Mariana Ruggieri é escritora e tradutora, pós-doutoranda no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu começo meu dia querendo voltar a dormir. As manhãs são terríveis, a não ser que eu esteja de férias na praia. Não consigo ter rotina porque me assusta a possibilidade de ter que combinar horários comigo mesma. Eu levanto da cama e vou para a rede, fico na varanda olhando a rua, o céu, o gato alpinista do prédio da frente. Não bebo café, então fico em um estado sonolento tentando lembrar dos meus sonhos. Sinto pena do senhor que não pode fumar na própria casa e desce a cada hora para fumar na calçada, sempre com o cotovelo apoiado na lixeira. Fico pensando se não seria melhor se ele tivesse uma cadeira de praia. Ali pelas 11 da manhã lembro que não tomei café da manhã ainda, mas que tudo bem porque a possibilidade de almoçar cedo está sempre aí. Como alguma coisa e aí sinto que posso começar o dia. Na época em que estava terminando a tese tive algo parecido a uma rotina: era muito semelhante ao que descrevi acima, mas depois de comer eu nadava uns 2km antes de parar para escrever. Funciona e não dá congestão.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor à noite. Moro no centro de São Paulo e só consigo me concentrar de verdade quando o mundo externo fica silencioso. À noite parece que ninguém tem pressa nenhuma e aí posso escrever, habitar o lugar da hesitação, que me parece ser o lugar da escrita por excelência. Não separo a escrita de ensaios da escrita de poemas da escrita de e-mails da escrita de uma entrevista. Mas acho que poesia não tem muita hora e para mim, não tem nenhum ritual necessário a não ser pescar uma ideia ou uma imagem boa e ir embora com ela. Para a escrita de ensaios acadêmicos o ritual passa principalmente pela procrastinação – com um olho no gato alpinista e outro no senhor fumante dá para ter um monte de ideia, ir esboçando um caminho possível pro texto, vasculhar a memória em busca de referências interessantes. Acho que isso que a gente chama de enrolar é isso mesmo, é um momento indispensável para ir enredando elementos para o universo que vai surgir na escrita, trazendo aos poucos a pipa de volta lá do alto, puxando a rede de volta lá do fundo. Ligo minhas antenas e fico esperando contato. No mais, acho que o melhor preparo para a escrita é sempre a leitura, ler poetas e teóricas de quem eu gosto, ensaios que produzem assombro, ir procurar parceiras de delírio. Traduzir também me ajuda muito, entrar em sintonia telepática com outras escritoras, habitar outros modos de escrita. Escrever para mim tem a ver com dar conta do espanto – procurar ou produzir o espanto e dar conta disso. Fora isso, acho que a gente começa a escrever quando a gente desiste de ficar colocando resistência à escrita. Tem essa desistência inerente ao processo de começar – é preciso acolhê-la.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende muito. Poemas acontecem para mim em momentos geralmente insuspeitos, esperando o ônibus, no meio do banho, lavando louça, pegando no sono. Quanto à minha produção acadêmica, o escopo do projeto e a distância do prazo determinam o modo como vou encarar o processo de escrita. Quando o texto em questão é uma tese, por exemplo, em algum momento vai ter que ser criada uma espécie de meta diária. Mas no geral escrevo em períodos concentrados; a procrastinação só é uma realidade alegre para mim porque sou bastante eficiente quando sento para a escrever. No fundo, sinto que ela me dá os subsídios necessários inclusive para escrever de maneira eficiente. Talvez o que eu chame de procrastinação é esse momento muito importante em que estamos escrevendo ainda no ar, sem papel, caneta, laptop; brincando com as nossas sinapses, fazendo com que elas se reconectem com amigas distantes, às vezes (quase sempre) oferecendo a elas substâncias variadas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Começar é a pior parte. É como ter uma palavra na ponta da língua e não conseguir enunciá-la. Escrever é difícil porque é uma forma de colocar as ideias à prova. Quer dizer, a questão é como articular aquilo que ainda está na ordem da intuição. Quase sempre sei o que quero escrever, mas não sei muito bem como, porque não dá para escrever de modo esférico. O começo é importante porque é o lugar onde esse “como” vai ser definido, mesmo que depois o texto tome uma guinada e vire outra coisa. Então eu fico olhando para a tela do computador, tento pensar em uma forma divertida e inesperada de entrar no tema, algo que é periférico ou tangencialmente conectado ao tema para começar a armar o texto. Olho muito para a tela do computador, desisto da minha própria desistência, volto para a varanda e tenho uma ideia. Na verdade, não é bem uma ideia, é a descoberta de um ritmo. É difícil, mas também tem uma coisa deliciosa da descoberta do começo, porque ainda é um momento em que as possibilidades para o texto estão muito abertas. Escrever um texto que nunca pare de começar – é uma boa maneira de escrever textos vivos. Minha tese tem duas introduções. A introdução de um texto imaginário que em algum momento eu quis escrever e a introdução do texto que eu escrevi. Terminar um texto talvez seja muito mais difícil; no caso de ensaios acadêmicos os prazos estão aí para decretar o término do texto, para poemas é muito mais complicado – e por isso sinto que estamos quase sempre escrevendo variações de um mesmo poema.