Mariana Portela é psicóloga e escritora, autora de Viver é fictício (Editora Laranja Original).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou uma pessoa lunar. Entanto, ando brigando com essa parte. Nos últimos tempos busco me conectar mais com o dia. Mas ainda me é difícil escrever logo nas primeiras horas. Rotina, seja de dia, seja de noite, é algo complicado. Eu não gosto de me sentir aprisionada. No último ano e meio estou trabalhando home office, o que me dá a liberdade de escolher como organizo meus afazeres. A escrita, majoritariamente, ocorre à noite. Durante o dia eu procuro fazer longas caminhadas, que trazem as inspirações para os textos. Morar em uma cidade linda como Lisboa ajuda muito.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
As madrugadas são as melhores amigas da minha escrita. Quando a cidade está adormecida e os ruídos das pessoas foram apaziguados. Preciso de concentração para escrever. Contudo, gosto de colocar músicas (clássica, jazz ou música de yôga). Tenho sempre um dicionário aberto, alguns livros pela mesa. Dependendo do que vai ser escrito, abro uma garrafa de vinho, que acaba por durar horas. O primordial é o silêncio.
Nesta nova fase da minha existência, a fase solar, tenho aprendido a escrever em qualquer momento do dia. Aproveitar a claridade para conectar às entidades diurnas. A escrita noturna é repleta de personagens distintos, mais sombrios, mais profundos e complexos. Escrever de dia me traz à luz uma simplicidade necessária. E este é, atualmente, o maior desafio que me impus.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não existe nenhuma regra. Eu tenho sempre um caderno comigo. A cada espanto, uma frase. A cada sítio que mereça ser descrito, um verso. Pode ser o azul mais azul de todo esse planeta, que abriga a cidade eleita por mim. Podem ser os telhados encarnados. As cores das pessoas que passam, alheias à minha caneta. Uma flor que pousou na mesa. Só é preciso estar atenta às sincronicidades que a vida me dá de presente. E a caneta, sempre a caneta. Para mim, não existe literatura sem os rascunhos, às vezes pobres, às vezes incompreensíveis, às vezes psicografados. Como disse em uma crônica: “as canetas são as avós do futuro.”
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A pesquisa, muitas vezes, nasce de uma curiosidade obsessiva. Na imensa maioria das vezes, são as pessoas que me despertam. Pode ser a fala de um amigo astrólogo que me faz ir atrás de todo o conhecimento possível sobre determinado assunto. Às vezes uma conversa de bar me possibilita encharcar-me em epifanias. A fala dos vizinhos, no café da esquina. É um processo orgânico e sem entraves burocráticos. Mas, quando tenho uma ideia, mesmo que pareça pronta e rebuscada, ela se transforma em algo nunca antes pensado, quando começo a escrever. A literatura me espanta o tempo todo. Jamais escrevi nada sem me encontrar com o verdadeiro mistério. Ele pode se apresentar de uma forma dolorosa, com os elementos internos que não quero confrontar. Ele pode vir doce, com versos recém-nascidos perfeitos, que sou incapaz de revisar. Ele pode vir hermético, de uma escrita futurista, a qual sou incapaz de compreender, por anos. Sem o mistério eu jamais escreveria.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando morei em Lisboa pela primeira vez, em 2008, escrevia todos os dias, exaustivamente. A solidão e o desamparo me eram as grandes companheiras. O inverno também me ajudou. Era fácil ficar em casa e derramar toda a poesia que habita o imaginário gélido. Só que o verão sempre volta. A vontade de sair à rua torna-se mais forte que nossos dedos. Apaixonamo-nos por estrangeiros. E, nesta altura, ser feliz me custava o não escrever. Jamais, naquela época, pensava a mim mesma como uma escritora da felicidade. Portanto, na época de ser feliz, não escrevi uma linha. Passei seis meses sem me dedicar à literatura. Meu melhor amigo, quando confessei isso a ele, disse-me à surdina: “você também precisa viver para ter material, posteriormente”. Aquela frase, tão óbvia, quase ingênua, tem sido a resposta para todas as minhas aflições literárias. Se não estou a escrever, é a vida que me tem escrito. E eu aceito.