que dava porque sabia que se fosse depender de rotina ia demorar meses pra escrever. Eu precisava escrever pra lembrar que ainda era eu mesma, depois desse processo louco de gravidez, parto, e aprendizado de ter um bebê em casa. Louco isso, não? Aí agora que tenho espaço pra escrever, escritório, rotina, o bebê dorme melhor, eu também, etc… Cadê escrita? Vai entender…
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu gostaria muito de ter uma meta diária mas esse tipo de coisa, quando a gente tem criança pequena em casa, me parece mais uma fonte de angústia e frustração. Porque o controle sobre o cotidiano é bem menor, então eu nem esquento muito com isso. Penso por projetos – e aí tem épocas em que vou escrever mais e épocas em que escrevo menos. Por exemplo, posso sentar e escrever três episódios de podcast em dois dias de trabalho, depois passar uma semana sem escrever, aí escrever um texto em um dia, etc. Acho que não sou muito organizada nem metódica com isso. Gosto do meu horário de trabalho ser meio “livre”, no sentido de que eu organizo as diferentes tarefas durante esse período segundo as necessidades diárias e segundo meu pique. Contudo, como eu trabalho com muitos projetos diferentes que envolvem escrita, sem contar a vida acadêmica que é escrita constante, acabo escrevendo quase sempre.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, édifícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu organizo de uma forma em que não faço exatamente um “começo”, porque as notas nunca são suficientes (!) ou sempre são suficientes a partir já da primeira. Em geral eu tenho ideias que preciso comunicar. Eu anoto em forma de mapa mental algumas coisas em uma lousa que tenho em casa. Assim eu acabo convivendo com as ideias e elas vão maturando. Aí chega uma hora e que eu olho pra elas e falo “hmmm você tem cara de artigo acadêmico” ou “a senhorita parece que quer ser um texto de internet, hein?”, etc. Não sei explicar direito, haha. Mas eu acho que diferentes ideias têm melhores encaixes com diferentes tipos de mídia. Também penso no alcance e no público com quem quero debater ou que desejo influenciar com minhas ideias e textos e adapto às vezes a ideia e a mídia pensando nisso – no diálogo que estou buscando, que sinto que preciso ou desejo. Então é meio uma coisa “ongoing”, não tem um momento de começar.
Mesmo a minha tese de doutorado, eu parti do que já tinha compilado e escrito pra qualificação. A qualificação eu parti de textinhos que eu já tinha escrito e apresentado em congressos ou disciplinas de pós-graduação. Esses, por sua vez, partiram de uma ou outra nota que fiz enquanto lia e observava os dados, etc. Na vida acadêmica eu penso que faz muito mal a todo mundo esse lance de achar que a tese ou dissertação é algo inteiramente novo, que você só escreve depois de ter analisado todos os dados, etc. Acho que faz o pessoal ter medo, sabe?, enquanto a tese deveria ser só o desenvolvimento do que já vem sendo feito, pensado, analisado e, ao mesmo tempo, a escrita de notas de análise e capítulos também pode orientar a própria forma de olhar os dados. Sobretudo nas ciências sociais e humanidades, cujo objeto de estudo jamais pode ser entendido por meio da lógica formal mas, antes, pela dialética. Não adianta separar esses momentos do tipo “vou analisar todos os dados depois eu escrevo” porque não funciona assim.
Pessoalmente gosto muito do que Bourdieu propõe quando fala em abordagem “reflexiva” de pesquisa, e acho que essa reflexividade também precisa ser uma dança constante entre análise de dados e escrita. Escrever é também uma ferramenta de analisar dados. O texto, nas ciências sociais e humanidades, não pode ser visto como um texto jornalístico, cuja função seria apenas comunicar algo que não é o próprio texto. O texto é o nosso microscópio, influencia na maneira como o pedaço do objeto que estamos amplificando pra estudar e explicar pode ser visto, determina limites e dá possibilidades.
