Mariana Zuaneti Martins é socióloga, professora da Universidade Federal do Espírito Santo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Depende do dia da semana e da demanda de trabalho. Em geral, minhas primeiras horas do dia são as que eu melhor consigo me concentrar. Eu costumo dormir aquelas 8 horas recomendadas por noite, por isso, o horário em que acordo, em geral bem cedo (por volta das 5h da manhã, até nos finais de semana), de modo a estar bastante descansada e com energia para me concentrar em atividades consideradas mais trabalhosas ou com uma possibilidade de esquiva maior (seja pelo grau de dificuldade de execução ou mesmo pelo grau de dificuldade de encaixar essa atividade na rotina do dia). A maior parte dos meus dias se iniciam com café (como não poderia faltar) e alguma atividade esportiva, porque acredito que isso me deixa mais disposta e animada para enfrentar as demais atividades da rotina, como dar aulas, estudar, orientar, cumprir aquelas tarefas mais ordinárias da vida universitária cotidiana (pareceres, reuniões, organização de eventos e projetos). No entanto, algumas manhãs (em geral pelo menos duas manhãs na semana, nos dias que eu não dou aulas pela manhã), eu gosto de iniciar com atividades de estudo e escrita, porque acredito que é o momento em que mais rendo para essas atividades e que a inspiração mais acontece. É muito comum eu sonhar com os textos que eu estou escrevendo ou mesmo com os trabalhos coletivos que eu estou mais engajada em orientar, de modo que acordar e já começar a trabalhar nisso é como não deixar perder essas ideias que apareceram no momento de relaxamento.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O horário em que acordo é o mais produtivo, dada a minha capacidade de concentração ser maior. Não tenho exatamente um ritual definido, mas tenho aprendido, ao longo dos anos, algumas rotinas que ajudam o processo de escrita. Via de regra, não gosto de escrever após grandes e pesadas refeições, porque acredito que processo digestório consome a minha capacidade de concentração. Por isso, de manhã, às vezes, em jejum, com a caneca de café, rendo bem (evitando picos de insulina). Gostava muito de escrever na biblioteca, cercada por livros e por pessoas estudando. Foi assim que desenvolvi meu mestrado e doutorado. E dizia que era o efeito “maratona”: aquela sensação de que você está cansado, não aguenta mais, mas ao olhar para o lado e ver aquelas outras pessoas concentradas e aguentando firme, você se acredita capaz de continuar e se sente motivado a permanecer lá (porque escrever é uma atividade tão e mais difícil que correr 42 km, requer muito mais concentração e energia). Hoje em dia, não tenho tido perto de mim uma biblioteca onde eu me sinta confortável para estudar (como era o IFCH/UNICAMP), por isso, tenho escrito em casa ou, quando preciso desse incentivo externo (do efeito maratona que descrevi), vou a uma cafeteria. Não me incomodo com barulhos externos. E com relação à preparação específica mesmo, uma caneca de café é a parte que nunca muda antes de uma sessão de escrita. Procuro responder às mensagens urgentes antes, mas que também não tomem muito tempo. E em seguida me concentro na escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
No plano ideal e nos meus melhores momentos, eu escrevo em períodos concentrados. Gosto de escrever obcecada por aquilo que estou trabalhando. Ou seja, gosto de viver o que estou escrevendo 24 horas por dia. Quando consigo ficar tão intensamente concentrada num tema e num texto, percebo que a escrita e a qualidade das reflexões são melhores. E sempre acontece aquele insight casual. Fico o dia todo escrevendo ou estudando e, de repente, no banho, ou lavando louça, ou dormindo, vem aquela reflexão bem interessante. Não trabalho com metas diárias de escrita (páginas, palavras etc), apenas com rotina. Apesar de gostar de ficar obcecada no que estou escrevendo, de modo a escrever em períodos concentrados, sou a disciplina em pessoa. Começo a trabalhar sempre no mesmo horário (seja com escrita ou com outras atividades) e vou sempre até umas 18h, 19h, porque depois desse horário o rendimento já não é mais o mesmo e, ao longo dos anos, aprendi que descansar para produzir no dia seguinte é sempre a melhor política. A questão é que apenas no mestrado eu tive como me dedicar exclusivamente à pesquisa (e mesmo assim, junto com o mestrado, cursei uma segunda graduação em ciências sociais) e o mestrado é aquela coisa fugaz. Quando você percebe, já acabou. E foi assim comigo, me afastei do trabalho por dois anos para fazer o mestrado e quando percebi, já tinha acabado o afastamento, mas a dissertação não. Desse modo, em toda a minha trajetória acadêmica, combinei a pesquisa e a escrita com outra atividade. Isso fez com que eu sempre desenvolvesse mais coisas ao mesmo tempo, de modo que o escrever estava cotidianamente no horizonte de forma diluída (às vezes como um fichamento que ia fazendo no cotidiano), mas se desenvolvia mesmo de forma concentrada. Os períodos de férias do trabalho, nos quais, eu tinha dia e noite para pensar nos textos que eu estava escrevendo eram os mais felizes e produtivos. Hoje ainda é assim, cotidianamente escrevo uma coisa ou outra, mas rende mesmo nos meses em que eu não estou dando aula. São nesses meses que eu produzo novas reflexões, reviso e melhoro estes textos escritos a conta gotas, retomo projetos antigos que fui acumulando material ao longo dos meses em que não me detive nisso, etc. Por fim, o melhor remédio para procrastinação e esquiva, para mim, é o prazo. Quando ele chega, só ele regula meu comportamento.