Mariana Marino é escritora, doutoranda em Estudos Literários pela UFPR.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A rotina varia um pouco entre os dias da semana e o fim de semana. De segunda à sexta, costumo acordar bem cedo, comer um mingau de aveia com frutas e me exercitar. Por ter uma questão crônica no pulmão, é imprescindível que eu me exercite, senão perco o fôlego fácil ao fazer as tarefas mais banais (como estender roupas!). Então, faço exercícios funcionais e estou desenvolvendo o gosto pela corrida também. Depois disso, cuido da casa, vario os dias de lavar roupa, aguar e limpar as plantas. Até a hora do almoço, leio: notícias ou poemas ou entrevistas ou pego o que estou lendo no momento, respondo algumas mensagens. Quando estou com algum projeto de tradução, trabalho nisso. No final de semana, costumo acordar um pouquinho mais tarde, organizar a agenda da próxima semana (entre leituras literárias e teóricas), leio bastante e costumo cozinhar algo mais elaborado na hora do almoço.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Durante a graduação, sempre estudei à tarde. Então, condicionei o meu ritmo de estudo e escrita para esse período do dia. Sinto que escrevo e pesquiso melhor durante o dia. Quando necessário, estendo o trabalho para a noite, apesar de ter uma certa dificuldade de me concentrar sem luz natural — era algo que gostaria de exercitar, já que são períodos geralmente mais silenciosos, mais próximos do estado de sonho.
Em relação ao preparo para a escrita, a mesa tem de estar bastante arrumada, o ambiente em volta também. Às vezes escrevo na sala, outras no escritório (o que gosto mesmo é de usar a biblioteca da universidade). Não importa o local, visualmente, ele tem de estar bastante arrumado. Mesmo que depois uma pequena bagunça se instale, entre livros, anotações, ao final do dia de trabalho, costumo arrumá-lo impecavelmente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo diariamente, apesar de não estabelecer metas. Estou sempre a fazer anotações, escrevendo e reescrevendo ideias para a pesquisa e para alimentar o corpo de alguns poemas. Das leituras, sempre me vem a necessidade de traduzir uma coisa ou outra também. Então, de certa forma, a escrita acompanha meus processos diários, mas confesso que gostaria de ter, como boa capricorniana, uma rotina mais coesa em relação à escrita de poesia, principalmente.
Quando, por exemplo, estou para fechar um projeto, seja ele uma fase da pesquisa, uma tradução, tendo a trabalhar melhor em períodos concentrados. Sinto que escrevo mais quando estou em troca mais efusiva com outras pessoas, quando circulo mais, quando é possível passar algumas horas fora de casa. Para algumes, o período de isolamento que estamos vivendo desde o ano passado alimenta melhor as escritas, essa solitude que sei que é necessária para organizar e fazer emergir as ideias; mas é quando estou mais em contato pessoal (e físico) com pessoas, com amigues, com familiares, que essa força emersiva vem com menos dificuldade. Sinto muita falta, por exemplo, dos encontros quinzenais que tínhamos com a Membrana, grupa literária da qual faço parte: dali, sempre brotam essas oportunidades de alimentar o imaginário, dar corpo a ele, para depois, mais tarde, em silêncio, fazê-lo vir à tona, atingir outra concretude que não a da ideia, mais deslizante. Sei que é possível compartilhar e trocar por outro meio que não seja o presencial, porém percebo que meu processo é impactado diretamente pela falta da possibilidade do(s) encontro(s) frente a frente, do afeto que atenua a necessidade da palavra.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Dizem que terminar um projeto é difícil, mas, para mim, sempre foi mais penoso começar, talvez porque haja muito explícita uma tendência ao perfeccionismo, uma tentativa de controlar cada momento da escrita. Essa rigidez, essas tentativas de previsão do próprio trabalho, sempre foram muito nocivas por aqui (apesar de eu notar que opero assim desde a infância), o que acaba minando um pouco a minha força criativa, que eu gostaria que fosse mais fluida, menos organizada, até mesmo mais espontânea em alguns momentos. Então, meus processos, até se iniciarem, são longos e bastante pesados. Diria que, em alguns momentos, a preparação é bastante obsessiva e meticulosa. Quando, por fim, dou início, o processo é mais rápido. Então, a pesquisa é sempre mais longa e difícil do que o próprio ato de escrever, que não é menos meticuloso, só um pouco menos rígido: é no processo de escrita que encontro algumas brechas para romper com a dureza por mim imposta anteriormente.