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Escrevo com afeto profundo, sobretudo. Imagino destinatárias para o texto. Podem ser amigues, podem ser inimigues. Depende do texto. Derrida define a literatura como a forma de escrita para qual não há um destinatário claro – me parece certo; é a garantia de sua existência pública. No entanto penso na escrita sempre como uma maneira de interlocução atravessada pelo desejo de encantar o mundo, de colocar-se em um circuito de generosidade, de entrar em uma conversa que já está em marcha há séculos. Também considero importante fomentar espaços físicos e mentais onde posso esquecer de que tenho qualquer relação com a escrita, de que sou uma pessoa letrada, de que algo como o alfabeto foi imaginado. Deitar na grama, olhar para a copa das árvores, ver as folhas balançando, esquecer que a gente nasce e já vai pra escola. Tem um poema da Ana Martins Marques (num livro feito em correspondência com Eduardo Jorge) onde ela diz que em uma entrevista Jean Cocteu responde que se a sua casa pegasse fogo, salvaria o fogo. É isso, o fogo tem que prevalecer diante disso que projetamos como as expectativas alheias, como o texto ideal.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Vou revisando enquanto vou escrevendo. É um pouco obsessivo, mas releio muito os meus parágrafos e só avanço se considerar que está bom. No final já estou esgotada e espero que o universo perdoe meus erros de digitação. Com poemas mexo neles até sentir que sobrou só o necessário, depois releio até começar a achar que estão horríveis; nesse ponto decido que estão prontos e que já não me pertencem mais. No geral tento mostrar meus trabalhos a amigues com quem compartilho afinidades de escrita, gente que admiro e gosto de ler. É bom também fazer parte de grupos de estudo, oficinas de poesia. Esses são espaços de interlocução garantida, em que há uma ideia de produção compartilhada. A publicação, no entanto, não encerra o texto, dá para retomá-lo ainda depois disso, começar de novo, não sei se um texto fica pronto de verdade.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo muito no rascunho do meu gmail. É o meu bloco de notas quando estou na rua. Minha letra é complicada e escrever em movimento não é possível se a intenção for poder entender o que está escrito depois. Em casa tenho caderninhos e bloquinhos e post-its, sem nenhum critério de organização. Há muitas ideias e versos dispersos por diversos lugares. É sempre bonito reencontrá-los. Mas também escrevo coisas na mão, no braço. Às vezes pego no sono e minha cara acorda manchada. No geral eu escrevo como eu jogo bola, rabiscando. Começa aí, mas depois preciso passar para o computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
A leitura, como disse acima, é o elemento mais importante para eu ter ideias. Principalmente a leitura de coisas que não estão necessariamente implicadas no meu tema. Mas andar pelo centro de São Paulo, olhar para o mundo com curiosidade, encontrar os absurdos que constituem toda obviedade, tudo isso é imprescindível. Ver vídeos de animais marinhos, pirar nos polvos. Variar a pergunta. Não falar só por falar ou escutar só por escutar. Ficar em silêncio. Duvidar dos adultos, conversar com crianças. Sempre variar a pergunta. Não se levar muito à sério nem ficar muito perto de gente que se leva muito à sério. Lançar na roda ideias, mais do que nomes. Ter muitas histórias nos bolsos e roubar versos bons por aí. Não se importar quando alguém roubar algum seu. A criatividade é a disposição de olhar o que já está aí de outra maneira. Num mundo de terraplanistas querer reinventar a roda. Saber ficar sozinha e saber colar junto. Lembrar de Adília Lopes: “Deus é um boomerang / e eu sou a sua filha pródiga”. Ou de Cecilia Pavón: “Para escribir um poema hay que sentirse rara”.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Sou espiritualmente menos emo, embora defenda o melodrama, a música brega, a sofrência bem-humorada. Outro dia li um poema num sarau e uma menina que não acreditava no amor (palavras dela) falou que meu poema era meloso. Eu ri muito, porque fazia calor, era pré-carnaval e eu estava embriagada, mas também porque mel é bom, tem uma viscosidade necessária, e se por acaso lambuzar muito é só passar na água. Acho então que eu diria que o mundo pode ser um lugar horrível, mas que só vale a pena escrever sobre isso se for para rir ou sair com o coração quentinho ou chapada no silêncio do assombro. E que adjetivos devem ser evitados. Assim como o tom épico. Que cochichar é mais gostoso do que gritar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Acho que qualquer livro que ainda não existe e vale a pena ser lido é um livro necessariamente inimaginável. Estou contando com a surpresa. Da minha parte, eventualmente quero publicar um livro de poemas com isbn e lombada, mas um livro preciso que não seja apenas uma seleção aleatória de tudo que já escrevi. A gaveta pode ser um lugar muito digno, assim como os blogs, as revistas eletrônicas. Respeitar o papel e respeitar as árvores. No fim do meu pós-doc gostaria de ter um livro pronto acerca do meu tema de pesquisa, que são as poéticas da terra.