Marília Lamas é escritora e roteirista, especialista em Sociologia Política e Cultura pela PUC-Rio.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho uma rotina específica. Cada dia é um e eu também sou uma a cada dia. Tem dias em que acordo bem cedo, faço uma caminhada e vou espiando as pessoas, ouvindo as conversas… Dizem que todo escritor precisa ser um pouco fofoqueiro – e eu concordo! Vivo de orelha em pé, captando uma conversa de duas amigas que vão tagalerando no metrô, uma piada que o gari que varre a rua dirige ao dono do bar, um lamento de um motorista de Uber, uma discussão do casal que mora ao lado. Às vezes chego a colar o ouvido na parede – que o pessoal do apartamento 204 não me descubra! Nem tudo vira história, é claro. Mas tudo alimenta a imaginação, gera repertório e vai nutrindo a alma de quem escreve.
Todo dia escrevo alguma coisa: às vezes por minha vontade, mas na maioria das vezes porque preciso – afinal, trabalho como roteirista em um canal de TV e escrever é “A” minha atividade.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sinto que trabalho melhor à tarde. De manhã, as ideias ainda estão acordando, junto com o corpo. Mas às vezes as demandas exigem que eu faça o esforço de despertar qualquer coisa dentro de mim para pôr no papel de manhã mesmo. Mas não reclamo: encaro os prazos como grandes amigos. Se não fossem eles, talvez nada saísse (ou entrasse) no papel.
À tarde, sinto que tudo flui melhor: com o almoço e as ideias já digeridos, me sinto mais pronta. Não sou uma escritora muito noturna, até porque durmo cedo. O que gosto mesmo de fazer à noite é ler – ler qualquer coisa que não tenha sido escrita por mim, é claro! A gente precisa pôr muitos textos para dentro antes de tentar pôr o que quer que seja para fora. Ler antes de dormir é ótimo – tenho a sensação de que, no sono, vou processando o que li. A leitura e a vivência são os grandes alimentos do escritor.
Não sei se posso chamar isso de ritual, mas nunca começo um texto diretamente no computador. Sempre escrevo primeiro no papel: uma palavra aqui, uma ideia ali, e puxo seta pra cá e pra lá, conectando tudo – às vezes nada se conecta, e tudo bem.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Normalmente escrevo no chamado “horário comercial”. É o que me demanda a minha profissão de roteirista. Mas, quando escrevo livros, crônicas, enfim, projetos pessoais, preciso encontrar uma brecha, um tempo livre – geralmente à noite, depois do expediente. É um pequeno sacrifício para quem sente sono cedo, mas vale a pena. Quando trabalho num livro encomendado por alguma editora, aí sim preciso ter metas de escrita, mas nem sempre diárias. Gosto de trabalhar com metas factíveis, até para evitar a frustração de não conseguir atingi-las. Mas nem sempre é possível: o prazo, sempre ele, às vezes aperta. E aí não tem conversa: é sentar, anotar, pensar, anotar mais um pouco, pensar mais um bocado e, por fim, liberar tudo no computador.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sinto que a folha em branco se parece muito com a minha terapeuta: olho para ela e nunca sei muito bem o que dizer para começar o papo. Mas aí digo qualquer coisa, o que vier à cabeça, mesmo que aquilo pareça não fazer sentido algum. Aos poucos, a conversa flui e, quando percebo, disse tudo o que precisava. É assim também com o texto. Começo escrevendo o que vem à cabeça, sem a pretensão de acertar logo de início. Vou trocando o pneu conforme o carro anda, faço ajustes aqui e ali e, principalmente, me deixo levar pela estrada. Muitas vezes um texto termina de um jeito totalmente diferente do que eu imaginava quando escrevi as primeiras letras. Eu me deixo surpreender.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu vou escrevendo e me deixando levar. Às vezes acho que não tenho nada a dizer. Mas vou escrevendo, escrevendo e, quando vejo, tem alguma coisa ali. Nem sempre dá certo. Às vezes o que resta é apagar tudo, balançar a cabeça e começar tudo de novo. Sou uma pessoa bem ansiosa e, na maioria das vezes, começo um texto achando que não vou conseguir terminá-lo de maneira satisfatória. Mas, em geral, consigo. Nem por isso deixo de sentir o mesmo receio no dia seguinte, quando me debruço novamente sobre a escrita. Sinto que escrever é um processo de autoconhecimento e autodesafio. Nem sempre dá certo, mas quando dá é bom demais.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso os meus textos o tempo todo, até depois de publicados. Leio e releio meus livros, meus roteiros, até mesmo as minhas anotações despretensiosas. Meu primeiro trabalho, aos 17 anos, foi como estagiária no departamento de revisão de uma editora. Então, muito antes de ser escritora, sou revisora. É quase um vício, é parte de mim.
Gosto de mandar meus trabalhos para os amigos mais próximos. Sempre que termino um texto, peço para ler em voz alta para o meu marido – que, generosamente, sempre aceita ser meu primeiro ouvinte. Às vezes ele faz ótimas contribuições, às vezes só diz que gostou – e aí eu já acho que ele detestou, é claro. Mas é coisa minha. Quando escrevo “para mim”, para os meus projetos pessoais, gosto de mandar para alguns amigos, por whatsapp mesmo. Adoro receber o retorno deles.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Apesar de trabalhar no computador o dia inteiro, eu sou bem analógica. Sempre escrevo primeiro no papel. Tenho caderninhos que considero grandes amigos, que me acompanham por onde eu for. Também coleciono canetas coloridas, que me ajudam a destacar palavras e a sair da monotonia. Sinto que o papel tem outra cadência, bem diferente da do teclado do computador. Enquanto a caneta desliza pelo papel, as ideias têm mais tempo para se aconchegar. A caneta desliza e o papel segue ali, imóvel, apenas sendo preenchido por ideias que não necessariamente vão dar em alguma coisa. No papel, quando me deparo com um erro ou com uma ideia que não me parece boa, posso riscar. E o risco fica ali, me lembrando do que escrevi. No computador a gente simplesmente “deleta”, e assim os vestígios dos erros e imprecisões somem. Eu prefiro riscar e me lembrar deles. São parte do processo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm das minhas leituras – sempre me sinto um tantinho influenciada pelo estilo do autor que estou lendo – e, principalmente, das minhas sensações. Do que sinto quando ouço uma música, tenho uma conversa, vivo uma experiência. Sentir é sempre o primeiro passo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Desde a escola, eu anoto primeiro as ideias num papel e só depois as levo para o computador (ou para a prova “à vera”). Não me lembro quando foi que comecei a andar por aí com caderninhos e canetas coloridas, mas esse é um hábito muito antigo. Talvez tenha surgido mesmo na infância. A Marília de 30 anos, escritora, ainda é muito conectada à Lila, de 12 anos, que escrevia no seu diário. E eu espero que seja sempre assim.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sabe que eu não sei? Gosto muito de política e, recentemente, me veio a ideia de escrever um livro de crônicas sobre o Brasil de 2018 até depois da pandemia. Mas seria um livro de ficção, focado nas pessoas, nos personagens, nas suas experiências, opiniões e contradições. Talvez seja esse o livro que eu gostaria de ler e que ainda não existe. Quem sabe?