Mariana Mota Prado é professora da Faculdade de Direito da Universidade de Toronto.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa com café. Bebo enquanto ouço notícias no rádio e dou uma olhada nas manchetes dos principais jornais. A rotina é sempre a mesma, mas a duração varia dependendo do horário da minha primeira reunião. Às vezes é 10 minutos, mas eu gosto mesmo quando dura uma ou duas horas. Infelizmente, esse prazer de se perder na internet e ler um pouco de tudo tem ficado cada vez mais escasso.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto de escrever antes de fazer qualquer outra coisa relacionada ao trabalho. Ou seja, o meu dia ideal é aquele em que eu acordo, tomo café, dou uma olhada nos jornais e começo a escrever. Mas raramente dá pra fazer isso durante a semana. Portanto, escrevo bastante no fim de semana, quando dá para desligar o e-mail e ficar concentrada horas a fio, sem culpa.
Com alguma frequência, todavia, sou obrigada a escrever durante a semana. Em geral, isso acontece porque estou com a corda no pescoço: o prazo é amanhã e eu assumi o compromisso e não posso furar. É impossível começar um projeto nessas condições, mas às vezes é preciso terminar um. Nesses casos, não tenho um horário preferido, mas sim condições ótimas de trabalho: minha cabeça precisa estar limpa e eu preciso estar em um local onde não vou ser interrompida.
Abrir o e-mail antes de começar a escrever é um desastre – é muito difícil se concentrar depois de receber uma lista de tudo que você precisa resolver (hoje, de preferência!). Escrever depois de dar aula é praticamente impossível. Reuniões administrativas são como e-mails – ocupam sua cabeça com tarefas que ficam interrompendo a escrita. Quando estou nessas condições não ideais, em geral eu preciso fazer alguma atividade física para conseguir me concentrar. Com frequência, eu corro uma meia hora. A corrida em geral dá um “reset” e é quase como se eu tivesse começando o dia naquele momento. Pra não ser interrompida, em geral eu opto por escrever em casa, ao invés de ficar na faculdade.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Meu sonho é escrever todos os dias. Mas, como eu digo para meus alunos, “life happens”. É preciso muita disciplina e um emprego muito generoso (onde você tem muita flexibilidade de horário) para conseguir achar tempo para escrever todos os dias.
Eu certamente preciso de períodos de trabalho concentrado para produzir um primeiro rascunho. Para um artigo, por exemplo, em geral eu bloqueio minha agenda na sexta-feira, fico em casa e trabalho três dias seguidos até domingo à noite para produzir um primeiro rascunho. Depois disso, é achar tempo durante a semana, ou bloquear outros fins de semana, até terminar.
Não tenho meta diária. Tenho compromissos e os prazos ajudam muito. Como diz Samuel Johnson, “the prospect of hanging highly concentrates the mind”.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Escrever é um mecanismo para explorar e organizar minhas ideias. Em geral, eu começo a escrever sobre uma ideia antes de ler mais cuidadosamente sobre o assunto. Articulo o que eu acho ser uma pergunta interessante e levanto possíveis respostas. Só quando isso está formulado, eu começo a ler. Às vezes eu descubro que alguém já tinha articulado essa ideia e eu abandono o projeto. Às vezes eu descubro que alguém já fez a mesma pergunta, mas ofereceu uma resposta distinta. Daí eu vejo se a minha resposta acrescenta alguma coisa. Na maioria das vezes, minha resposta pode acrescentar algo, mas preciso trabalhar mais nela. Daí eu leio mais, e volto a escrever.
Portanto, meu processo não tem uma ordem definida de pesquisa e escrita – eu vou pra pesquisa quando articulei a ideia e preciso ver se ela procede; volto para a escrita quando eu acho que tenho alguma coisa para dizer com o conhecimento que eu acumulei até aquele ponto. O ciclo se repete até sair alguma coisa coerente, ou até eu decidir que não vai dar em nada e abandonar o projeto. Enfim, eu não tenho um plano elaborado no início que eu simplesmente executo. O projeto vai mudando e se transformando ao longo do processo e a escrita é um instrumento fundamental para descobrir o que eu quero dizer.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando li a pergunta, eu fiquei tentada a responder que eu ainda não consegui lidar com essas coisas. Isso é um problema grande e a internet é um dos maiores prazeres e um dos maiores problemas na minha vida. Daí eu pensei: bom, eu terminei um doutorado e tenho escrito com frequência desde então. Portanto, alguma coisa eu fiz pra conseguir lidar com isso…
Acho que desde que eu terminei meu doutorado, subconscientemente eu desenvolvi algumas estratégias para minimizar o dano. Primeiro, com frequência eu escrevo em co-autoria. Não apenas é um prazer poder trocar ideias com outras pessoas, e ter alguém tão investido no seu projeto quanto você, mas impõe também disciplina. Há uma pessoa esperando (ou perguntando onde está) o rascunho que você prometeu. Segundo, eu me inscrevo em várias conferências. Quase sempre eu recebo sugestões e críticas que são muito úteis para aprimorar meu trabalho, mas o mais importante é que há prazos. Você precisa mandar o rascunho, não tem como escapar. Como eu disse anteriormente, “The prospect of hanging…” Terceiro, eu estabeleço pequenas metas durante o dia (terminar uma seção, por exemplo) e como recompensa eu me dou o direito de gastar tempo lendo coisas na internet. Em períodos intensos de escrita (como alguns dos meus fins de semana), a internet serve como um bom intervalo e também como motivação.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Como eu descrevi anteriormente, meu processo de escrita e pesquisa não tem ordem. O resultado é que eu reviso meus textos (às vezes radicalmente) muitas vezes antes de mostrar para alguém. Para começar a circular o texto, eu preciso primeiro chegar em um ponto onde o argumento está claro e coerente. Isso exige muita revisão. A exceção aqui são os co-autores. Essas pessoas vêem rascunhos muito antes deles estarem minimamente coerentes. Faz parte do processo de discutir o projeto e deliberar qual o produto final.
