Mariana Belize é escritora, mestranda em Literatura Brasileira na UFRJ.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu começo meu dia às oito feito um zumbi. Durmo pouco. Só depois do café bem forte é que a alma começa a voltar pro corpo. A rotina matinal se resume em voltar ao planeta devagar, vou caminhando pela casa com a caneca de café na mão, sem falar nada, às vezes sento pra ver o sol, o tempo, mas na verdade o cérebro ainda tá reconectando com o espírito. Só dou bom dia ao meu cachorro. Não consigo ler de manhã, eu durmo muito tarde e com a pandemia tenho trabalhado de madrugada. Enfim, uma rotina sempre caótica. Sempre escrevendo, sempre lendo, sempre pensando obsessivamente em assuntos específicos. Quando o cérebro, enfim resolve funcionar, também demora pra desligar, aí junta com o vício do café, as notícias tenebrosas e a angústia de tudo… Às vezes, eu acho que nunca mais vou dormir, às vezes eu me pergunto se realmente acordei. É caótico. Viver é caótico e eu não tenho a menor paciência comigo porque sou muito molenga. Queria viver na velocidade da luz, mas meu corpo e o cérebro só vão a 20 km por hora. É frustrante ser humano.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sempre de madrugada, tudo de madrugada é melhor… As coisas só acontecem de meia-noite até às quatro da manhã. Todo mundo dormindo, um silêncio danado, eu penso melhor, o tempo tá mais fresco. Acho que a imaginação funciona melhor nesse horário. Sento no chão da cozinha com alguns livros de pesquisa, com os de poesia também e vejo entrevistas com autores, documentários no computador– tudo de madrugada. As anotações correm mais soltas, as músicas são ouvidas com mais atenção. Eu gosto muito do silêncio, da escuridão, do céu noturno.
Nenhuma preparação especificamente pra escrever, na verdade bem que eu gostaria de ser mais metódica e descrever um ritual milimétrico de conjuração de musas e etc., mas nem tenho tempo pra isso. Talvez um banho bem gelado e um café bem quente, mas não é sempre que faço isso. Eu podia falar um cigarro, porque ficaria mais legal, mas eu nem fumo porque tenho rinite. Também não bebo álcool porque me dá uma dor de cabeça danada. Só o café mesmo que me ajuda, quando ele quer ajudar… Escrevo o que vem na hora e haja revisão pra ter alguma coisa que preste no meio de tanto lixo. É muito difícil o processo de revisar o que eu escrevo porque sempre peso a mão demais e quero achar A Palavra Certa, não qualquer palavra. E esqueço que meu cérebro é um negócio humano, cheio de tretas e cansaço, limitações, símbolos desconhecidos, memórias falsificadas, coisas que eu queria esquecer, ele fica martelando umas coisas que não me interessa…. às vezes ele não tá colaborando e eu tomo café e é sempre uma roleta russa que pode piorar ou melhorar a situação. Não tenho nenhuma paz nesse processo, não queria gostar dessa coisa dolorida de escrever e revisar e viver nessa agonia, nessa vida que também não sei fazer outra coisa que preste. Nasci sem o gene da empreendedora de sucesso. A escrita é só o que me consola e também o que me destrói, eu espero que um dia isso acabe e eu não escreva mais. Antes disso, só queria ter coragem de lançar um livro de qualquer coisa que eu tenha escrito que não me envergonhe tanto e que, no mínimo, seja útil pra alguém de alguma forma.
Mas acho difícil porque sou uma pessoa muito limitada.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Períodos concentrados, obsessivos e que tomam a vida. É fácil começar a escrever, mas é difícil sair do fluxo da escrita, é difícil sair do momento da revisão, é difícil pensar no leitor e na publicação e é difícil pensar em botar isso no mundo. Aí a escrita acaba do nada porque eu tenho que dar um corte mesmo. E tenho que fazer outras coisas, falar com as pessoas, sobreviver, ganhar dinheiro e sei lá. Mas viver, viver mesmo só quando escrevo. Quando estou fora do fluxo, alguma coisa se perde de mim e que não tenho mais acesso. Aí ter que sobreviver é difícil porque é como perder um órgão, um olho, um pedaço do corpo é como se morresse e não tem volta. Não tenho meta diária porque não sou escritora profissional. E não tenho meta diária porque ainda tento lutar contra a escrita, não aceito essa devoção, mas ao mesmo tempo, desejaria me entregar a isso de uma forma que morresse escrevendo sem parar até o fim.
