Mariana Baruco Machado Andraus é professora no departamento de Artes Corporais e coordenadora geral de pós-graduação do Instituto de Artes da Unicamp.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia bem cedo, deixando meu filho na escola e fazendo meu treinamento diário – atualmente pilates e corrida – em dias alternados. Faço isso aos finais de semana, inclusive. Na sequência, com meu companheiro, aprecio demasiadamente tomar café da manhã, na maioria das vezes em padaria. Gosto da mistura dos sabores do pão francês, manteiga, café e frutas. Eu literalmente os misturo – um pedaço de pão, um pedaço de mamão, um gole de café – tal como o Remy, o ratinho que quer ser chef no filme Ratatouille. Após o café, sigo para a Unicamp. Sou professora no Departamento de Artes Corporais (graduação em Dança) e, atualmente, coordenadora geral de pós-graduação do Instituto de Artes desta Universidade. Isso torna minha rotina bastante puxada, pois, após chegar à instituição, as demandas vão surgindo e vou me tornando refém delas. De toda forma, para atividades que exigem reflexão minha mente funciona melhor após as 16h, então é a partir desse horário que encaixo leituras e escrita. Podem ser encerradas às 19h (caso eu tenha compromisso à noite), às 22h, às 23h ou, a depender da persistência do texto em ser escrito, até o dia seguinte, com um pequeno cochilo entre 23h e 2h (e possivelmente outro entre 6h e 7h).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meu trabalho é muito diversificado e a escrita, infelizmente, é apenas uma parte dele. Não tenho um ritual específico, mas escrevo melhor quando as pendências estão resolvidas. Isso pode significar estar com e-mails respondidos, compromissos devidamente registrados na agenda, minha mesa de trabalho em ordem. Acabei aprendendo que às vezes vale a pena dedicar tempo para a organização do espaço; se ainda não estou “no ponto” para sentar e escrever, lavar uma louça e organizar a mesa de trabalho, ou até mesmo uma caminhada, podem me colocar no estado mental ideal para a escrita, mais ou menos na linha do conceito de não-ação, do pensamento taoísta. Por outro lado, se já estiver no estado ideal, eu me sentarei para escrever mesmo que de um lado do computador esteja um papel de bombom amassado e do outro uma pilha de roupas passadas, tudo na mesma mesa, e não sairei do computador até que tenha finalizado toda a estrutura do texto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo em períodos concentrados. Não consigo fazer nada por obrigação, não conseguiria escrever “por pedaços”. Minha tese de doutorado foi escrita em mergulhos (cada capítulo, um mergulho); depois gosto de deixar o texto “decantando” por um tempo e só então iniciar a etapa de revisões. Esse tempo de ócio ativo, por si, resolve a maior parte dos problemas – chamo de “ócio ativo” porque não estou à toa, estou trabalhando em outros assuntos. Estou sempre trabalhando. No caso de artigos, escrevo-os em um único mergulho. O último escrevi durante uma forte gripe: tomei um antipirético que me fez dormir durante o dia, à noite fiquei sem sono e pensei: “vou aproveitar para escrever aquele artigo”. O texto já existia em minha mente; quando digo escrever, portanto, refiro-me à própria ação de digitar – que às vezes precisa ser rápida para que eu não perca o fio condutor. Certa vez, escrevi: “são sempre os textos que resolvem ser escritos. Eles nos usam para dispor – seja em traços caligráficos desenhados à tinta ou por meio dos caracteres que resultam do tamborilar musicado dos dedos em um teclado de computador – as ideias, conceitos e imagens que precisam ser traduzidas para a humanidade em um determinado tempo e contexto. Um texto é sempre a constelação do desejo de um conjunto de leitores, ainda que não se possa inferir que o sequenciamento dessas ações seja cronológica e causalmente determinado”. E ainda penso dessa forma: o texto resolve ser escrito e preciso de uma rotina que me ajude a estar descansada para dar vazão a esse jorro, que normalmente determina seu próprio ritmo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não tenho notas compiladas. O texto geralmente já existe em minha mente, e conforme vou escrevendo vou “evocando” os referenciais. Eles estão todos em minha memória – um texto que li durante o doutorado, durante o mestrado ou até mesmo durante a graduação. Minha área de conhecimento valoriza muito a escrita autoral – é comum colocarmos nossa própria experiência (artística ou pedagógica) no papel, o que diminui a quantidade de referenciais consultados, por assim dizer. Minha tendência é explorar de forma mais aprofundada poucos autores do que ler grandes quantidades de obras. Saio escrevendo e um risco que sempre corro é me desviar do caminho e ir parar em algum lugar inusitado. Se for um lugar bom, fico nele. Mas já joguei muita coisa fora, também. Minha escrita é bastante intuitiva. Na dança, de forma similar, sou improvisadora e gosto de trabalhar com bailarinos improvisadores.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como minha rotina é cheia de atividades, não tenho muito espaço para procrastinar. Meus momentos de escrita assemelham-se muito mais a encontros apaixonados pelos quais você anseia quando inicia um relacionamento. Fico feliz quando tenho oportunidade de escrever e, como disse antes, a escrita é o momento já posterior, da manifestação de ideias que se construíram enquanto eu fazia todas as outras coisas da vida. Sou assim como diretora artística, também. Não gosto de muitos ensaios. Gosto da incerteza, de ver o bailarino dando seu melhor simplesmente porque não está na zona de conforto que os ensaios diários e a partitura de movimentos oferecem.