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nunca fui muito fã de revisões. Gosto dos textos que vem num sopro só, quase irretocáveis. Contudo, a maturidade mostra que essas inspirações são ínfimas e quase impossíveis. Sendo assim, se um texto ainda precisa ser retocado, deixo-o dormir. Caminho o máximo que posso, para orientar os pensamentos. Depois, quando presumo que está pronto, meu pai (Fernando Portela) sempre está disposto a me corrigir, a me ensinar, a lapidar meus dizeres. E agradeço ao Universo por ter esse privilégio. Nascer numa família de escritores tão sensíveis e tão rigorosos. O fardo e o dom dessa jornada.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
As primeiras ideias estão sempre escritas no caderno, que carrego comigo para todos os lados. Já o apoiei na lixeira, desesperada em não perder o insight. Já interrompi a fala de alguém, alerta à genialidade da pessoa. Já fiz pessoas irem embora de um café, porque fui acometida por alguma inspiração. Depois disso, tudo vai para o computador. Sou um zero à esquerda com tecnologias. Basta ter um word, internet e pronto. Não consigo me entender com nada muito sofisticado. As pessoas hoje em dia são escravas dos celulares. Eu jamais abandonaria meu caderno por notas eletrônicas. A gente nunca sabe quando a tecnologia vai nos deixar na mão. Os cadernos, por sua vez, além de fixarem a construção de um novo mapa mental em nossos cérebros, trazem o conforto da veracidade. Eles são vivos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As pessoas são uma das principais fontes de criação. Conversar, muito, sobre tudo. Leituras também se fazem obrigatórias no processo criativo. Tenho meus mestres amados, que sempre me desanuviam as ideias. Fernando Pessoa e Clarice Lispector, todas as vezes em que me vejo perdida. E tantos outros, que aparecem em sincronicidade com algum tema. Lisboa é, pois, a maior musa inspiradora. Andar pela cidade e escutar seus fantasmas, suas histórias, suas personagens insanas. Já não me lembro qual autor disse que as caminhadas, todos os dias, são aliadas à literatura. E eu concordo plenamente com isso.
Acima de tudo, estar atenta. Não subjugar o Universo. Os sinais estão ao nosso alcance, se os olhos estiverem intactos para os alumbramentos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Como disse anteriormente, estou em busca de uma escrita solar. Simplificar minhas ideias. Deixar os exageros que tive, outrora. Palavras rebuscadas, pensamentos herméticos, versos intraduzíveis. Gostava imenso de escrever difícil, tempos atrás. A poética sempre me causou um sofrimento tão grande quanto o prazer. Eu diria a mim mesma que as formas simples são tão genuínas quanto as complexas. E que há poesia em tudo, mesmo na maior podridão, na sujeira, nas sombras de mim mesma. Eu tentei me livrar das partes mais sombrias para escrever bonito. Hoje, desejo incorporar essa solidão e trazê-la à tona. Não há fronteira que a poética não seja capaz de transpor.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Adoraria escrever letras de música. Tenho uma porção de amigos compositores, talentosíssimos, que me dão uma vontade absurda de me aventurar nessa área. Sonho com isto, todos os dias.
Sobre os livros imaginados tenho três projetos meus. Um de não-ficção, acerca de uma vivência muito dolorosa que me fez entrar em contato com o último degrau de minha solidão; um que comecei e o chamo de “filho”, que é um romance com duas formas de escrever (em português de Portugal e português do Brasil); o último é a consequência da não-ficção, mas que dialoga com o mágico, o impossível, o divino. Tenho um grave defeito com a literatura: escrevo muito menos do que deveria. Portanto, não sei quando terei algum desses projetos finalizados.
Amo realismo mágico e seria maravilhoso me deparar com escritores que tivessem o estilo de Cortázar e García Marquez, novamente. Ou poetas magníficos como o Pessoa. Às vezes o procuro, nas escadinhas, nas vielas, nos becos. Sempre o encontro e desvelo escritos surreais. E a vida se torna fantástica quando isso acontece.