Maria José Silveira é escritora, tradutora e editora, autora de Felizes Poucos.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou uma pessoa disciplinada, reconheço o valor de uma boa rotina. Acordo, tomo café, leio o jornal e vou para o computador, quer chova ou brilhe o sol. Quer dizer, quando o sol brilha saio para caminhar antes. Gosto muito de caminhar, acho que ajuda a esclarecer ideias. Seja como for, considero a manhã a parte sagrada do meu dia, dedicada à escrita. Tudo o mais, eu deixo para fazer à tarde.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
De manhã trabalho melhor, e não tenho nenhum ritual, a não ser que se considere como ritual a minha taça de café. A rigor, no entanto, até o café pode ser dispensado.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Trabalho de duas a quatro horas, todas as manhãs, mas não penso em termos de metas a cumprir. Sequer me preocupo em contar as páginas escritas no dia. Sentar e escrever tem sua própria dinâmica, acho. Às vezes o texto flui mais, às vezes menos. Não importa. Não penso nisso. Apenas trabalho. Quando estou escrevendo um romance, um livro infantil ou um conto, é a ele que me dedico. Não me preocupo se vou ou não terminar um capítulo aquele dia, ou se vou terminar o conto. Se não estou com nenhum trabalho em andamento, escrevo uma crônica, um post para o blog, uma bobagem qualquer, mas escrevo. Considero como certeza o fato de que é escrevendo que você vai escrever cada vez melhor. Se não for verdade, tenho sido enganada desde sempre.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Depende de cada livro. Há livros em que a escrita começa logo depois da ideia. Em outros, você tem a ideia, começa a pesquisar e a escrita só começa depois que a pesquisa estiver feita. Há outros, ainda, em que escrita e pesquisa caminham mais ou menos juntas. É quando a própria pesquisa vai levantando novas ideias e você vai escrevendo – ou pelo menos, tomando notas já como parte do que vai escrever depois. É um grande prazer ver a ideia tomando rumo junto com a pesquisa. Mas absolutamente não há receitas. Cada livro é um livro. Cabe a você achar seu caminho.
Acredito, também que a dificuldade não está em começar a escrever, está antes, na decisão de realmente começar. E, sobretudo, de reservar um tempo para isso, porque dessa verdade não se pode escapar: a condição sine qua non para escrever é ter tempo. O que é complicado porque, quase sempre, a necessidade de pagar as contas é primordial. É resolvendo isso que a porta para entrar no reino da escrita se abre.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eis uma das vantagens de ter uma rotina: esses problemas não encontram espaço para aparecer. Estar frente a um computador todos os dias obriga você a não procrastinar, não temer, não se angustiar. É uma relação muito produtiva a que você pode estabelecer com sua página em branco. Nem que seja para depois revisar tudo e só sobrar algumas linhas daquele dia de trabalho, essas linhas estarão lá. É uma alegria danada. Na verdade, posso dizer que tenho uma pequena artimanha: terminar o trabalho do dia já com uma ideia sobre por onde continuar. Facilita engrenar mais rápido na manhã seguinte.
Eu digo que só escrevo na parte da manhã, mas não é bem verdade. Quando estou escrevendo um projeto mais longo, como um romance – e suponho que isso acontece com todos os escritores –, minha cabeça continua trabalhando nisso o tempo todo. A qualquer momento – inclusive naquele da vigília, um pouco antes de pegar no sono – posso parar para fazer uma anotação em um pedaço de papel qualquer. É formidável quando isso acontece. Sem que você saiba, alguma parte de sua cabeça está sempre funcionando a favor do que você está escrevendo. E então, de repente, vem uma ideia quando você está caminhando, lendo um jornal, observando uma pessoa no metrô, escutando um caso, no meio de uma conversa. Vem uma palavra, uma ideia nova, um achado, qualquer coisa vale. Que anoto, assim que encontro um pedaço de papel. E na manhã seguinte, começo a partir dessas anotações.
Creio que é assim também que funciona o que costumamos chamar de inspiração. A partir das informações que seu cérebro já tem, ele vai funcionar o tempo todo e, de repente, torna-se consciente. Assim, quando você está ali, trabalhando no seu computador, muitas vezes a ideia vem, e o dia de trabalho é premiado. São os momentos em que, depois, ao rever o texto, você mesmo se admira: “Pôxa! Fui eu mesma quem escrevi isso?”