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A escrita está no meu horizonte diário, mas não em forma de lidar com a página em branco em si, o que faço de forma mais detida em alguns períodos específicos. Escrever para mim é um trabalho artesanal, que vai sendo construído cotidianamente, para além do momento de criar um documento novo no word e dar o título de artigo novo. Uma vez eu ouvi um relato de um professor que dizia que cada manuscrito que ele tinha a ideia de escrever, ele criava uma pasta no computador e ia alimentando com as ideias que ele tinha, bem como com o textos sobre aquela temática que iam ajudar ele a posteriormente desenvolver aquele tema. Eu costumo utilizar essa ideia. Quando tenho uma ideia, anoto ela no caderno mais próximo (sim, eu ainda uso canetas e cadernos, embora hoje em dia tenha também utilizado o googlekeep) e depois crio um documento no word digitando aquelas notas e já juntando algum material que possa me ajudar a posteriormente desenvolvê-la. Nessa pasta, vou inserindo artigos, textos para ler, material empírico etc, tudo para que, no momento oportuno, eu organize e comece a dar forma de manuscrito àquelas ideias.
Para começar a dar forma de manuscrito, meu ponto de partida é estudar e fichar textos que têm a ver com o tema que estou escrevendo, ou mesmo retomar antigos fichamentos sobre o tema. Isso me ajuda a organizar as ideias e ter mais facilidade de começar e mesmo traçar um plano provisório de escrita. O plano é provisório, mas é um passo necessário para o início no meu caso. Eu gosto de rascunhar alguns tópicos (mesmo desorganizados) sobre o que tenho em mente que queria escrever, sobre conceitos que vou utilizar, casos que vou narrar, autores e temas que quero articular. Escrever sobre os temas que quero escrever ajuda a organizar minhas experiências (intelectuais e pessoais) acumuladas sobre aquele tema.
Esse plano inicial é bastante caótico, ou bem artesanal, nas palavras do Wright Mills, mas me ajuda a reunir elementos que estarão presentes no meu texto. Após esse plano inicial, em contato com meus fichamentos, eu começo a desenvolver um texto. Esse texto ainda não apresenta um fio condutor, mas é um ensaio livre de ideias ou uma articulação de autores e sínteses que fui produzindo a partir dos meus fichamentos. Essa forma de começar me ajuda a não sofrer com a “falta de inspiração” ou ter a “crise da página em branco”. Aprendi com o Wright Mills que a ofício do sociólogo é de ordem mais artesanal do que da iluminação das ideias e, por isso, que partindo daqueles pequenos feitos “braçais”, os fichamentos, é que começam a surgir sínteses e as novas ideias vão brotando, até que em algum momento, um pouco sem previsão, às vezes, surge o insight. Pesquisar e escrever tem a ver com organizar uma dada experiência de campo ou de estudo sobre um determinado assunto, de modo que, para mim, essa é a principal rotina da escrita. Entrar em contato com as minhas próprias experiências de leitura e pesquisa, registrar e produzir novas experiências, para, nesse processo, traçar novas reflexões.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Essa é uma pergunta que remete ao projeto de vocês inclusive. Sou uma pessoa muito ansiosa e, apesar de, via de regra, não ter problemas em escrever, em alguns momentos me sentia insegura quanto à capacidade de finalizar uma pesquisa ou texto, ou mesmo de ele ter qualidade. Na pós-graduação, no auge das cobranças e das inseguranças, a gente nunca sabe se vai conseguir terminar a dissertação, se a tese de doutorado vai ser algo inovador como se espera de um doutorado, se tem densidade, profundidade. Depois na carreira de docente, o medo é de se perder nas demandas ordinárias da universidade e não ter um projeto de pesquisa próprio que você dê conta de tocar. Enfim, para mim, é um constante bombardear de inseguranças. Por isso, desde a graduação, eu sempre conversei muito com meus amigos que passavam pela mesma fase que eu, sempre troquei textos com eles e sempre tive ajuda. Isso foi parte fundamental na permanência e investimento na carreira acadêmica. Conforme entrei no mestrado e depois no doutorado, e a pesquisa foi se especializando, comecei e me ver mais “sozinha” na hora de lidar com os meus