Mariana Paiva é escritora, jornalista e doutoranda em Teoria e História Literária na Unicamp.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha única rotina matinal – além de acordar, é claro (risos) – é ouvir música enquanto tomo café. Preciso. Tenho uma trilha sonora especial para isso no Spotify: uma lista de músicas chamada “bom dia”, que estão ali para me ajudar a isso mesmo, a fazer com que o dia seja bom (ou maravilhoso, porque sou leonina e gosto de intensidade (risos)). O dia começa para mim quando a música começa a tocar, vai me dando um ritmo bom e tranquilo para eu levar o resto do dia. Tenho minhas preferidas. Durante muito tempo, comecei meu dia com The prettiest star, de David Bowie. Já teve Como se fosse a primavera, de Chico Buarque. Acho que agora fico com Beautiful, de Carole King, de um disco lindo, Tapestry, que comecei a ouvir por indicação de meu amigo Marcelo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sempre gostei de escrever à tarde. É muito louco, mas a luz importa muito para mim na hora de escrever. A luz da tarde é bonita e eu gosto. Faço assim desde a adolescência, quando levava meus cadernos para a cama de meus pais e passava a tarde lá escrevendo e ouvindo música. Até hoje funciona mais ou menos assim: escolho uma trilha sonora e ponho para tocar. Fico me distraindo com outras coisas até que começo a escrever num fluxo contínuo. Minha escrivaninha fica posicionada quase em frente à janela – que na verdade é uma porta para a varanda – pra luz ficar do jeitinho que eu gosto. Ah, e tem que ter sol. Sou bem solar, amo sol. E música, né? Sou bem musical, preciso encontrar a música certinha – que peça de mim a atenção exata e que tenha a ver com o que estou sentindo – para escrever. Com a luz e a música, aí sim escrevo. Não é uma regra, posso escrever de manhã ou à noite, mas prefiro à tarde. É quando tenho mais vontade.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Todo dia eu escrevo alguma coisa, mesmo que seja uma ideia pequenininha. E escrevo coisas muito diferentes ao mesmo tempo, vou escrevendo o que e quando me dá vontade. Acontece, às vezes, de eu ouvir alguma frase ou ler alguma notícia e aquilo fica grudado em mim até que eu escreva. Escrever me alivia, faz o mundo parecer vivível para mim. Não é muito como um luxo ao qual me dou, é alguma coisa que faço porque preciso, porque preciso palavrear o que sinto. Pode ser que eu esteja no finzinho de um livro e me dê vontade de escrever uma crônica, uma resenha de livro, um poema. Tudo bem. Tenho minha tese de doutorado mas nem sempre estou na vibe, tem dia que eu só quero poesia. Tudo bem também. Uma coisa que nunca fiz foi transformar escrever – que é a coisa que mais gosto – em obrigação, nem mesmo quando trabalhava em jornal diário. Sempre escrevi com tesão, feliz, contente. Continuo assim…
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Fico um tempinho flanando, ouvindo música, passeando e me distraindo com qualquer coisa. Uma hora eu começo. Posso andar, conversar, falar ao telefone, regar o jardim, sei lá. Uma hora acontece. Não demora. Tem sido assim sempre – assim espero que continue sendo, aliás. (risos) É como se fosse um joguinho de quebra-cabeça, na hora em que você vislumbra o desenho que você quer, é só juntar e encaixar as peças. Gosto demais disso. Se for uma escrita que me peça pesquisa, como a tese de doutorado, sim, só deslancho na escrita depois de ler e fichar tudo. Se não, se depender só mesmo de meu repertório, do que eu já tenho, não preciso de mais nada. Tempo a gente arranja para o que a gente quer muito.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acontece. No início eu tinha muito medo, especialmente quando comecei a escrever mais e a levar mais a sério, me angustiava muito o tempo de silêncio na escrita, onde nada flui, nada acontece. Em geral, quando estou muito feliz prefiro viver a escrever. Sei disso desde a adolescência: quando eu estava feliz, as páginas dos diários ficavam vazias. Felicidade é um negócio intransitivo, não precisa de palavra para teorizar não. Isso eu sei muito. Se a vida flui sem grandes montanhas russas, aí sim eu tenho tempo e disposição para escrever. Não é que um jeito seja melhor que outro: até esse da vida mais tranquila me deixa feliz também porque estou escrevendo, resolvendo a vida, sendo produtiva. Então eu fui aprendendo a lidar com o silêncio, com aquele tempo em que não escrevo nada assim. Vivendo. Foi o jeito que achei, e gosto. Gosto muito. Quanto à ansiedade de trabalhar em projetos longos, tenho lua em gêmeos, tenho medo – muito – de enjoar das coisas longas. Então eu começo a escrever e deixo o tempo cuidar do resto. Quando tenho vontade, volto. Uma vez que não sofro pressões externas para terminar logo, tô de boa e me concentro em outras coisas que estou com mais vontade de escrever. Deixo assim bem livre.