Outra coisa: se estou trabalhando em um texto longo, não sou de ficar revendo cada capítulo à medida que o escrevo. O que faço – e é também algo que facilita recomeçar a cada manhã – é rever alguns parágrafos do que foi escrito antes. Ajuda a dar o arranque.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso inúmeras vezes. Mas só quando considero terminado o primeiro borrão. Aliás, talvez seja essa a melhor parte da escrita. Quando o grosso do seu trabalho já não pode fugir, está lá, e o que você tem a fazer é revisar, revisar, revisar. Acrescentar, cortar, burilar, e outra vez acrescentar, cortar, burilar. Apenas para melhorar o que já foi feito. É uma alegria.
E sempre mostro meu trabalho para o Felipe, meu marido e primeiro leitor. É ele quem me diz se o trabalho está pronto ou não.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como escritora, nasci agarrada ao computador. Não escrevo à mão. Absolutamente. A não ser as pequenas anotações que faço em qualquer lugar onde brota uma ideia. As ideias costumam ser fugidias. É preciso cuidar delas. Não deixá-las desaparecer.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Escrevi todo um pequeno livro para responder a essa pergunta. De onde vêm as ideias, publicado pela Bamboo Editorial que, infelizmente, não sobreviveu à crise e fechou as portas. Tenho ainda alguns poucos exemplares comigo para venda. Nele, o que eu defendo, em resumo, é que ninguém foge de sua vida, muito menos o escritor. Ou seja, as ideias que lhe interessam a ponto de fazê-lo escrever um livro sobre elas vêm de sua própria vida: sua origem e seus atributos, sua infância, sua formação, seus amores, seus estudos, leituras, viagens, seus gostos, desgostos, preferências, hábitos, lugares onde viveu, enfim, tudo aquilo que faz parte do complexo mundo unicamente seu que começa a se formar em sua cabeça quando você primeiro abre os olhos e continuará em constante transformação até que você os feche para sempre. Nossas ideias fazem parte desse mundo ilimitado, único e insubstituível cujo resultado é o que somos. Hoje, amanhã e depois.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Felizmente, acho que eu não teria o que dizer. Tive sorte. Meu primeiro livro, A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas, ganhou o prêmio Revelação da APCA e está publicado nos Estados Unidos, Itália, e breve na França e na Turquia. Nele eu conto a história de uma linhagem de mulheres que começa com o que considero nosso casal de origem, formado por uma índia tupiniquim e um marujo português, no início dos anos 1500. Acompanho a primeira filha de seus descendentes até os dias de hoje. Quando ele foi lançado, em 2002, o romance terminava com a mãe cuja filha nasceu em 2001. Foi publicado pela Editora Globo que agora fará uma nova edição com um novo capítulo, justamente o da história dessa menina que nasce em 2001 e, por sua vez, neste ano de 2018, tem sua primeira filha.
O que mudou na minha escrita a partir desse primeiro romance, eu não consigo perceber. Talvez porque eu não seja uma escritora com um único tema ou uma única abordagem. Mudo bastante a trama de meus livros e o modo de contá-las. Escrevo a partir de questões que me apaixonam e elas, feliz ou infelizmente, no mundo de hoje são inúmeras. De qualquer maneira, o que tento seguir, não apenas na literatura mas na vida, é a máxima herdada de Samuel Beckett que coloquei como epígrafe do meu romance, O fantasma de Luís Buñuel, dedicado aos anos de formação dos que foram jovens em 1968: “Não importa. Tente outra vez. Fracasse outra vez. Fracasse melhor.”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Essa é a pergunta que sempre me faço antes de começar um novo livro. No momento, no entanto, ainda não a fiz porque estou totalmente dedicada à finalização do meu romance Último Céu. Mas posso responder com a pergunta que me fiz antes de começá-lo e que foi a seguinte: o que poderia acontecer com uma sobrevivente de uma catástrofe provocada pela natureza, como aconteceu em 1970, quando um pico nevado nos Andes peruanos caiu soterrando todos os habitantes da cidade de Yungay? E o que isso teria a ver com a catástrofe provocada pelo homem com a construção da Barragem de Belo Monte, em Altamira, no Pará, que está destruindo boa parte do habitat às margens do Rio Xingu, neste exato momento em que vivemos? Isso daria um romance? Deu. E é justamente o que estou finalizando agora, depois de quase dois anos e de uma inesquecível viagem a Altamira.