Quanto ao medo de não corresponder às expectativas, nenhum texto vai agradar a todos, o que é ótimo. Caso se trate de trabalho acadêmico a gente sempre torce para que o texto caia nas mãos de um avaliador que simpatize com ele, mas, caso isso não aconteça, consigo entender que o problema não está no texto (dificilmente sairia da minha caixa de entrada se fosse um texto ruim, pois minha autocrítica é bastante elevada). Nesses momentos, penso que temos que ser objetivos e mandar o artigo para outro veículo. Conhecimento sempre precisa ser partilhado, todo texto contém alguma forma de conhecimento e, em algum lugar, o escritor encontrará alguém disposto a viabilizar este acesso.
Quanto à ansiedade de trabalhar em projetos longos, lembro-me do que diz o mago cinzento do Tolkien: “o que temos de decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado”. Escrever com hora marcada não é uma decisão que eu tomaria. Para mim, vale mais a pena preparar-me mentalmente fazendo todas as outras coisas da vida e, quando me sentar para escrever, fazê-lo em um grande mergulho. Depois, deixar esse material de molho por um tempo antes de olhar para ele novamente, para prover o distanciamento necessário. Se o material for realmente bom, você vai saber reconhecer isso. Nesse sentido, quando se trata de escrita “com prazo” eu já começo o processo bem antes, para dar tempo de fazer desta forma – que pode acabar sendo mais demorada –, e assim também oriento meus alunos. Pensar que o prazo está longe e adiar o início é algo que, pessoalmente, considero um erro, pois no início do processo você ainda não sabe se realmente há um texto a ser escrito, você precisa descobrir isso. E, caso não haja, você precisará criar estratégias para encontrá-lo. Buscar contaminações, ler mais, matricular-se em disciplinas, debater com colegas… Uma vez que exista um texto para ser escrito, não há uma única fórmula que defina procedimentos de escrita.
Quando pensamos em nós mesmos como mediadores, como pessoas que apenas transportam ideias para o papel, fica tudo mais fácil, pois nossos egos saem de cena. Você não precisa “ter uma grande ideia”. Elas estão no ar e só precisam ser captadas, esculpidas e tornadas inteligíveis para um grupo considerável de pessoas. Se, além disso, você se dedicar a jogar com elas, tornando lúdico o seu próprio processo de escrita, você terá então adentrado o campo da arte e passará a ter prazer em encadeá-las. Penso que é assim que nasce um escritor: quando ele se descobre apaixonado pela criação com palavras.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes, dando intervalo entre as revisões. Geralmente são revisões “pente fino”, um tanto obsessivas, mas que resultam em substituições de poucas palavras e inclusão de alguns eufemismos, se necessário. Quando eu ainda dançava, fazia o exercício de imaginar determinadas pessoas me assistindo – geralmente, as pessoas mais críticas. Passei a fazer isso com a escrita: faço uma leitura imaginando como determinada pessoa (ou grupo de pessoas) vai receber o texto, depois faço outra leitura imaginando outras pessoas lendo… São leitores imaginários. Sem a pretensão de agradar a todos, mas com a pretensão de alinhavar a coerência do meu próprio discurso. É uma forma de fazer arguições comigo mesma, e assim vou afinando cada vez mais a coerência do texto, sempre alinhada com minha própria coerência interna. Pergunto-me: isso é algo que eu diria? Parece estranho, mas penso que a busca dessa coerência é que acaba nos levando a amadurecer como escritores. Meu companheiro é meu leitor crítico – o primeiro leitor real, depois dos imaginários. Ele lê tudo que escrevo antes que seja publicado. É muito bom ter alguém em quem você confie para fazer esse tipo de leitura. Os leitores imaginários dão voz à sua autocrítica – e é importante alimentá-la, pois isso desenvolve sua autonomia –, mas o leitor crítico traz esse outro olhar, que é descontaminado. Como sei que ele me dirá com sinceridade tudo que for necessário, não sinto necessidade de outros olhares.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo no computador. Caso alguma ideia mais complexa se apresente em momento que eu esteja longe dele, posso rascunhar em um pequeno pedaço de papel – que pode ser o verso de um cupom fiscal, por exemplo – o cerne daquele pensamento, para que me lembre depois. Hoje em dia, no entanto, é raro eu não estar com o computador por perto. No celular eu jamais seria capaz de escrever (nem mesmo um e-mail; eu vejo a mensagem pelo celular e espero chegar ao computador para respondê-la).