textos e inseguranças, e aí que foi fundamental ter contato com uma série de iniciativas e de textos que falem sobre isso e que ajudem a ver uma luz no fim do túnel. Aquele texto da Rosana Pinheiro sobre “os donos de Foucault” me marcou muito, porque expressou exatamente o que eu sentia, e desde então venho seguindo seus textos porque eles são realmente inspiradores e confortantes (às vezes, precisamos de um conforto vindo de um “não é só você que passa por isso e, sim, tem jeito”). Outra fonte de aconchego e inspiração é o blog da Karina Kuschnir, que é lindo e que traz relatos muito bacanas, mostrando formas de lidar com a escrita e com o desespero, bem como que há vida fora dela. Foi aí também que encontrei o projeto de vocês, inclusive, lendo sobre alguns dos rituais dos meus professores (como o belo relato da Taniele Rui, que eu me identifico muito na pele da professora nova) e das minhas referências bibliográficas (como a Claudia Viana). A gente aprende tanto com essa troca de experiência.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus textos no final, relendo-os inteiros. Gosto sempre de relê-los após um certo distanciamento, porque aí o estranhamento causado pelo tempo com aquelas linhas ajuda a melhorá-lo sobremaneira. Mas nem sempre é possível, por conta da sobrecarga de trabalho e do aumento de pressão com produtividade e publicação. Deste modo, muitas vezes acabo publicando textos antes mesmo de achar que eles estavam na sua melhor forma, o que me entristece bastante e é algo que eu ainda estou aprendendo a lidar (como resistir a essa pressão por produtividade, como aceitar que nem sempre os textos sairão perfeitos ou de uma forma que me agrade o que eu considero muito bom). Nos tempos de parceria também, meus textos são sempre trocados, de modo que meus co-autores sempre contribuem com meus escritos e a gente sempre aprende muito junto, nessa troca. Minha orientadora foi uma parceira importante de anos de troca de texto e de escrita. Além disso, meu marido, que não é exatamente da mesma área, mas é acadêmico, também é meu interlocutor privilegiado e lê praticamente tudo que eu publico antes de eu soltar para o mundo. Ele acaba sendo um pouco do meu parâmetro de algo que precisa de mais amadurecimento (porque se dependesse de mim, tudo precisaria!!!!).
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Os fichamentos, que são as peças chave do meu processo de escrita, são todos feitos à mão. Alguns eu digito, outros não. De modo que tenho uma pilha de cadernos em casa, os quais são meus maiores patrimônios intelectuais (um dia, me dei falta de um caderno de fichamentos e notas que eu precisaria, e quase fui à loucura – foi pior do que um furto de celular). Gosto de tomar notas à mão, de riscar textos no papel, de ter livros pesados na bolsa e na mochila. Venho tentando lidar melhor com a tecnologia, usar tablets, kindles e tomar mais notas no computador, mas esse processo ainda é bastante incipiente para mim. No entanto, mesmo que meu primeiro plano provisório de escrita seja à mão, sempre digito ele e coloco na pasta de documentos que eu criei para cultivar o artigo que estou trabalhando.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Basicamente de leitura. Estudar o que a área está escrevendo, mas também ler coisas de outras áreas mais gerais (estudo esporte, mas gosto de ler coisas de sociologia, antropologia e história de uma forma geral, porque as considero muito inspiradoras).
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mais mudou é que agora tenho mais notas para consultar e mais experiências para reunir para começar um texto. Conhecendo-me melhor, sei que essas notas e a organização dessa experiência são as peças chave. Saber disso e ter essas notas ajuda bastante. Deste modo, se tem algo que fui aprendendo com o tempo é que: fichar textos é sempre um tempo bem investido e nenhum texto é perfeito. Por fim, tem um aprendizado que eu tive com um texto do Latour que talvez fosse a coisa que eu mais precisava ouvir na época do mestrado: um texto termina quando você o declara encerrado. Porque o medo de achar que nunca ia terminar a dissertação, aquela sensação de que onde cheguei não é suficiente eram aterrorizantes. Uma outra coisa que eu faria diferente seria circular meu texto antes de ele ficar pronto, porque a leitura de outras pessoas da versão provisória ajudaria muito a que ele avançasse. Essa é uma mensagem que sempre passo as/os minhas/eus orientandas/os hoje em dia: cerquem-se de pessoas amigas e de confiança que possam te confortar, te dar segurança, ler seu texto e ouvir sobre sua pesquisa. Isso ajuda muito.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho várias pastinhas de ideias e artigos para ler “paradas”. O que eu queria era ter menos tarefas ordinárias para poder ficar mais obcecada com cada uma delas. Quem sabe com o pós-doutorado eu não consiga viver intensamente algumas dessas pastinhas.