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas de escrita geralmente aparecem em momentos em que os encontros, como falei mais acima, são escassos, o que dá espaço para a autossabotagem. A procrastinação aparece por aqui sempre, mas não por preguiça ou por falta de vontade em fazer qualquer coisa que seja, me vejo muito energética; ela vem, a procrastinação, como uma consequência de ter aprendido, como mulher, mesmo que ainda jovem, a viver uma vida dedicada para outras pessoas. Então, quando sou eu a escrever, a pesquisar, a fazer as coisas por mim, motivada pela minha vontade (e somente por ela), às vezes travo. Isso, adicionado à rigidez também já mencionada anteriormente, não permite que eu coloque alguns desses bloqueios em perspectiva, que os veja assim, como bloqueios e dificuldades que eu própria (mas não só) alimento. Então, tenho me permitido assumir uma certa vulnerabilidade, trabalhar com ela, mesmo que o receio de cometer um deslize esteja presente. O que tem me ajudado bastante nesse sentido, de me permitir vulnerável, é reconhecer e trocar com aliades que também escrevem, que também se sentem, em algum nível, atordoades com essa constância do receio em falhar ou em se expor. Acredito que essas trocas de experiências, motivadas pela vontade de construir coletivamente um lugar outro, seja no ambiente acadêmico (a gente sabe, né, que pode ser extremamente tóxico), seja nos campos do pensamento e de suas expressões, são essenciais para que a gente lide melhor com as desmistificações do fazer poético, do fazer acadêmico que, nem de longe, devem ser motivados por qualquer coisa que possa se aproximar de uma ideia de talento prodigioso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Quando se trata de poesia, num primeiro momento, costumo revisar poucas coisas, algumas gralhas de repetição de palavras, modificar as quebras de versos. Alguns poemas me vêm bastante prontos, já que meu processo de preparação, ruminação, é bastante longo, então, acabo fazendo uma revisão mais atenta quando dá certo de eu compartilhar o trabalho com aliades que também lidam com escritas literárias. Na Membrana, essa grupa de pessoas maravilhosas que escrevem, os trabalhos são sempre compartilhados e, por isso, podem se modificar bastante, então, estou sempre bastante aberta às sugestões de re-visão. Essas possibilidades de mudar o olhar para o que se escreve também acontecem em oficinas de escrita que têm esse intuito de trabalhar o texto de forma coletiva, não individualizada, que não estão focadas somente na contrapartida da mediação. Tenho gostado demais de participar de algumas, de estabelecer contato mais direto com pessoas que escrevem em outros estados, já que é viável adaptar algumas delas para o meio virtual. Além disso, compartilho a vida e o teto com meu companheiro, Yuri Amaury, que também escreve, pesquisa e, geralmente, ele é a primeira pessoa a ter contato com o texto, sugerindo algumas modificações. Ele é um leitor muito atento e generoso.
Em relação à escrita acadêmica, como é mais difícil ter essa interlocução com outras pessoas, porque o processo é ainda mais longo (assim como o texto geralmente também é), acabo fazendo mais revisões do que no texto literário, porque sei que é mais improvável que alguém o vá ler no processo de sua edificação (além, claro, do orientador). Então, ocorrem alterações bem bruscas até mesmo em relação à estrutura interna dos capítulos: estou sempre a reler, a mexer e a apagar, rs.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Bom, acho que depende do que se considera tecnologia, que pode se apresentar de uma maneira mais orgânica, em processos cotidianos, ou uma que chega até mesmo a tentar moldar nossos hábitos, se a gente pensar nos tais dos algoritmos. Tenho prestado mais atenção, por exemplo, ao uso indiscriminado que às vezes eu faço das redes sociais, e tento condicionar, ali, nos usos, outra postura, que é essa de não ficar refém e, ainda por cima, mais propensa a ver propagandas (ontem mesmo estava lendo um texto da Cristal Muniz sobre como a internet acaba virando shopping, sobre como tudo pode virar espaço de compra). Tenho aprendido a fazer pausas longas, a tentar ressignificar essa relação tão estranha que as pessoas podem ter com seus perfis públicos na internet, com esse compartilhamento excessivo de conteúdo, de produtos. Parece que, então, as redes sociais acabam criando outros padrões, principalmente em relação à produtividade intelectual: uau, tem tanta gente fazendo tanta coisa, a todo o momento, que é preciso ter discernimento para não ser sugade por essa lógica da exposição excessiva. Em contrapartida, acho que são espaços muito bacanas de troca e de acesso ao trabalho de outras pessoas; certamente as redes, nesse sentido, são facilitadoras (mas há que se ter muito foco para não ficar se comparando, para não acessar lugares ainda não pavimentados da ansiedade e da angústia). Eu acabei falando um pouco mais sobre a relação com a internet e com as redes sociais, mas há várias facetas do que pode ser considerado tecnologia (acho que o Rubens [Akira Kuana] comenta muito bem sobre isso na entrevista dele do dia 22 de outubro de 2020).