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias estão no mundo e muito provavelmente já foram captadas por outras pessoas, por isso não tenho muito a pretensão de que sejam minhas. Sinto-me mais confortável com a noção de que sou autora de uma certa forma de organizá-las. Damos formato às ideias, lapidamos, escolhemos o que revelar e o que deixar oculto, até para que o leitor se perceba também autor daquela ideia. Isso cria sinergia. O entendimento, afinal, se dá sempre na mente do interlocutor, alinhado com sua própria interpretação – aquela que suas experiências de vida lhe permitem criar. Nas artes somos muito habituados a isso – lançamos simbolismos na cena de forma deliberada, meticulosamente preparada para que a literalidade não esteja presente. Brincamos com ocultações e é assim que se estabelece o jogo cênico entre artista e público. E é isso que fará o espectador querer voltar, ou um leitor retornar ao seu texto. Escrita, como toda arte, é sedução. Então, o mais importante a cultivar é sua coerência interna, e com isso ter certeza das coisas que você realmente quer dizer. E, se não tem o que dizer, simplesmente não diga. Prefiro passar anos sem apresentar uma obra do que apresentar algo que não afete a mim mesma, em primeiro lugar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
Certa vez, li um texto em que o autor dizia que ele não pensava mais da forma como escreveu no primeiro livro mas que jamais se arrependeria de tê-lo escrito, pois, se não tivesse escrito o primeiro, não teria escrito o segundo. Não me lembrar quem é o autor desta proposição é um típico erro do meu início de carreira, quando eu ainda não tinha o hábito de anotar citações e seus autores de forma a rastrear as fontes. E lembrar-me dessa frase é praticamente uma condenação eterna, pois o que mais ocorre é eu refutar conceitos que escrevi anteriormente (ou então, refutar a forma como os escrevi), e aí me lembro dessa proposição e do meu lastimável erro em não ter identificado o seu autor, à época. Fora isso, creio que pouca coisa tenha mudado no processo em si. Tento brincar cada vez mais com o textos antes de deixá-los seguirem em frente, na expectativa de torná-los menos chatos. Mas faço-o com a consciência de que se trata de um objetivo inalcançável, pois para o texto ficar realmente sedutor é preciso deixá-lo de molho por muito tempo, revisitá-lo muitas vezes, e a vida simplesmente não possibilita isso. Somos pressionados a um produtivismo que não era realidade em épocas pregressas, nas quais grandes pensadores escreveram grandes obras. Olhando por esse lado, é importante uma certa dose de autocondescendência.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria que a escrita fosse meu único trabalho ou, ao menos, o principal. Foi um prazer escrever este pequeno texto, especialmente sendo um texto sobre escrita. Tenho alguns projetos de livros sobre outros aspectos da minha vida que não sejam a arte. Escrevi um livro infantil ao qual nunca dei encaminhamento, está guardado. Penso em escrever um livro sobre questões mais existenciais, sobre percepções que tenho desta vida e deste universo em que habitamos. Lamento um pouco o atual modelo educacional, que acaba deslocando o pesquisador da atividade de pesquisa e dirigindo sua atenção para atividades mais administrativas. Não é que não goste delas – gosto também, muito mais que a maioria das pessoas com as quais convivo. No entanto, a sensação de que poderia escrever mais é constante, e creio que seja uma espécie de projeto pessoal ter mais tempo para me dedicar à escrita no futuro.
Quanto a livros que gostaria de ler e que ainda não existem, bem… Não temos a dimensão de todos os livros que existem, não é mesmo? Há tantos livros já escritos, outros tantos em processo de escrita, e outros que ainda não foram percebidos por mentes da atualidade. Imagino uma cabana de madeira, no meio da floresta, uma luz amarela iluminando uma mente anciã perscrutando seu próprio passado em imersão em uma pequena comunidade humana entrelaçada com o ecossistema local. Eu gostaria de ler o que essa mente viesse a escrever. Gostaria, igualmente, de ler um livro escrito por um cosmopolita a observar dinâmicas sociais desde dentro da solidão de seu apartamento. Não é possível desejar ler um livro até que tenhamos folheado as primeiras páginas e nos sentido seduzidos por ele. Então, sobre sua última pergunta, minha resposta seria: “estou tentando descobrir”.