Também por isso eu brigo bastante com a galera que adere a essa nova moda de dizer que texto acadêmico difícil (o próprio Bourdieu, Judith Butler, etc) é difícil porque é mal escrito. Acho o fim! Texto acadêmico de humanidades é difícil porque o texto é também objeto de análise do próprio texto, a linguagem não é só uma ferramenta de comunicar outra coisa – o texto precisa ser inteligível, ou seja, usar categorias e palavras que os leitores sejam capazes de entender, ao mesmo tempo em que está duvidando das categorias de linguagem que usamos no cotidiano para dar uma abordagem analítica e científica àquilo que está no senso-comum. É muito doido e é um bruta desafio. Não é à toa que dizemos aos alunos de graduação que se acostumem a fazer mais de uma leitura de cada texto, e que não parem o texto apenas porque não entenderam um certo ponto. Eu brinco dizendo que, num primeiro momento, deve-se ler Hegel como quem lê Guimarães Rosa. Um grande amigo meu, que foi da matemática para a economia e depois para a filosofia, contava que tentou começar a ler Grande Sertão Veredas e parou na primeira palavra: Nonada. Acostumado a fazer leitura exegética, parou por ali e foi tentar descobrir o que era “Nonada”, eventualmente desistindo da leitura por não ter encontrado resposta. Se fizermos o mesmo com textos como os de Hegel, Bourdieu, Butler e outros, logo de cara, não leremos nada. Num segundo momento, depois de captar quase poeticamente o sentido desses textos, é que podemos parar e fazer análises mais pausadas. Ainda assim, são textos desafiadores por esse motivo que mencionei – da relação do texto com o objeto do texto. É justamente por isso que nos cursos de ciências sociais e filosofia as leituras são debatidas e orientadas por cursos em sala de aula. Uma pessoa pode sozinha ler toda a bibliografia de uma graduação em ciências sociais, que isso não vai dar a ela necessariamente a formação em ciências sociais de alguém que acompanhou as disciplinas. Por isso também sou uma defensora bem ferrenha das disciplinas obrigatórias na pós-graduação, mas acho que já estou divagando um pouco… Meu ponto é que a escrita acadêmica em ciências sociais é parte da pesquisa e isso é um desafio.
Por outro lado, pra terminar esse trecho da entrevista, quando eu escrevi minha tese me coloquei o desafio de escrever uma tese gostosa de ler. Para isso tive que desafiar alguns formatos e crenças comuns da academia, apoiada pela minha maravilhosa orientadora, rompendo com o formato clássico de “discussão teórica – dados – análise”. Esse formato me parecia tão artificial… Preferi que a própria pesquisa e meu objeto me guiassem. Bourdieusianamente inspirada, também preferi que a minha própria relação com o objeto da pesquisa, com a pesquisa, com o texto, etc. transparecesse e permeasse a tese (a referência aqui sendo não apenas a proposta de Bourdieu para uma sociologia reflexiva, mas também a forma de “autoanálise” que ele propõe). Na qualificação levei um pequeno coro da banca por utilizar uma linguagem jornalística demais – e tinham razão. Então na versão final da tese procurei equilibrar o rigor acadêmico, a poesia, a autoanálise, as referências de cultura pop… Enfim, acho que o resultado foi bacana (inclusive estou levantando dinheiropra traduzir a tese pro Português e disponibilizá-la ao público brasileiro).
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não sou muito preocupada com essas coisas, em geral, mas já vivi momentos bem tensos. Em todos eles, a água batendo na bunda (ou seja, a necessidade de receber remuneração, pagar as contas ou defender a tese) foi fundamental. Acho que não é um problema se algumas pessoas trabalhamos melhor sob pressão. Eu sou a rainha de conseguir prazo extra ou atrasar coisas por isso, só que eu não ligo tanto, se as pessoas que estão trabalhando comigo não ligarem. O que acontece é que em geral eu trabalho e escrevo rápido sem perder qualidade – só que isso acaba se concentrando em alguns períodos. Porém, também sou capaz de escrever de maneira mais prolongada e distribuída se necessário. Algo que eu faço é sempre me colocar prazos anteriores aos prazos oficiais e organizar minha cabeça e meu coração (risos) para esses prazos. Afinal, todo prazo é uma ficção, então invento a minha própria de maneira que se eu falhar nela ainda tenho uns dias de segurança com o prazo oficial. Eu sou, a bem da verdade, uma preguiçosa por excelência, e procuro sempre a forma menos trabalhosa de fazer tudo.
Sobre projetos longos, acho que o mais longo até hoje foi o doutorado mas, até nesse caso, como eu disse, não fiquei enrolando pra escrever. Fui escrevendo artigo pra congresso, depois qualificação, depois a tese acabou derivando de tudo isso. Acho que faz sentido estar sempre escrevendo.