Em relação a tomar notas, fazer rascunhos, geralmente faço pequenas anotações e primeiras versões de escritos numa pasta chamada “Minhas Coisas” no Whatsapp. Depois, organizo-as em documento Word, em pastas direcionadas especificamente para poesia, tradução, ideias para a pesquisa. O que gosto de fazer à mão são anotações sobre aulas, cursos, oficinas: conservo uma pilha de pequenos cadernos, desde a faculdade, que só cresce (o que parece ser um pouco angustiante para quem vive num apartamento, rs).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias aparecem muito durante conversas, trocas com outras pessoas. Isso, dos encontros, é realmente algo que impacta a minha produção. Evidente que a fonte não é só essa, apesar de ser, no meu entendimento, a principal. Também me motiva a escrever a ideia de busca de genealogias, gosto de pensar sobre isso quando escrevo sobre as pessoas da minha família, principalmente mulheres. Gosto muito de ler sobre memória, de estudar sobre o Alzheimer, que acomete a minha avó materna há pelo menos quinze anos, de pensar sobre esses dispositivos da memória — sua permanência, sua invenção, sua perda. Durante o isolamento físico, foi necessário olhar para outras fontes que alimentam o imaginário, pequenas coisas cotidianas, além das leituras, para me manter ativa escrevendo. Não me considero uma pessoa tão criativa, como disse anteriormente, então, sigo na toada de manter rotinas minimamente organizadas para poder escrever.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Puxa, acho que muita coisa mudou e outras tantas aparecem constantemente para serem repensadas, modificadas. Como alguém que escreve, considero ser imprescindível questionar, principalmente, as origens e desdobramentos do que se pensa, trabalhar com o pensamento, modificá-lo, erigi-lo, estar confortável com ele, mas estar, acima de tudo, desconfortável com ele. Acredito que, então, o que tenha mudado, de fato, é que hoje sou uma leitora melhor (não uma leitora ideal, vamos fugindo aqui dos estereótipos): leio mais, aprendi a selecionar textos que me fazem, então, transitar entre esses estados do pensamento, confortáveis e desconfortáveis; (re)conheci (e continuo a descoberta de) pessoas que escrevem na contemporaneidade, acompanho seus trabalhos, tento dialogar com elas, quando possível; aprendi a encontrar meus pares, pessoas que escrevem e que estão abertas à coletividade; tenho entendido em quem confiar, para quem posso me expor sem receio de um julgamento truculento ou vazio, e esse é um processo que leva tempo, que exige dedicação. Se eu pudesse, diria a mim mesma, quando comecei a escrever, para não perder tanto tempo tentando me mostrar inteligente para pessoas pelas quais eu não nutria afeto (e achava que nutria, mas eram só resquícios de violência).
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria muito de escrever um romance sobre a vida da minha avó materna, Carolina. Entre nós, minha mãe e tias, a gente sempre disse que a vida dela daria um livro bonito e desconcertante. De uma família de onze irmãos, foi enviada à Angola para ser criada por uma tia, viu o despontar da revolução de independência do Congo Belga (hoje, República Democrática do Congo), retornou a Lisboa onde reencontrou, pela última vez, vários dos irmãos e irmãs, quase todos partiram muito cedo. Chega ao Brasil em meados dos anos sessenta, cria três filhas, dedica-se quase que integralmente, quando as filhas saem de casa, ao trabalho de assistência social, e ainda hoje canta, canta, apesar de já apresentar afasia por conta do estágio avançado do Alzheimer, ainda canta Amália Rodrigues sem dificuldade. Não nos reconhece, talvez não saiba nem o próprio nome, mas canta.
Já falei da Membrana aqui, sobre como esse ajuntamento de pessoas, trabalhos, escritas, pesquisas é tão importante para pensar em construir (e viver) outros tipos de relações, coletivas, não hierárquicas. Então, gostaria de ler um livro com essa produção, de pessoas que se movem em coletividade, algo como uma edição comemorativa pela grupa estar aqui, escrevendo na “Cidade, pavê de opressões” (para trazer um título de Ricardo Nolasco), sempre sem verba, sem ser contemplada por editais, mesmo promovendo tantas iniciativas. Já existem outras produções independentes da Membrana, e penso o quão bonito seria se o trabalho pudesse passar pelas mãos (e pelas fases) de um trabalho editorial cuidadoso em uma casa editorial afetuosa.