Mariana Ianelli é escritora, autora de O amor e depois.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
As manhãs raramente existem para mim. Como trabalho de madrugada, e isso há muitos anos, só funciono de manhã em caso de má notícia ou compromisso agendado. Em geral começo meu dia perto da hora do almoço, reservo esse tempinho para mensagens, notícias e minhas plantas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sempre trabalhei de madrugada. Tenho pequenas luminárias nos cantos da sala que ficam acesas. Trabalho meio ilhada no escuro. Uma luminária fica na mesa. O escuro para mim é um bom começo, é quando minha filha está dormindo, não tem o caminhão da pamonha na avenida, dá para ouvir melhor a casa e a rua, dá para pensar sem ser interrompida. Meu ritual é simples, mas levo um dia inteiro para poder chegar a ele: papel, caneta, café e umas cinco horas livres pela frente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho metas diárias, mas faço pequenos roteiros. Como escrevo crônicas quinzenais, estou sempre, mesmo distraidamente, sondando alguma ideia, uma imagem, uma notícia com potência de poema. Nem sempre anoto, às vezes prefiro esquecer para ver se a ideia ressurge, o que para mim já faz parte da escrita, testar o poder obsessivo de certos temas, a tentação de certas frases, não desgosto do risco de perdê-los. Há textos que são planejados, e nesses casos eu mesma me imponho um prazo, e outros que vão sendo escritos sem prazo algum.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Primeiro acontece mentalmente, sem papel nem caneta, a qualquer hora do dia, pode ser no banho, fazendo almoço, na rua. Quando a gente se dá conta de que a nossa cabeça pode ser, entre tantas coisas, uma oficina, um parque de diversões ou um jardim de oliveiras, aí dá para suportar até fila de banco. Também anoto aqui e ali, às vezes frases, às vezes só palavras. Quando me sento para escrever, tem já uma sondagem mental que andou acontecendo ao longo do dia e que conta muito. O que me move é geralmente alguma imagem, mas pode ser também uma expressão que me provoca, um verso de um poema, um provérbio, uma pergunta daquelas de criança que põe a gente de quatro procurando uma resposta, sem sucesso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Muitas vezes eu vou até a véspera do prazo final, para me dar um último alarme mesmo. Desde que comecei a escrever crônicas, quebrou-se uma certa solenidade, foi como descalçar os sapatos, uma intimidade com a palavra na maneira de dizer. Essa intimidade, de entrar no texto como a Irene do Manuel Bandeira entra no céu, assim, sem precisar pedir licença, tirou de mim um peso, porque, afinal de contas, por muito que a gente desconheça a própria casa, essa da linguagem, por muito que a gente desconheça de si mesmo, não é constrangido que alguém se aproxima do que ama. Existem muitos tipos de fantasmas literários. Tentações também, aquelas do deserto. Dá para passar por isso sem grandes danos quando a gente se desobriga de ser isso ou aquilo para os outros. Os projetos longos pedem algum remanejamento da rotina, costumo trabalhar em estado de imersão, mesmo que dure semanas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso até não ver mais nada, e é bem aí que os erros se aproveitam e vão adiante… Mostro meus textos para algumas pessoas que me acompanham nesta vida, são poucas pessoas, mas aqueles irmãos de alma, que me conhecem de outras vidas e estão comigo no meu pensamento todos os dias.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia é praticamente pré-histórica. Começo a escrever à mão, depois trabalho no papel e no computador ao mesmo tempo, até deixar o papel de vez. Nunca vou direto para o computador, ou escrevo em folhas soltas ou em caderninhos que vou renovando. Gosto de trabalhar com rasuras, ver os caminhos e descaminhos de um texto, a letra espremida no canto da folha, no computador essas brenhas se perdem.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Se há uma fonte autêntica, se há uma coisa que nos faz únicos, é a nossa própria história. Sabe aquele poema de Rûmî que diz “De casa em casa buscastes resposta. / Mas não ousastes subir ao telhado”? Então… subir ao telhado é como sincronizar fora e dentro. Não engulo fácil a ideia de acaso ou coincidência. Livros que descubro, livros que me chegam, coisas que me acontecem ou deixam de acontecer, amigos que vêm, amigos que vão, tudo faz algum sentido para mim, fantasioso que seja, as coisas se conectam umas às outras. Procuro estar atenta, observando, ouvindo, estabelecendo vínculos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Fui perdendo a cerimônia, muito por causa das crônicas, mas o que me transformou foi minha filha, que agora põe um sol nas coisas que vejo e penso. A gente acompanha o despertar de um filho para o mundo e é uma batalha selvagem para cuidar dessa inocência. Essa responsabilidade me transformou, me deu coragem, pôs alegria nos meus poemas. Já desprezei meus primeiros textos, não desprezo mais. Foram escritos aos dezessete, dezoito anos, tem lá uma parte de mim que eu reconheço, tem lá um prazer genuíno de escrever. Aprendi a considerar com carinho até o dispensável de muitas páginas. Tem quem entre na literatura já maduro, tem quem antes prepare bem o terreno. Não foi assim comigo, antes eu pus a mão na massa, fui escrevendo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um pequeno livro em prosa. Ainda vou levar um tempo para mergulhar nisso, mas já está no meu horizonte. Gostaria de ler um livro sobre Susan Sontag por suas mulheres. Um livro sobre as namoradas póstumas de Rilke, suas leitoras. Um livro de poemas para cada flor citada por Etty Hillesum em seus diários. Uma coletânea de poemas sobre estrelas.