Mariana Brecht é escritora, autora de “Brazza” (Moinhos, 2021) e de “Labirinto” (Jandaíra, 2021).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo meus dias em uma querela com o despertador. Adio a cada dez minutos até ver quem ganha (é sempre ele).
Gostaria de ter uma rotina e às vezes consigo, mas a verdade é que minha relação com a escrita é muito conflituosa: o impulso de escrever é o que mais me move e, ainda assim, passo a vida a esquivá-lo.
Passo o tempo a inventar desculpas para sair vitoriosa mesmo sabendo que não há ringue. Ou melhor, mesmo sabendo que a escrita e eu estamos condenadas a nos bater todas as manhãs.
E nessa luta morremos as duas.
E no dia seguinte, recomeçamos.
É desse conflito que tiro a energia para escrever.
Eu preciso começar no susto, me lançar na arena de supetão, porque nunca tenho certeza se vou sair viva.
Mas eu sempre saio.
.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como muitas pessoas que escrevem, eu levo uma vida dupla – quiçá tripla, quádrupla ( já parei de contar). Minha principal fonte de renda não é a literatura (embora a escrita também faça parte do meu trabalho, de roteirista e designer de narrativas em realidade virtual).
Por muito tempo, eu escrevia literatura quando dava, quando tinha vontade, quando implodia por dentro e o papel parecia o único que receberia meus impulsos sem me julgar (muito) – ou então quando precisava de uma desculpa para estar sozinha.
É claro que este método foi um fiasco. Eram muito raras as ocasiões em que eu produzia um texto mais longo, meu estilo não era coeso. Há qualidades que só a constância do ofício traz, foi o que aprendi há quase dois anos, quando me propus a escrever meu primeiro romance.
Desde então, procuro escrever todos os dias, entre 8h30 e 10h30 da manhã, depois do café e de algum exercício físico para trazer coragem. Não se escreve sem coragem.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Costumo escrever por volta de duas horas todos os dias. Quando escrevo prosa ou contos (o que é o caso hoje), coloco uma meta de duas páginas por dia e um poema.
Sempre começo a escrever com um poema, como se fosse um aquecimento. Mesmo que não fique bom, eu me divirto muito com a escrita poética. E eu preciso disso. Preciso do lúdico para poder me dedicar a algo tão sério como a escrita.
Assim, uma vez que eu brinquei o suficiente com o poema, que estou à vontade com a minha escrita, passo à prosa.
Escrever, eu entendi, é parar o tempo. E, para isso, é preciso a disciplina da dedicação diária aliada à leveza de não se levar tão a sério.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O meu processo raramente passa por notas. Às vezes nem por pesquisa. Costumo reservar este rigor à escrita de roteiros. Quando escrevo literatura, costumo ter um processo muito intuitivo. Uma página por vez.
Escrevo um primeiro rascunho, bem desleixado, só para colocar as ideias no papel mesmo. Do começo até o fim da obra.
Só depois, monto uma estrutura e tento encaixar texto à estrutura dramática, organizando-o em cenas, sequências, capítulos.
Então vem um segundo tratamento, costurando estrutura e inspiração.
Como se o primeiro passo fosse o de abrir uma represa e o segundo o de ir, aos poucos, esculpindo o leito do rio, dando forma a um verter desorndenado. É no segundo tratamento que estruturo a curva dramática, personagens, motivações, conflitos…
Só depois, então, trabalho polindo as frases, afinando o estilo. E assim por mais um terceiro, quarto, quinto tratamento, até que a obra grite que está pronta (ou um prazo bata à porta).
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Para lidar com as travas na escrita de maneira geral, o único antídoto que encontrei foi aliar o método a um pouco de disciplina. Parece clichê e é, porque é verdade! É só começar a escrever que o texto aparece. Tem um exercício muito bom para isso que costumo passar em minhas oficinas: você pensa em uma palavra e segue escrevendo a partir dela por cinco minutos. Sem parar. Sem apagar. Sem hesitar. Só escreve. É como se tivesse aquecendo o músculo e, depois, tudo se torna mais fácil.
A ansiedade de trabalhar em projetos longos só consigo resolver pensando em um dia após o outro. Quando paro para encarar um projeto de duzentas páginas, uma série de 12 capítulos, um jogo de duas horas, fico paralisada. Mas se penso em uma cena por vez, se crio pontos intermediários, bóias às quais me agarrar, já me parece mais possível a travessia…
A procrastinação, eu tento enganar, contornar. Me prometo recompensas como a uma criança. Faço um aviãozinho para me convencer a comer, mesmo sabendo – no fundo – que se não escrever, vou passar a vida desnutrida.
