Mariayne Cortes Nana é poeta, autora de Pétala Soletrada Pelo Vento (Urutau, 2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho exatamente uma rotina matinal, mas procuro cultivar a consciência sobre o impacto que a manhã produz sobre o restante do dia, sua importância, seu lugar. Sinto-a como uma espécie de semente, onde está contido o desdobramento do dia.
Dessa forma, se acordo com sentimentos caóticos, percebo que muitas tarefas simples tornam-se complexas e desajustadas. A tendência, nesse caso, é não aproveitar o dia — tanto em seu aspecto funcional, quanto espiritual e criativo.
Por outro lado, se consigo vivenciar a manhã de uma maneira harmônica, a tendência é que essa harmonia reverbere nas ações que realizo ao longo do dia e, geralmente, os encontros se tornam mais fluídos, tenho a possibilidade de apurar o meu olhar para as pessoas, as experiências na cidade e os meus próprios sentimentos.
Como todos esses elementos são fontes da minha escrita, acredito que sustentar hábitos saudáveis durante a manhã seja essencial para abrir o caminho da criação. Por isso, procuro meditar, ouvir alguma boa música ou simplesmente contemplar a força da luz do dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Quando estou em processo criativo gosto de trabalhar durante a noite. Deve mesmo haver algo de fecundo nas luzes indiretas da lua, como acreditavam os homens primitivos. Fora da zona das obrigatoriedades do dia, a disposição do espírito fica mais afinada com o mistério e as esferas do sonho. Tudo isso influí na escrita que busco artisticamente — mais focada no mergulho pelas águas do inconsciente — e é diferente daquela que exerço sob a luz clara e direta do dia, onde a razão geralmente predomina e a conscientização sobre algum processo é geralmente meu foco.
Resumidamente, acredito que precisamos aprender o valor de cada momento. Sobre isso, as culturas e tradições antigas produzem um grande ensinamento, porque nelas as vivências eram todas regidas pelo tempo. Vejo esse entendimento como algo extremamente valioso, pois a mente humana é complexa e suas possibilidades e intenções criativas são vastas. Assim, saber extrair o que de melhor nos é dado a cada momento — para além das imposições da produtividade — é uma sabedoria e uma dádiva.
Quando realizo um ritual de preparação para a escrita é sempre buscando estabelecer a conexão com um ou mais elementos da natureza. Todos eles concentram um elevado grau de ensinamento — ensinamento esse que procuro manifestar tanto em minha vida, quanto na poesia e nas composições reflexivas que gero. Assim, o ensinamento das águas é diferente do aprendizado oferecido pelo fogo, por exemplo. Eu procuro ficar atenta a tudo isso.
Primeiro, busco identificar aquilo que preciso manifestar em minha escrita e depois pesquiso o elemento que mais transmite aquela determinada força ou estado. Se busco manifestar um estado de fluidez, por exemplo, fico um bom tempo observando o modo como a água se movimenta, a maneira como minhas mãos se relacionam com ela e tudo o que sinto a partir desse contato. Já quando quero emanar a força da resistência, recorro ao fogo, pois na maneira como ele persiste às investidas do vento, tenho a possibilidade de reconhecer a resistência materializando-se e, naturalmente, isso me nutre daquilo que preciso. Objetivamente, todos reconhecemos a função nutridora da terra. Mas em termos espirituais, precisamos recobrar a consciência desses aprendizados. O espírito também se alimenta. E qual seria sua fonte?