Algo que eu sei que me ajuda muito em tudo isso é minha flexibilidade com planos. Os planos que eu faço para trabalhar, organizar meu trabalho, etc. eu nunca levo tão a sério. Acho que esse é um bom truque pra sobreviver à vida acadêmica: não se levar tão a sério em alguns momentos. Quer dizer, eu estabeleço um plano, mas ele é quase uma bússola, não um mapa ou uma indicação de caminho. Está lá, estou olhando, lembro que existe, mas na prática a teoria é outra. Então no cotidiano vou surfando a maré que vai se configurando. É um tiro no pé a gente achar que tem controle total sobre nosso tempo, trabalho, etc. Não temos. Porque a vida acontece, porque a política acontece, porque há crises econômicas, guerras, gente que morre, filho que nasce, mudanças o tempo todo. Então não adianta se agarrar ao próprio plano feito no mundo das ideias – e lembro aqui, pra fechar esse trechinho, da metáfora que Marx usa nas suas Teses sobre Feuerbach, dizendo que não adianta uma pessoa se afogando imaginar um colete salva-vidas do mundo das ideias, que ela vai morrer afogada igual. Ou algo do tipo, não me lembro de cabeça agora.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende do texto, da pessoa, da situação. Eu reviso pouco porque, como eu disse, sou preguiçosa demais. Por isso eu gosto de trabalhar em equipe. Porque aí o texto e o conteúdo são tirados à prova por pessoas competentes e isso sempre ajuda a pensar. Apresentar trabalho em congresso, mandar pra revista de qualis alto pra ter feedback dos editores, mandar texto pra orientador… Tudo isso pode ser muito gostoso, e não uma fonte de tortura, se entendermos como um diálogo necessário à construção de um bom texto (no caso dos textos acadêmicos, mas também de poesia, literatura, etc). O texto não está pronto e genial em sua primeira versão, nem quando revisamos muito bem – porque somos, cada um/uma, limitados na nossa própria concepção e criação do texto.
O mito do gênio individual é uma construção que nos adoece. Gera ansiedade e faz parecer que a pesquisa, o texto, etc. são produções de indivíduos isolados (e, logo, se apenas o seu cérebro não é capaz de produzir de imediato algo perfeito e aclamado, você não é bom o suficiente). Isso não é verdade e nunca foi verdade para nenhum período histórico. Marx estava lá dialogando com Engels, tendo os textos lidos e comentados, debatidos entre companheiros da política, editados por editor de jornal. O mesmo pode ser dito para todas e todos os intelectuais e cientistas das ciências sociais e humanidades. Essa crença no mito do gênio individual também faz com que alguns autores sejam impossíveis de trabalhar – e aqui falo como editora – ou, ao menos, muito difíceis, porque não aceitam nenhuma intervenção ou sugestão de editores e leitores críticos qualificados, e o que acontece no fim é que o texto fica ruim ou bem aquém do que poderia ficar.
Outro fenômeno quanto a isso que observo hoje é que, porque nas redes sociais qualquer coisa tem pelo menos meia dúzia de leitores, as pessoas confundem sucesso/popularidade de um texto com qualidade. Então às vezes escrevem algo, postam e, como têm bastante aplausos/likes/seguidores/comentários positivos, acham que o texto, enquanto texto, é bom. Muitas vezes não é. A leitura especializada de um bom editor ou leitor crítico podem fazer um texto crescer muito, e isso não é o mesmo que a leitura do público geral. Pessoalmente, eu procuro diálogo criativo com pessoas especializadas e só depois abro pro público geral. Mas não faço isso com todo texto; eu tenho escolhido muito bem quais textos escrever em formato de texto porque a internet já quase não lê textos. Houve um momento em que o texto foi um meio de bastante retorno pra popularizar ideias na internet e hoje, penso, não é mais assim. Então prefiro trabalhar com vídeos curtos ou podcast, e deixar a energia dos textos para aqueles textos mais densos e aprofundados que apenas quem quer de fato entrar no tema vai procurar e ler. Tem funcionado bem essa divisão de projetos pra mim.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo normalmente um mapa mental e depois um croqui do texto à mão, com canetinhas coloridas, bem bonitinho. Tomo notas sempre no caderno, à mão, também. Ou quase sempre – algumas eu coloco no Evernote, um aplicativo que gosto bastante para organizar notas. Depois vou escrevendo o texto mesmo no Word, sempre com o Citavi aberto do lado. Para quem trabalha com texto de forma mais intensa e pesada, não existe combinação equivalente em software livre, com todas as funcionalidades e rodando limpo como essa, infelizmente. Eu penso que a tecnologia tem que servir a nós. Sempre que eu tenho que fazer algo que começa a parecer muito trabalhoso eu penso que certamente deve ter um software ou app pra facilitar isso e, em 90% das vezes, tem. Como eu disse, sou preguiçosa demais.