É complicado.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não é difícil começar, difícil é dar limite e voltar pras tarefas cotidianas. A escrita se alimenta da pesquisa. E a pesquisa é via internet, também lendo outros livros, tentando entender a própria mente e viajando na maionese, como dizem por aí. Mas as palavras também são uma pesquisa vasta, difícil, impossível de conhecer tudo e todas. As pessoas também são fontes de histórias nunca contadas, os olhos das pessoas, os gestos – como aquelas pesquisas que os atores fazem pra montar personagem. Os animais me interessam pela sinceridade. As nuvens. Estrelas. O céu e os mistérios da vida. As ciências exatas, biológicas, questões astronômicas. O tarô é um bom livro de pesquisas também, só é chato ficar tirando a mesma carta durante meses e demorar pra entender a mensagem. Fora isso, é uma boa companhia.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não lido, vou escrevendo e tento usar essas dificuldades de forma que não me destruam tanto. A procrastinação não me pega na escrita literária. As expectativas: a única que tenho é não passar tanta vergonha quando publicar algo. Sempre penso que ninguém se importa com o que eu escrevo, se escrevo ou não, se é bom ou ruim, sei lá. Trabalhar em projetos longos é sempre um alívio porque traz a sensação de que nunca vão sair do papel então nunca vão realmente fracassar. São bons pra enganar a si mesmo. E eu gosto disso porque não vejo mérito nenhum meu em escrever alguma coisa. E, na verdade, não entendo porque entrei nessa quando era mais nova. Começou com diários infindáveis, aí veio a poesia, que sempre foi uma merda e quando eu vi estava na prosa… Um inferno de amor e agonia, esta é a literatura. Eu prefiro ler. Ler muito. Ler tudo. Ler bula de remédio, ler jornal, ler textos pra revisar, ler mapas astrais, qualquer coisa, qualquer coisa. E fugir. Vou adiando e ponto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nunca estão prontos os textos. Nunca lancei um livro de verdade. Eu deveria mostrar pras pessoas, mas acho tudo muito ruim e sempre volto pra revisão infindável. Uma covardia confortável. Cada um com seus problemas.
Mostrei um conto pra uma escritora uma vez e ela gostou. Mas eu achei que ela estava sendo simpática e nem respondi nada ao e-mail. Queria pedir desculpa porque na verdade foi uma ação meio equivocada da minha parte. Eu nem devia ter enviado o conto pra ela. Tenho um blog no ar com alguns poemas e uns delírios que me envergonham, achei que podia manter no ar, mas não atualizo há meses. Já fui mais disciplinada com essas coisas de postar na internet e querer as pessoas leiam. Hoje não consigo mais ser assim e só publico algo no Facebook quando escrevo pra alguém, quando faço homenagens ou sobre algum assunto que importa, como feminismo, etc. Mas é pouco perto do que tenho guardado e fico reescrevendo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Antipatias ocasionais entre o computador e eu. Tudo é manuscrito, desorganizado em cadernos que eu coleciono e vou escrevendo neles, tentando colocar data nas coisas pra não ficar tão perdida. Eu gosto de cadernos, canetas, lápis, desenhos, papel é tudo. Depois vou digitando, aí entra o processo de ter aquela paciência…. e vou corrigindo aos poucos, aí releio, reviso, releio, reviso, reescrevendo, reescrevendo… Parece que nunca vai acabar. Às vezes, deleto tudo, reescrevo. Desisto de tudo, quero largar tudo, não quero escrever mais, não vejo valor nas palavras que escrevo. Aí depois volto, sento, escrevo de novo. Um processo muito lento, muito pensado, devagar quase parando. Uma tartaruga. É bem triste, na verdade, não tem nada de importante nisso, nem de bonito, nem de nada. Quando leio Borges, Leminski, Clarice… é que eu enxergo realmente o tamanho da minha ignorância quanto à poesia. Por isso que escritor, escritora tem que ler, tem que ler pra ver a própria insignificância.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm das coisas que eu sonho, que eu vejo, que eu leio – vem dos cinco sentidos. Os sonhos sempre alimentam uma parte “boa” do processo de escrever, a pesquisa também alimenta essa coisa boa e sem nome que existe neste processo. Mas esta coisa boa é fugidia, escapa quando começa mesmo a escrita em si e a revisão.
Não me acho exatamente criativa ou tenho qualquer hábito pra isso. O que me faz escrever é sonhar, acordada ou dormindo, lutando comigo mesma, sabendo que nada disso faz diferença. O sonho é quem manda, eu só assino embaixo porque não há outro caminho.
Como diz o Leminski: “Não discuto com o destino. O que pintar, eu assino.” Mas eu reviso pelo menos, eu juro que reviso. Até porque eu escrevo mal, então se não revisar é pior.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou no meu processo? Eu me cobro muito mais do que antes, cada dia me cobro mais. Um processo exponencial. E se eu pudesse pediria à minha versão adolescente que não deletasse os textos ou jogasse os rascunhos fora. Deixasse tudo guardado numa caixa, num e-mail, num blog, sei lá. Mas sei que ela não me ouviria, mesmo que pudesse. Ela era melhor que eu e não queria mesmo que eu lesse as coisas dela. Como eu acho hoje sobre o que escrevo, ela também achava os poemas muito ruins, infantis e piegas. Ela achava que o mundo ia acabar e ficava perturbada com isso…. eu acho que já acabou e não fez diferença.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Queria lançar um livro de poemas que eu trabalho há três anos. E um livro de resenhas publicadas no Projeto Literário Olho de Belize, que acho que valeria mais a pena pros leitores do que os meus poemas, contos – essas minhas bobagens. O livro que eu gostaria de ler: uma tese longa, bem longa, sobre escritoras contemporâneas fora do eixo RJ-SP. Elas têm obras magníficas que as universidades fazem questão de não olhar com a atenção devida e isso me incomoda muito e profundamente…