Maria Luiza Corrêa é arquiteta e poeta.
Com você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Vou responder a esta pergunta com o primeiro parágrafo da minha autoficção, que será publicada brevemente:
“Perdi o sono pensando no meu romance e desisti de dormir. Deixei minhas gatas no quarto, encostei a porta e desci. Minha casa é uma inspiração. É a concretização da arquitetura que nunca me abandonará. Mas é mutável. De madrugada seu interior de pé-direito duplo, ainda na penumbra, é invadido por uma luz suave que me chama para o quintal. Vejo o pedaço de céu, só meu — um quadrado perfeito emoldurado pelos muros altos que tiram a visão da cidade. Nesta madrugada o quadrado é um edredom muito branco e macio cobrindo o pátio, deixando o céu já azul se entrever por pequenos furos.
Minhas gatas descem tambémpara visitá-lo. Enquanto eu mesma preparo meu café — como Manuel Bandeira no seu “Poema só para Jaime Ovalle” — a luz passa a clarear todas as coisas.
Começo a escrever. A rotina dos poemas pressupõe o lápis, o caderno e o dicionário, porque faço ensaios com as palavras e guardo as versões, como fotogramas. Mas a prosa escrevo direto no computador, que às vezes preciso tirar do colo para acolher uma dessas criaturas mudas com quem aprendemos a nos comunicar sem palavras. Às 9 horas começam a chegar os ruídos: a Idália, que me ajuda na casa há trinta anos, lavando a pouca louça da noite; os helicópteros, voando baixo lembrando meu pai aviador quando bem humorado e os jatos que passam longe com sua voz grave de quando ficava bravo. De vez em quando ainda chegam o marceneiro faz-tudo, os jardineiros ou o carteiro. E não há mais clima para a escrita”.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Tem uma meta de escrita diária?
Preciso explicar que sou uma escritora tardia. Até os últimos quatro anos eu projetava e ensinava Arquitetura, embora frequentasse algumas oficinas de escrita. Só então passei a cursar a pós-graduação em formação de escritores do Instituto Vera Cruz e concluí os núcleos de Poesia e Ficção. Daí resultaram meus dois livros: um de poemas — Planeta Inventado, publicado pela Quelônio e uma autoficção — Mulher Assimétrica, a ser lançada pela mesma editora.
Minha rotina foi determinada, até agora, pela exigência dos cursos. Confesso que tenho me esforçado para estabelecê-la eu mesma, o que está sendo difícil nesse intervalo entre a publicação do livro de poemas e a expectativa da publicação do próximo.
Como respondi acima, prefiro escrever de manhã, antes do movimento da casa começar.
Como é o seu processo de escrita? como você se move da pesquisa para a escrita?
Alguns poemas nasceram do desejo de expressar ideias surgidas da experiência e outros resultaram de métodos e exercíciospropostos pelos professores. Ler e estudar poesia foi importante, tornou o processo mais consciente e os poemas mais elaborados e complexos.
De modo semelhante foram importantes para a autoficção as teorias do romance, do conto e mesmo da não-ficção — como ensaios e biografias — e a análise de obras, especialmente as contemporâneas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Já observei que a melhor maneira de lidar com a procrastinação é começar ou recomeçar a escrever meio como quem não quer nada. É impressionante como às vezes as ideias se elaboram e se expandem no momento mesmo em que são escritas.
Acredito que o medo de não corresponder às expectativas é o maior entrave para o novo. Mesmo porque as expectativas são tantas quanto tantos são os leitores. Sempre haverá quem se interesse ou se identifique com nosso texto.
Não tive dificuldade em escrever a autoficção porque a história já estava pronta. Restou a preocupação com a estrutura, que eu imaginava como uma analogia à narrativa da minha vida, do meu corpo e minha maneira de ver as coisas. Agora o desafio está sendo inventar uma história que não seja a minha e dar forma a temas e questões do romance contemporâneo que me interessam.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
As opiniões de colegas e professores foram importantes para tornar meu texto mais compreensível. Muitos sentiam falta da explicitação de sentimentos e reflexões, até que em algum momento um professor observou que meu texto é lacônico. Gostei da interpretação e me despreocupei.
Não sou uma revisora de texto obsessiva. Enquanto escrevo já vou procurando a forma. Na prosa é bem tranquilo. Na poesia há mais trabalho, pela maior exigência de precisão na escolha das palavras e da forma, mas uma vez considerado pronto, o poema dificilmente se modificará.
Quanto à receptividade de opiniões, acredito que sou mais autocrítica que os críticos. A única pessoa que me intimidava era a minha melhor amiga, poeta já falecida, Alida Ionescu, que eu admirava e a quem nunca mostrava meus poemas, por considerá-la muito exigente.
Como é a sua relação com a tecnologia? Você escreve seus rascunhos à mão ou no computador?
Acho que a revolução digital afetou mais a arquitetura que a literatura. A passagem do desenho feito à mão para o da máquina facilitou a visão tridimensional instantânea do objeto, tornou a imagem mais realista e, consequentemente, o projeto mais controlado, além de possibilitar formas muito complexas, tanto para o projeto quanto para a indústria.
No início da minha aventura literária pensei em criar uma forma que contivesse em si uma correspondência entre a natureza do digital e do literário, mas logo me contentei em permanecer no campo da literatura, até por já ter observado que a ideia de transdiciplinaridade em arquitetura foi passageira.
Como ferramenta prática, o digital facilita a escrita em prosa, especialmente para quem costuma revisar muito o texto. Para a poesia ela talvez seja mais importante por permitir, rapidamente, variações na disposição dos versos no papel.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Considero-me criativa por uma necessidade vital. Sempre gostei de fazer arte — desenho, arquitetura, fotografia e escrita. Sinto não ter me dedicado mais à leitura, o que tenho feito ultimamente, neste intervalo entre a publicação de meus primeiros livros.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria para si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Se tenho hoje uma preocupação com minha escrita é a de sintonizá-la com as obras dos escritores e poetas meus contemporâneos que enfrentam o desafio, que eu também me coloco, de criar um texto e um poema que reflitam nossa realidade social e política, sem abrir mão da sua articidade, Isto não me impede de respeitar os escritores que se dedicam prioritariamente à renovação da linguagem.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Já comecei a escrever o livro que eu gostaria de escrever. Ainda não consegui imaginá-lo inteiramente. Gostaria de um romance que aliasse a ficção ao ensaio, o erudito ao popular, a arte à política, e aí vai. Esse livro não existe, mas certamente algum parecido, sim. Minha dúvida é se estou sendo muito didática e literal. Preciso de uma opinião, por isso vou frequentar o curso/oficina do Julián Fuks intitulado “Escrever em tempos sombrios — a criação literária e sua relação com o presente”.