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acho que o que me mantém mais criativa e com ganas de escrever e criar texto são os debates e diálogos. Isso se faz, pra mim, lendo textos de opinião, redes sociais, notícias, artigos e livros, e também participando de grupos diversos (coletivos, partido, grupo de trabalho, etc). Às vezes também estruturando encontros com amigos para debater. Arte também é um cutucão inspirador sempre: teatro, cinema, séries, exposições… Acho que minhas ideias vêm dos outros, vêm do diálogo, vêm do acúmulo coletivo que nós como humanidade fomos capazes de fazer até hoje. Estar sempre em diálogo para mim é o que movimenta a criatividade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu diria: você precisa de formação para escrever, escrita não é intuitiva, então abaixe o ego um pouco e vá aprender com quem sabe. Eu daria esse conselho pra 99% das pessoas que eu acompanho que escrevem na internet e não têm formação, também. Escrita é técnica. Façam workshops, cursos de escrita, participem de grupos de criação literária mesmo sem pretensão de ser poeta/escritor, leiam livros sobre escrita, brinquem com tipos de textos e gêneros distintos. A gente acha que escrever é algo intuitivo, porque na escola não aprendemos técnica de redação, apenas formato (e o formato único do vestibular). Quem já “escreve bem” na opinião do professor vai bem, quem não escreve bem dança. Aí as pessoas saem do ensino médio com aquela pecha de que “escrevem bem” porque para um adolescente de 16 anos elas de fato escreviam bem, e param por ali. Não aprimoram, acabam só lendo texto acadêmico (o que faz tudo piorar, porque são textos bastante técnicos, com formatos específicos bem limitados e tal) e nunca refletem sobre a ferramenta texto. Acabam mimetizando os textos que lêem online, em redes sociais e revistas, intuitivamente. Como tudo, porém, quando temos consciência do que estamos fazendo – as partes do texto, as funções de cada parte, porque usar certos tipos de frase e outros não, como escolher palavras, etc., e também um bom repertório de como fazem e fizeram tudo isso já – os textos ficam bons de fato.
Penso o texto como dança contemporânea: parece que as pessoas estão fazendo movimentos muito livres, quase intuitivos, quando são boas naquilo. Mas é justamente o domínio da técnica, inclusive da técnica clássica que foi ali chacoalhada, que faz com que essa leveza e aparente naturalidade possam aparecer, sendo gostoso de assistir.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não sei que livro eu gostaria de ler e não existe, porque quando penso isso em geral eu mesma penso em escrever ou então acabo descobrindo que já existe e comemoro porque não terei que escrever, haha. O que eu gostaria mesmo é poder me dedicar à escrita literária um pouco. A necessidade de ter bolsa, manter carreira, pagar contas, pegar frila, etc. há anos não me deixa cuidar direito, como eu gostaria, desse lado. Publiquei em 2017 um livro de poemas pela Urutau, e temos mais um engatilhado possivelmente pra 2020, com poemas políticos. Um dos entraves é que eu gostaria de remunerar um amigo para fazer uma leitura crítica dos poemas antes de seguir com a edição e, óbvio, ainda não tive dinheiro pra isso, então está lá. O maior entrave é sempre o capitalismo, o fato de que mesmo com certo “capital simbólico” acumulado, nós produtores de conhecimento e trabalhadores da cultura somos parte do proletariado, ou seja, da classe que depende da venda da própria força de trabalho para subsistir. Se não fosse isso, penso que pelo menos um dos três romances que eu comecei a escrever já estariam sendo publicados. Quem sabe nos próximos anos eu retomo? Além disso, tem também outros projetos menos ambiciosos que eu gostaria de já ter realizado, como lançar um ebook coletânea comentada de textos bacanas que escrevi pra internet nos últimos 10 anos. Tem também o projeto de traduzir minha tese pro português e, além disso, a ambição de escrever meu próprio livro teórico sobre não-monogamia a partir das pesquisas que tenho feito e que estão dando base para meu podcast (Libre). Também gostaria de transformar o livro de sociologia para ensino médio que escrevi e que, por razões óbvias, não vai poder existir mais, em um livro que possa ser usado por estudantes e docentes do ensino superior – mas ainda não tive proposta de editora para isso e tampouco tive tempo de apresentar esse projeto pra muita gente.