Particularmente, em meu primeiro livro (Pétala Soletrada Pelo Vento, Ed. Urutau, 2018), estabeleci uma maior relação com o vento. Nele está contido um grande potencial de circulação e também de limpeza emocional, que compõem o estado da liberdade. O ar permeia tudo e não permite se escravizar por nada. É isso que tenho aprendido com ele. É isso que gostaria de transmitir com a escrita dos poemas desse livro. Esse é meu ritual.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Nunca tive uma meta diária, a não ser quando produzia trabalhos acadêmicos na faculdade de Letras. Na minha criação poética, o que ocorre é uma escrita em períodos concentrados, mas não determinados por um calendário externo. Quando crio, estou conectada ao aspecto inconsciente da psiquê e não acredito na possibilidade de controlar isso. O que ocorre, a meu ver, é exatamente uma espécie de emergência de conteúdos simbólicos do inconsciente para a consciência. Essa força conduz-me ao registro e eu a sigo, produzindo uma elaboração contínua até que elas atinjam um valor mais universal do que a própria experiência particular a partir da qual elas emergiram.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Geralmente tudo começa com um verso ou uma imagem que surge espontaneamente na minha cabeça. Então esse verso já pronto ou a transformação da imagem em verso é o ponto de partida da minha escrita. Depois disso, me sento diante do computador e vou desenvolvendo essa concepção. A simples atenção dada a ela já traz um universo de associações possíveis e os outros sentidos vão então se conectando àquela mensagem primeira. De certa forma, às vezes desconfio que alguns textos já estão prontos em algum lugar ainda por nós desconhecido, e basta que dediquemos nosso tempo, empenho e energia — aliados, é claro, a técnica, experiência e consciência adquiridas — e ele ganhará a forma que necessita.
Vejo o texto como uma das formas da revelação. Assim, ele sempre torna visível algo que está oculto. Entendo que essa é sua verdadeira potência. Quando começo a escrever é porque toda a matéria pesquisada já foi assimilada, atingiu certo grau de maturidade e está pronta para se tornar fruto. Na verdade, não considero que eu possa exatamente arbitrar sobre isso. Acredito em uma escrita que deva ser o mais próxima possível da natureza. Se eu tento controlar o tempo das coisas, talvez seja até possível escrever — mas acredito que soará para mim mesma e também para os outros como algo artificial. A minha postura, então, é de uma dedicação contínua para que eu possa intuir o tempo em que construção poética ou acadêmica deva ser iniciada, desenvolvida e finalizada.
Por fim, é a pesquisa que anuncia o momento de se tornar texto, na medida em que o próprio material pesquisado se reelabora e surge para mim como verso, frase ou imagem. Esse surgimento é exatamente sinal de que há uma criação por iniciar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Procuro lidar com as travas da escrita de maneira respeitosa. Realmente acredito que precisamos ter consciência de que o texto, apesar de ser entendido como produto da razão, apenas, envolve todo o nosso ser. Desse modo, conseguir ou não avançar não é algo que depende somente da nossa vontade, mas de uma série de fatores psíquicos que podem impedir ou facilitar o fluxo da escrita. Esse processo fica para mim mais evidente quando estou dando aula de Redação e posso observar que as dificuldades enfrentadas pelos alunos existencialmente — falta de foco, ansiedade, preciosismo, complexidade excessiva, pragmatismo exacerbado — acabam sendo também determinantes sobre a qualidade dos textos que produzem. Nesse sentido, vejo que a escrita é um bom campo para nos ajudar a identificar aspectos da nossa personalidade que impedem a fluência, o desenvolvimento de nossa capacidade integrativa, de produção de coerência, de sentido e geração de equilíbrio.
A procrastinação é um problema geral do nosso tempo, então todos precisamos atuar no sentido de revertê-la em algum nível da vida — profissional, relacional, espiritual, criativo. Sinto que além das diversas distrações oferecidas pelas grandes cidades e as tecnologias, a procrastinação é como um recurso de defesa gerado pelo próprio ego. Com essa “ferramenta”, mantemos as circunstâncias estabilizadas e continuamos habitando apenas zonas conhecidas. O progresso, ao contrário, é muitas vezes desafiador e quase sempre trabalhoso. Com a procrastinação evita-se o novo e estica-se o “mais do mesmo”. Agora, se a escrita realmente me motiva, como tem motivado, ela acaba se tornando exatamente um estímulo para vencer a procrastinação e trabalhar justamente esse aspecto na minha vida. Precisamos ter inteligência e autoconhecimento para resolver nossas tendências excessivamente estabilizadoras e involutivas.
Enquanto escrevo artisticamente, não sou perpassada pelo medo de não corresponder às expectativas. Acredito que esse tipo de raciocínio tende a produzir uma escrita sem criatividade. Se eu tomar como meta somente a correspondência das expectativas dos outros, só poderei produzir algo próximo do que já foi produzido, pois é isso que as pessoas costumam ter como expectativa consciente. Para mim, uma escrita autêntica precisa encontrar, antes de tudo, o seu próprio caminho de liberdade. Nesse caso, interessa-me pesquisar também as expectativas inconscientes da mente humana, os aspectos essenciais com os quais ela precisa se conectar para produzir liberdade, cura e evolução.