Uma vez que tenho um rascunho coerente, eu sempre mostro para outras pessoas antes de mandar para publicação, sejam colegas que trabalham na área, sejam os participantes de uma conferência. É muito difícil para uma pessoa sozinha enxergar as falhas de um projeto. Enviar para outras pessoas é o momento de “accountability”. É quando você verifica se deixou de fora alguma coisa importante.
Durante meu doutorado, eu lembro que eu sempre ficava aterrorizada com o momento de mandar o rascunho para minha orientadora e outros membros da banca. Depois que eu terminei a tese, eu vi que ter aquele grupo atento de leitores na verdade era um privilégio. Uma vez que você termina o doutorado, você precisa implorar para que as pessoas leiam seu rascunho. Na maioria das vezes, é um favor. Todo mundo está ocupado, correndo. É muito difícil achar aquele leitor atento que vai te ajudar o máximo possível. Portanto, minha recomendação para os mestrandos e doutorandos é essa: ao invés de ficar aterrorizados pelo orientador e pela banca, aproveitem o privilégio de ter leitores cativos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre no computador, desde o mestrado. Em geral eu carrego um caderno de rascunho onde rabisco alguns pontos, ou anoto coisas que preciso ler, mas sempre sento no computador para articular uma ideia.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Em inglês, eles dizem que suas ideais vêm dos três Bs: “bath, bus and bed”. Para manter a aliteração, acho que dá para traduzir como banheiro, buzão e berço. O que a expressão sugere é que suas melhores ideais surgem quando sua mente desliga. Ou seja, o cérebro faz conexões inesperadas quando você está fazendo algo mecânico (tipo tomar banho), quando você está simplesmente olhando pro nada (buzão) ou quando vocês está tentando relaxar (na cama, logo antes de dormir).
No meu caso, a expressão cai como uma luva. Em geral, o cerne da ideia surge quando eu não estou trabalhando. Muitas vezes eu penso na ideia quando fazendo exercício físico (eu corro com alguma frequência). Daí eu anoto a ideia no caderno de rascunho e tento achar tempo para sentar e escrever mais. Às vezes a ideia fica no meu caderno por anos, antes de ser desenvolvida…
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Acho que meu desapego aumentou ao longo dos anos. Quando você está fazendo seu doutorado, parece que cada linha vai determinar seu futuro. Você acha que uma única afirmação errada por destruir sua carreira. Com o tempo, você vê que não é bem assim.
Se eu pudesse bater um papo comigo mesma durante meu doutorado, eu diria pra mim mesma que, em média, um artigo acadêmico é lido apenas pelo autor, pelo editor da revista e pelos revisores. Ou seja, apenas três pessoas além de você vão ler isso. É o mesmo número de pessoas em uma banca de mestrado e menos do que na banca de doutorado. E, como eu disse em um resposta anterior, esses leitores cativos (orientador e membros da banca) são um privilégio, não uma ameaça. Se eu soubesse disso no meu doutorado, eu teria sofrido menos com vários capítulos e talvez algumas publicações teriam saído muito mais rápido.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um projeto que eu estou trabalhando há muito anos é o “institutional bypass”. O projeto começou, mas não termina nunca. Saíram alguns artigos, mas o livro está entalado na minha garganta. Acho que esse é a principal prova de que eu ainda não consegui resolver totalmente as questões das travas.
Eu adoraria ler um livro sobre as idiossincrasias do sistema jurídico brasileiro. Quanto mais eu leio sobre direito comparado, mais eu acho alguns arranjos institucionais no Brasil muito obtusos. O sistema recursal é um exemplo. Na maioria dos países do mundo, você recorre da decisão judicial – não tem mecanismo recursal para tudo que o juiz faz. Queria muito ler um livro que listasse essas idiossincrasias e explicasse em linguagem acessível porque elas não fazem o menor sentido e só atravancam o bom funcionamento da justiça no Brasil.