Mariana Basílio é escritora, poeta e tradutora. Seu terceiro livro, Tríptico Vital, será lançado na FLIP 2018.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Quase não tenho dormido, fico apunhalando avencas. Me sinto tão inventiva ultimamente que tenho até medo de ser a morte me abraçando de perto… Como dizia o Mário de Sá-Carneiro: “Um pouco mais de sol – eu era brasa, / Um pouco mais de azul – eu era além”.
O “começo do dia” então se torna algo quase inexpressivo para mim, pois entendo que o início e o fim são uma coisa só, e se abraçam. Ultimamente durmo algum tempo na parte da manhã, e cochilo no final da noite. Mas a madrugada, as primeiras horas da manhã, e a parte da tarde são as partes diárias que eu adoro aproveitar (e criar).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Isso parece uma metáfora para um poema de Elizabeth Bishop: “a arte de perder não é nenhum mistério (…) Tantas coisas contêm em si o acidente”. Escrever é se perder, mesmo que se encontre A você deixou B. Então não tenho um tempo específico. Sinto que o que acontece é o que nomino como insight. A Hilda Hilst descrevia algo parecido, dizia que, de repente, estava no banho e tinha que sair nua, correndo, para dispor as ideias sobre o papel. Comigo é da mesma maneira, nada é planejado no micro – mas me imponho com projetos e planos (no macro).
Nunca pensei que existia um ritual até essa pergunta existir. Talvez exista sim um rito. Escrevo com incensos acesos ao meu lado, luz natural, gatos caminhando, uma mesa de frescas leituras. Gosto de dourar o estômago também: coca-zero e vinho branco, doses de chocolate amargo nas quebras de horas de escrita e/ou tradução. Ouço música constantemente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo de toda maneira, acontece até dormindo – quando estou muito concentrada escrevendo um livro, costumo sonhar com novas partes. Acordo, corro para a mesa e anoto o que posso. Uma vez, por exemplo, em 2015, acordei cerca de 3h30 e corri para a tela do computador: sonhei algo longuíssimo e disso saíram vários poemas em sequência. Eles estão no meu último livro, Sombras & Luzes.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Os três livros que escrevi até hoje – e os projetos que tenho na sequência – têm tons crepusculares e misteriosos, e são muito diferentes entre si. Deve ser mesmo o ressoar do tal caracol que Octavio Paz descrevia: uma música, uma emanação que chega quase completa em mim. Cada livro contém um projeto, um tom, e uma forma [e ideia] completamente díspares. O que também não foi idealizado por mim – é um movimento naturalíssimo. Atualmente terminei minha primeira peça de teatro. Algo que há quatro anos não imaginei que fosse realizar. Mas quando recebi o insight, não tive como não me entregar: escrevi até chegar ao fim.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido muito mal com os hiatos – nomeação que divido com Clarice Lispector – que são aqueles períodos de que não adianta insistir (em escrever), não é o tempo [e é bom que se aprenda a perceber isso para extrair só o melhor]. Eu fico tão rabugenta, tão insolente – cuspo o sol na aurora. Já com a procrastinação eu tenho aprendido a flertar – não é de todo mal se bem utilizada.
Não escrevo para corresponder expectativas, isso é para inocentes. É uma bobagem sem tamanho pensar no outro, se primeiro precisamos extrair o que é interno – e lúcido o suficiente, por isso – para tocar o humano em seu sentido mais plural.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso todas as vezes que eu sinto que são necessárias. Nisso sou bem diferente de Drummond. Ele dizia que preferia depois da feitura “esquecer” a criação, para que outra viesse. Uma vez deixada na gaveta, é onde permanecia. Comigo não acontece o mesmo, seja em prosa, poesia ou tradução, eu recrio diversas vezes até sentir que esgotei o texto para mim – naquele momento. Porque olhando os trabalhos mais antigos, eu já mudaria tanta coisa. O que é naturalíssimo, a cada novo tempo já sou outra. Não costumo mostrar para ninguém antes do lançamento, somente para meu revisor.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Nos últimos anos, escrevo diretamente no computador. Mas já escrevi no passado em máquina de escrever, em caderno, em livros que eu lia, no celular, na palma da mão. Penso que escrever é amplo – também se escreve no silêncio.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não sei de onde as minhas ideias ecoam. É o maior mistério da minha vida. Afinal, o que sou? Outros seres dentro da mesma possibilidade? Não sei de onde, mas não pararam mais. Às vezes me exaurem.
Leio compulsivamente, o que não é mais do que minha obrigação como escritora. Mas também um deleite, no âmbito pessoal.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou é o que eu também diria para mim no passado: tenha paciência e rigorosidade – extremas. Quanto maior a cautela, maior a chance de que algo saia mais claro e pungente, quesitos que são objetivos em minha escrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho alguns projetos em diferente frentes e gêneros – mas ainda são secretos.
Todos os livros já existiram e não existiram. A escrita é um tecer que envolve diferentes épocas, visões, autores, uma coisa alimenta a outra. É como vejo. Sobre livros que gostaria de ler tenho uma extensa lista, mas sei que morrerei sem cumprir tudo o que eu desejo e planejo. A vida é curta, mesmo para quem trabalha com afinco. Pensando nisso, me recordei da sensação (e analogias que criei) com um trecho de “Desesterro” – romance belíssimo da Sheyla Smanioto: “Ele acerta nas costas do bicho e fica ganindo baixinho. O cão, não o Tonho. O cão devagarinho vai morrendo. O Tonho não, ele gosta é de ouvir o latido esparramado do cão no chão com tripa sangue osso suspiro.”