Como minha escrita é muito mínima, costumo não experimentar a ansiedade de trabalhar com projetos longos. Mas imagino que seja essencial intuir dentro de um longo projeto quais são os seus pequenos estágios ou ciclos. Dessa forma, a sensação de finalização a cada ciclo poderá contribuir para reduzir a ansiedade, geralmente causada pela noção de que as coisas não terminam. Assim, a maturidade de cada ciclo ou estágio deve trazer o contentamento e a força necessária para seguir em direção ao próximo, até que o processo, por inteiro, se conclua.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso os meus poemas inúmeras vezes até sentir que estão prontos. Há três parâmetros fundamentais que me norteiam nesse processo de conclusão. São eles o sentido, a beleza e a sonoridade. O sentido nem sempre precisa ser objetivo, mas não pode deixar de existir. É necessário com certeza um nexo entre os versos construídos e, quanto a isso, deve haver também certa noção de unidade no interior do poema, ainda que só tracejada sutilmente. Vejo a beleza também como critério fundamental. Se não há beleza, não posso determinar que o processo de construção esteja concluído e beleza implica em restrição, restrição a todo e qualquer dizer e, principalmente, aos excessos. Por fim, verifico também se há certa musicalidade dentro do poema, se sonoramente há uma reverberação entre os termos e busco ao máximo explorar esse aspecto, de modo não óbvio.
Geralmente publico nas redes até esboços dos poemas que produzo para testar a interação com o público e, eventualmente, intuir algum aspecto que deva ser aprimorado. Costumo também enviar escritos para amigos próximos, que se dedicam ao pensamento e escrita literários.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Geralmente escrevo diretamente no celular ou no computador. Quando estou em casa, abro sempre um documento no Word. Se estiver na rua, faço as notas diretamente no meu e-mail e envio para mim mesma. Raramente escrevo no papel, a não ser que esteja privada do acesso aos recursos tecnológicos. Também quando preciso idealizar alguma espécie de diagrama, costumo usar o papel.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu leio constantemente desde os 15 anos de idade. Li mais poesia do que prosa. Encantaram-me alguns filósofos específicos, alguns teóricos da literatura, alguns prosadores. Mas muitos poemas me arrebataram de modo irreversível e acredito que essas experiências de leitura tenham me marcado de maneira imensurável. Entre eles destaco Fernando Pessoa, com todos os seus heterônimos.
Acredito que a criatividade seja a condição natural do ser humano, mas para que ela seja exercida é necessário cultivar o silêncio, a contemplação e o tempo. Quanto maior a capacidade de atravessar períodos em silêncio, exercer uma contemplação de si, do outro e da natureza e quanto maior a abertura de um espaço interno para que o tempo flua sem demandas externas, observo que mais aguçado fica o meu potencial criativo.
As ideias são sementes de origens insondáveis.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu simplifiquei meus escritos. Em algum lugar aprendi que no latim o termo simples é formado pelos vocábulos “sine” e “plex”, que significa “sem” e “dobra”. Já a palavra complexo é formado pelos vocábulos “con” e “plex”, que significam, respectivamente, “com” e “dobra”. A partir disso pude perceber que a simples é um desdobramento do complexo e o complexo é uma espécie de dobradura do simples. Todos os dois estados são igualmente válidos. Mas antes me conectava ao complexo pelo motivo errado, eu acreditava que dessa forma minha intelectualidade ficaria mais evidente. Hoje valorizo mais a simplicidade. Faz parte do meu propósito de não gerar mais peso ao mundo.
Eu diria: Seja mais simples, flua.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho a expectativa de unir a arte com a espiritualidade, de modo que o processo artístico evidencie o processo espiritual e que possamos evoluir sensivelmente por meio das revelações trazidas pela arte. Desejo que esse aprendizado não se torne algo separado da vida. Que a própria vida possa ser revelada e reconstituída a cada ciclo também segundo bases artísticas.
O livro que eu gostaria de ler e ainda não existe é exatamente o próximo que irei escrever, porque é justamente essa a dinâmica — de desejar o ainda inexistente — que forma o caminho da criação.