Já com a ansiedade de não atender às expectativas, gasto horas na terapia.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Olha, na hora de publicar o Brazza (meu primeiro romance, que será lançado em 2021 pela Editora Moinhos), eu fiz uma revisão extremamente minuciosa em que alterei mais de 700 pontos no texto pronto. Depois 400. Depois outra de 200. Depois outra de 40. Depois uma com 10. Foram cinco revisões no total e o texto já havia passado por quatro tratamentos. Foi muito difícil para mim largar a borda e me deixar levar pela correnteza. Aceitar que talvez houvesse erros ou imprecisões, aceitar que algo fugiria do meu controle.
Colocar o Brazza no mundo foi um processo longo e terapêutico também.
Lembro de um dia em que o Nathan Matos (o editor da Moinhos) me contou a história do Titivilus, um demônio medieval que insere erros nos livros prontos. Ou seja, é um medo tão poderoso que precisamos criar um demônio para atribuir uma forma a ele!
E, de fato, a partir do momento em que ouvi sobre a existência de Titivilus, ficou mais fácil lidar com o processo de revisão. Agora os meus possíveis erros, o próprio ato de errar tinham um corpo, um nome. Tinham a forma de um demônio que eu poderia encarar de frente e dizer que ele não controlaria. Eu assumiria meus erros e fim. Desde então meu processo de revisão segue minucioso, embora mais leve.
Também adoro que algumas pessoas conhecidas leiam meus textos antes. Da indústria dos jogos e da realidade virtual em que trabalho hoje, aprendi um processo muito inteligente: o de prototipagem rápida. Basicamente, concebe-se um jogo e, quando ele ainda está em fase de caixinhas cinzas, sem nenhum acabamento, testamos com jogadores. Em função do resultado das pesquisas, do entendimento do usuário, avançamos para um lado ou para o outro.
É claro que o processo da escrita não pode ser completamente orientado ao usuário, como é o processo dos jogos. Mas eu gosto muito de colocar o entendimento, a sensação dos meus livros à prova. Assim, desde o primeiro tratamento, eu peço para que pessoas em que confio leiam, colho suas críticas e impressões sinceras e, a partir disso, sigo trabalhando.
É claro que há um risco neste processo, que o texto perca sua veia autoral. Por isso, é preciso manter sua voz sempre muito clara, entender até onde a crítica do outro lhe cabe ou não.
Mas todo processo criativo é um risco.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quando escrevo poesia, o primeiro rascunho costuma ser à mão. Eu sempre levo comigo um caderninho. Se me vem alguma inspiração para um poema, alguma ideia fixa ou alguma formulação, anoto assim que possível. Aí, de tempos em tempos, reviso o caderninho e passo todo o seu conteúdo para o computador.
Quando trabalho com prosa ou roteiros mais longos, todas as etapas são escritas no computador salvo a etapa da estruturação, que passa por post-its organizados em quadros e papéis A3. É importante para mim ter a visibilidade da trama por inteiro em algum momento do processo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu adoro pensar que minha ideias vivem em cidades imaginárias. Civilizações dentro da minha cabeça em que elas passam o dia a brincar de ciranda com coroas de rosas, até que, vez ou outra uma delas desce até o nível consciente e pede para ser transcrita no papel, sacrificando-se pela espécie. Como se a escrita fosse um deus maldoso que periodicamente exige o sacrifício de uma ideia e a devora, para não atacar a cidade e acabar com aquela civilização harmoniosa.
Minhas ideias vem muito de minhas vivências, de minhas referências, das trocas que tenho com pessoas ou comigo mesma. Já muitas vezes amigues notaram que nossos diálogos foram parar nos livros. Acho que meu substrato é a vida mesmo.
E minha fábula sobre a cidade das ideias destinadas ao sacrifício é para ilustrar a única certeza que tenho sobre elas: As ideias nunca vem sozinhas. Escrever me coloca em um estado profícuo de ideias, permite que elas existem. Mas, nos períodos em que eu abandono a prática por uma razão ou outra, acabo ficando sem inspiração – e toda a cidade vai a ruínas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tornei-me mais constante. Também me levo menos a sério. Acho que as duas coisas vem juntas. Me divirto mais escrevendo e, por consequência, escrevo mais.
Acho que é exatamente este o conselho que eu daria a mim mesma: divirta-se. Quando estiver na arena, sentindo-se ameaçada, face a face com a escrita, chame-a para dançar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria que escrevêssemos novos mitos fundadores. Não que queira escrevê-los. Mas queria que eles existissem. Queria que meus livros ajudassem a possibilitar a criação de um contexto em que novas vozes emerjam, de um mundo em que novas histórias sejam contadas. Esse é o objetivo do Labirinto, meu livro-jogo de poesias que sairá pela editora Jandaíra, que busca dar voz às pessoas que o jogam/lêem, estimular suas próprias jornadas criativas.
Precisamos de novas placas tectônicas, novos movimentos, novas paisagens. E esses terremotos só virão se dermos voz àquelas pessoas que historicamente nunca tiveram, a quem talvez nem seja alfabetizade. A escrita precisa deixar de ser uma barreira para que novas histórias sejam contadas.