Mariana Salomão Carrara é escritora, autora de Delicada uma de nós (Off-flip, 2015) e de Fadas e copos no canto da casa (Quintal Edições, 2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como tenho um trabalho fixo – sou Defensora Pública –, com muita demanda, não tenho condição de implementar rotinas de escrita.
Quando tiro férias ou finais de semana para escrever, as manhãs não costumam ser muito estimulantes. Acabo usando as manhãs para reler e lapidar o que já produzi antes, ler livros de outros autores e ouvir as músicas mais tristes que eu consigo encontrar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Na juventude era muito clara minha preferência pela noite, avançando a madrugada. Tenho tentado flexibilizar isso, mas é muito difícil traçar um padrão, já que eu preciso encaixar a literatura nos espaços que o trabalho deixa, e a minha mente também não pode estar tomada por ansiedades ligadas à Defensoria.
Então, nas férias ou finais de semana, tenho escrito à tarde e começo de noite. Durante a semana, às vezes consigo uma noite criativa depois do trabalho.
Como ritual, sinto necessidade de me colocar num estado de melancolia produtiva. Algo como uma sensação de que estou um pouco deslocada do fluxo normal da minha vida, e neste local enxergo as coisas com um filtro melancólico que não significa necessariamente tristeza ou abatimento. Sinto que minha cabeça começa secretamente a escrever e me impulsionar ao computador num movimento prazeroso, que é muito menos torturante do que quando tento escrever disciplinadamente e sem alcançar essa preparação.
Nas melhores ocasiões, esse estado de “melancolia produtiva” me arrebata espontaneamente, após uma noite sozinha na cidade, ou depois de algumas leituras – principalmente poesia. É muito comum que eu escreva depois de eventos ou programas urbanos em que há muita gente se divertindo sem que eu sinta essa festividade. Presenciar alegrias coletivas intensas em volta de mim sem alcançá-las costuma ser um bom estímulo para a minha escrita. Até por isso tenho muitos textos produzidos em tardes e noites de carnaval.
Mas também consigo buscar esse estado ouvindo música, ou assistindo a algum filme muito denso. O combo quase infalível: cinema seguido de caminhada solitária de volta para casa no fim de tarde, ouvindo músicas tristes. Se eu estiver com um romance já em elaboração, esse truque raramente falha!
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sou completamente indisciplinada. Quando reservo férias exclusivamente para escrever, tento fazer isso o dia inteiro e esse “método” concentrado de produção não costuma gerar resultados muito bons. Seria bem melhor se eu conseguisse escrever diariamente em pequenas doses, mas isso talvez seja uma meta para a minha aposentadoria.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Na época em que eu me dedicava à produção científica, só começava a redação propriamente dita depois de ter compilado as citações e paráfrases de toda a minha bibliografia, separadas todas por temas e micro temas que eu sinalizava por diferentes cores, num processo custoso e demorado que provavelmente rendia dissertações muito mais longas do que precisavam ser.
Na literatura, com exceção do meu romance Idílico, que escrevi na adolescência e que envolveu bastante leitura prévia de Freud para moldar a “brincadeira” que eu estava preparando – o livro é narrado intercaladamente pelo ID e pelo superego de um homem –, não me lembro de ter realizado grandes pesquisas para nenhuma obra.
Escrevi um roteiro de longa para cinema em que precisei aprender detalhes do atendimento do Hospital Pérola Byington, e fiz leituras em bibliotecas e teses disponíveis na internet ao longo da escrita, conforme as dúvidas e necessidades surgiam.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando estou na toada de um romance a procrastinação não costuma ser paralisante. Faço minhas pausas, sem muitas cobranças. Mas no intervalo entre um romance e outro costumo me entregar a um longo (às vezes mais de meio ano) período de congelamento criativo, deixo de provocar minhas melancolias, dou todo o espaço à frugalidade, aceito mais convites, paro de me incomodar com o tempo que perco em eventos sociais, viagens. Talvez nesses intervalos eu me torne uma companhia melhor, mais amiga da leveza.
Costumo controlar que isso não dure mais do que o tempo que eu passei escrevendo o último romance. Quando sinto que é hora de deixar de hibernar, procuro reler a última produção, mudar tudo o que não sedimentou nesse tempo, e depois luto pra começar um novo romance.
Quando dá errado e o novo romance não engata, fico muito insatisfeita comigo e nunca soube lidar com essa frustração, mas ao mesmo tempo nunca cheguei a sentir que não conseguiria mais. Espero atenta e uma hora a ideia certa aparece e me cativa.
Frequentar oficinas literárias também foi uma forma que encontrei de tentar produzir pelo menos contos ou textos curtos quinzenalmente, sem deixar paralisar de vez.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Os textos curtos ou contos que divulgo na internet, costumo reler uma vez e em seguida publico. Releio depois de publicado e ajeito mais um pouco. Costumo mostrar à minha amiga Camila e ao meu companheiro antes de publicar ou logo após, e mais recentemente tenho mostrado aos meus amigos de oficinas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quando eu era pequena escrevia à mão, mas pulei para o computador assim que apareceu um daqueles imensos lá em casa, bege, cheios de cavidades que acumulavam pó. Durante quase uma década aquele monstro significava para a mim o veículo de produção de histórias. Eu tinha inclusive um programinha – presente da família em resposta aos meus continhos –, que ocupava três ou quatro disquetes, chamado Creative Writer, que tinha uma máquina geradora de ideias, propostas de exercícios, desenhos para fundar histórias, etc.
Acho quase impossível escrever à mão, porque só o teclado é capaz de chegar perto o suficiente da velocidade com que a cabeça vai produzindo a linguagem. Às vezes, tenho a sensação de que são as mãos que estão escrevendo, porque elas colocaram na tela antes que eu tivesse tido a impressão de pensar aquilo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Meus hábitos para ideias coincidem com aqueles que descrevi para entrar no estado de melancolia. É nesse estado que costumo ter os pensamentos que depois desenvolvo com as mãos. Normalmente tenho apenas uma sementinha em mente, e não adianta ficar tentando semear ali, eu preciso depressa do computador e é nele que vou saber o que de fato vai crescer.
Não abro mão das clássicas anotações de pequenas fagulhas de trânsito, transporte público e outros estímulos diários, mas já obtive grandes coisas mesmo sentando com absolutamente nada, mas com a preparação certa.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos?
Perdi um pouco – só um pouco – da teimosia. Perdi boas oportunidades por teimar com finais, temas e até mesmo defeitos que eu defendia fervorosa. Hoje acho que, além de ter aprimorado eu mesma um pouquinho – só um pouquinho – de capacidade de julgar o que escrevi, já consigo aproveitar melhor alguns apontamentos produtivos.
Também aprendi a não esperar tão passivamente a minha inspiração, provocá-la com os truques que comentei. Na adolescência e até meus 25 anos fui muito dependente dessa tal inspiração, e acho que agora aprendi melhor a chamá-la.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho muita dificuldade de pensar obras literárias como projetos. Tenho algumas ideias que estou deixando guardadinhas na cabeça até me sentir mais preparada para testá-las. Os livros que quero ler e não existem talvez sejam justamente os que quero escrever! Gostaria de ler mais um livro, que ainda não existe, da Miranda July, da Elvira Vigna e da Lygia Fagundes Telles, e gostaria de desler, para poder ler de novo da mesma forma, Os meus sentimentos, da Dulce Maria Cardoso.