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Em geral, eu escrevo de uma só vez. Sento e escrevo. Aí dou duas lidas e é isso. Nunca volto a um poema ou a um texto depois que escrevo, gosto muito do que aquele momento específico é capaz de fazer pelo texto. Claro que tem coisas que depois me arrependo, mas tento respeitar o tempo, o instante em que o texto foi escrito. Não mexo mais, e levo isso bem a sério. Não é sempre que divido com alguém meu texto antes de publicar: as crônicas que publico em meu blog, por exemplo, vão direto para lá, sem passar por ninguém. Os outros textos, só quando já estou bem segura do que fazer com eles. Mas tenho meus leitores e minhas leitoras de confiança, aquelas pessoas a quem eu pergunto o que acham e sei que vão falar a verdade. É uma sorte, um luxo, a coisa mais preciosa que alguém pode ter: gente sincera por perto.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Adoro tecnologia. Escrevo como sentir que devo, naquela hora. Tem dia que quero escrever em um dos vinte mil caderninhos que tenho em todo canto, tem vezes que prefiro escrever no computador… depende. Isso aí eu não sei explicar. Talvez eu escolha o que estiver mais fácil na hora, do que estiver mais perto, do jeito mais simples naquele momento. Não sei muito se é isso ou não. Mas não rascunho, então já é o jeito definitivo, o que vai ficar, sei lá. Tem dias que até para a máquina de escrever eu vou. Vai entender… (risos)
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm principalmente do cotidiano. Eu presto muita atenção a tudo o que acontece perto de mim, gosto de tudo, tudo me interessa. Outro dia fiquei um tempão vendo uma borboleta enorme e azul que estava no teto do estacionamento do supermercado. Não sei se algum dia eu vou escrever sobre ela, mas fiquei pensando na beleza que se desperdiça presa em um lugar asséptico como um estacionamento de supermercado. Tem coisas que a gente nem precisa escrever porque já são, elas próprias, poesia. Está ali, pronta, não precisa de verso e nem de palavra para existir. É poesia. E também converso muito com as pessoas, quero saber a história delas, acho que todo mundo tem alguma coisa para contar. Então vai ficando fácil ter ideias, já que praticamente tudo o que eu vejo, ouço e sinto posso escrever. E, sim, eu me mantenho criativa. É meio desse jeito mesmo, tudo me interessa, gosto de novidade. Então tudo pode acontecer por aqui. Outro dia fiz um curso maravilhoso de pintura com lápis de cor com uma professora incrível (Daniela Galanti). Foi lindo. Eu, que sempre achei que não sabia desenhar (muito menos pintar), desenhando e pintando. Tudo pode acontecer, né? Então o jeito de me manter criativa é criar. É ler tudo, tudo o que aparece. Ouvir músicas que eu não ouviria normalmente. É imprimir lambe-lambe de poemas que eu amo e colar no muro do quintal, é dançar, cantar, aprender uma língua nova, mergulhar… Tudo o que for experiência me mantém criativa. Parece inesgotável, e talvez seja mesmo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mais mudou desde que eu comecei foi o tom. Entendi que escrever a partir de minha experiência não é inválido, mas que não precisa necessariamente ser em primeira pessoa e do jeito mais escancarado de todos. Tenho me esforçado para deixar um espaço de criação para quem lê. Esse é o tom que eu procuro todos os dias, um tom de convite subentendido. Sabe quando, em vez de chamar alguém para entrar em sua casa, você apenas abre espaço com o corpo? Quero escrever assim. Foi isso o que mais mudou: tenho chegado “mais para lá” para deixar espaço para quem vem. E quero mais, muito mais. Se eu pudesse voltar à escrita de meus primeiros textos, eu diria para mim algo que Tom Zé me disse há uns cinco anos, em meio a um abraço, lá em Salvador: “Escreva. Escreva sem frescura, sem afetação, escreva. É só isso o que você tem que fazer”. Assim definitivo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho ideias para escrever dois livros que transformam fatos históricos em ficção. É que a realidade às vezes é bem mais surreal que a ficção, né? E o livro que eu queria ler e que ainda não existe… acho que é um dos que vão ser lançados em breve. Eu quero sempre ler as novidades, ler o que nunca li, reler de outro jeito. Livro nunca acaba. O melhor é sempre o seguinte…