Maria Nilda de Carvalho Mota é professora do ensino fundamental e médio da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa como o de qualquer outra trabalhadora brasileira: levantar às 6h, sair para trabalhar (aulas para ensino fundamental II) até 12 ou 14h… depende do dia. Escrever não é o meu método de sobrevivência econômica… é como faço para sobreviver emocionalmente. Então, como poeta, eu escrevo quando dá. Já como pesquisadora, vou juntando tudo na cabeça, nas conversas com meu companheiro Eduardo, em papéis e cadernos dispersos. Quando os prazos estão ficando apertados, aí então eu passo algumas horas das madrugadas em claro e escrevo por alguns dias.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor quando acordo, mesmo que tenha dormido por poucas horas. Final da madrugada e início das manhãs (quando se trata de ciência). Quando o assunto é poesia, escrevo melhor quando dói, quando estou em contato forte com a dor do meu povo, da minha família, de mim mesma.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sem meta de escrita. Eu não sou uma profissional do ramo. Escrevo quando tenho elementos suficientemente desenhados, ou explodindo dentro de mim.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não compilo muitas notas (acho que já estou me repetindo…). Eu junto elementos, obstáculos, nuances, imagens… Escrevo de qualquer jeito, depois volto para cuidar dos detalhes, dos aprofundamentos, da gramática (esta fica sempre para o final de tudo).
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Me conheço o suficiente para saber que a procrastinação é mínima: não estou escrevendo, mas vou organizando elementos na cabeça. Quanto ao medo… ele é real, mas já escrevi o suficiente pra entender que escrita é processo e, se não está bom, é porque não está terminado. Morro de medo… mas sobrevivo… (risos)
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Meus trabalhos (quase) nunca são sigilosos. Em geral escrevo e reviso eu mesma. Se sentir que estão prontos, os compartilho imediatamente (em casa, para o companheiro, nas redes sociais, nos blogues, etc…). Se mais tarde sentir que algo precisa ser modificado, mesmo depois de publicado em mídias impressas, altero sem pudores: o texto é meu e o fato de ter sido public(iz)ado não o petrifica.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como eu disse… vida corrida… escrevo no que estiver mais à mão… tanto faz, agora que já domino as teclas dos computadores. Aliás, sou fã dos computadores.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias científicas veem do convívio com as leituras acadêmicas e com o fato de a minha vida estar dividida entre família, trabalho e estudos. Com essa rotina sou obrigada a uma inevitável circulação entre meu bairro pobre, com bolsões de miséria econômica absoluta, e entre os bairros de classe média/alta, onde a gente de pele branca predomina. Tem ainda o contato da minha própria pele parda com parentes, amigos e vizinhos encarcerados, vulnerabilizados ou imobilizados pela superexploração de classe (com as terríveis agravantes relacionadas a gênero, raça, lugar de origem, orientação sexual, etc). O único hábito necessário para que eu me mantenha criativa é não abandonar a classe: feito isso, a escrita é como um parto muito dolorido – longo como a tese, ou rápido como os poemas – mas gratificante, porque tem razão de estar no mundo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Comecei a escrever aos doze anos. Eu tinha alguns cadernos que deveriam servir de diário e não serviam porque não tinham cadeados. Daí comecei a testar e escrever com metáforas: elas funcionavam como códigos só meus e protegiam meus segredos de menina. Hoje, os meus textos não têm cadeados, eles têm potência, têm força para ser multiplicada com o objetivo de romper as amarras Capitais, de vencer os planos de extermínio do meu povo, de denunciar abusos e cultivar possibilidades de resistência e superação das violências por nós vividas. Meus poemas ainda buscam proteger segredos, mas são segredos de classe. Minhas escritas acadêmicas se juntam aos poemas e ambos buscam fortalecer o povo pobre. Então, se eu pudesse voltar ao início eu diria, simplesmente, “Continua, Dinha. Continua”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho alguns projetos. Sempre são muito mais do que eu posso efetivamente colocar em prática. O primeiro – porque mais urgente – é desenhar meu pós doutoramento. O desafio (constante, por sinal) é alinhar minha preocupação com a classe, com a garantia de direitos, superação de estados opressivos, com o que há de mais denso na literatura. Estudo literatura porque ela me dá vida (me salvou muitas vezes da morte psíquica, da indigência emocional e tem até nos ajudado – ultimamente – a comprar pão, no sentido literal da expressão). Então, preciso dar conta disso. Em segundo lugar, tenho um romance em coautoria com meu companheiro Eduardo, que é sociólogo. Mas somos um casal pobre e negro. Temos crianças que tentamos tratar como nossa prioridade. Temos que trabalhar para pagar contas… Não sobra tempo pra escrever romances. Enquanto isso, vai tudo ficando guardado nas nossas conversas, no nosso globo. Com relação ao livro que ainda não existe, eu gostaria de ler “Sociologia da favela brasileira” – uma analogia à “Sociologia do negro brasileiro”, de Clóvis Moura. Este livro seria escrito pelo Du (Eduardo)… mas ele não existe ainda… Acho que a razão da não existência dele já está mais do que explicada… A obra em questão trata da mudança do eixo econômico mundial que tende a colocar o ser favelado/favelizado como centro nevrálgico da produção e do consumo global, como responsável pelas renovações culturais, linguísticas e potencialmente científicas. Um dia pode ser que esta obra ganhe corpo. Enquanto isso, ficamos no campo da utopia. Estamos no início do ano e da vida. Se necessário, contiuaremos guardando nacos de esperança no congelador, como em meu poema “Ano novo, amor velho”:
O ano novo entrou correndo
assustado pelos becos.
Entrou com fome.
E as ondas do mar, no mar
cheiravam a sangue.
A esperança que ele trouxe
em pouco tempo fedia
a escárnio e peixe podre
(por isso anda escondida
nos necrotérios domésticos
das geladeiras e freezer’s”
(Ano novo, amor velho. Do livro De passagem mas não a passeio, Global, 2008)