Maria Isabel Iorio é poeta e artista visual, autora de Em que pensaria quando estivesse fugindo (Urutau).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu trabalho na Cobogó, uma editora, onde tenho que estar às 9h. Então começo o dia às 7h35 com “Cume”, o som digital do meu despertador no celular, invadindo o quarto enquanto o aparelho treme contra o chão. Levanto com pressa pra interromper o Cume (geralmente deixo o celular longe da cama, para obrigar o deslocamento). Nunca durmo sozinha, então preciso abandonar minha namorada na cama, desencaixar meu corpo dali. Tomo um banho sem delírios, pragmático. Faço uma tapioca com queijo, escolho uma cor para vestir, a meia de cada pé, e corro pra não perder o 584, que passa esporadicamente. Minhas manhãs são um abandono dos melhores desejos. Mas gosto de ver os rostos dos outros, que não conheço, também acordando por fora.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Nunca escrevi com fôlego senão à noite. Tive insônia por muito tempo, enquanto eu podia ter insônia, e isso me separou das atividades dos outros, acordando uma solidão que eu passava escrevendo. (Nesse tempo, se dormia, alguma hora, acordava para ir ao banheiro e me flagrava já no meio de uma frase – estava pensando, incessantemente). E isso ficou. Também porque a manhã e a tarde não têm urgência nenhuma.
O ritual é bem mundano: eu preciso passar um café forte e tomar, de estômago vazio, fumando um cigarro. Depois outro e outro. Eu fumo enquanto escrevo pra agitar a mão. E o estômago, vazio, pra cultivar o vácuo, molhar o vácuo. Geralmente bate um enjoo. Geralmente funciona.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu penso a escrita como uma operação enorme, desconcentrada. Escrita é tudo aquilo que registro do que penso. Às vezes é uma fotografia, um desenho. Nesse sentido, escrevo todos os dias. Um e-mail, uma frase no caderno, um print. E acho mesmo fundamental estar atenta aos soluços que as coisas dão diariamente. Mas se estamos pensando escrita de algo terminado, não – escrevo mesmo raramente. E geralmente no último minuto – na véspera da entrega, se houver um prazo; ou se é um negócio comigo mesma, no momento em que aquilo me vence, me curva pro papel. A peça que escrevi esse ano (Cavar um buraco não ver o buraco) pensei por muitos meses, escrevi em uma semana. O livro de poemas (Em que pensaria quando estivesse fugindo, publicado pela Editora Urutau em 2016) em duas. É assim, infelizmente: apertando os órgãos nos limites.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu me concentro me desconcentrando. Por exemplo, o que é bastante comum: eu abro o Word, já pensando num assunto, aí abro o Google e faço uma pesquisa sobre outro assunto, à princípio sem relação com aquele. “Como os insetos transam?” Aí abro outra aba, outra aba, outra aba. Tudo que vou lendo colide com o meu assunto, o do poema, então tudo já é o poema. Desrespeitar o assunto é uma maneira gostosa de começar.
Eu tenho necessidade também de inventar dispositivos. O meu livro de poemas foi todo feito a partir de procedimentos. Chamam de pós-escrita. Ou escrita pós-moderna. Não importa como chamam, na verdade. É desse jeito: mais do que inventar as frases inventar a maneira pela qual chegarei a elas. Jogar com a arbitrariedade da linguagem, levar menos a sério a autoria. Aí entra meu trabalho como artista visual, que pesquisa as materialidades e os suportes. Uma palavra precisa ser pensada para um espaço – nem que seja mesmo o papel. Um grande desafio é, por exemplo, a dramaturgia – escrever falas para um corpo. Um corpo é sempre uma dificuldade. Uma dificuldade deliciosa.
Muitas vezes escrevo por colagens. São várias maneiras. Partindo do que existe – e eu me interesso pelo que existe (aí entram todas as questões sociais, políticas e relacionais, nossas) – é menos difícil começar. O mundo pede urgente ser reescrito, ser dobrado, excitado. Que seja numa pequena quebra de linha.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Com muita angústia. Não acho possível, mesmo, evitá-la. Mas é possível bater de volta. Quando o negócio não sai, eu não consigo forçar. Escrever pede outros tipos de força. Então, geralmente, saio para um bar. Não como quem desiste. Vou ao bar com interesse, ver se alguém, em alguma conversa, e sem saber, me ajuda. As pessoas falam coisas que eu jamais pensaria. As pessoas são geniais distraídas. Também me salva sair para andar. Isso a qualquer hora do dia. Avançar o corpo sobre a cidade me traz tanta coisa. A maioria dos meus poemas surgiram enquanto eu andava, aliás. Acho que é o meu jeito de pensar. Ir a palestras, sobretudo às que não me interessam, também é muito bom. Ouvir frases sem se deter a elas me dá um transe. Minha cabeça vai sozinha para lugares que eu não conheço. Costumo escrever muito durante.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu guardo o texto e leio no dia seguinte. Depois, deixo passar umas duas semanas. Às vezes, quando volto, já não entendo o que estava dizendo. E rio. E recomeço. Às vezes já nasce prontinho e às vezes também não está, definitivamente, pronto. E penso que só terminarei esse poema aos 92 anos. Quanta beleza, imaginar isso. Um poema fazendo todos os aniversários comigo, aberto. Mas se acabo, gosto de mostrar para pessoas que não são poetas. Minha mãe, professora, por exemplo, sempre responde sinceramente – e sempre corrige “o português”, me obrigando a puxar essa discussão sobre a norma (eu adoro comprar essa briga). Não quero nunca escrever só pra quem escreve. Me embolar nesse hermetismo. Um poema não pode ser elitista. Ele tem que ser possível de acontecer pra qualquer corpo. Se pensarmos, aliás, em quanta gente não sabe ler. Precisamos pensar em quanta gente não sabe ler. A relação com a escrita precisa esbarrar nas fomes.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo no computador. Aprendi a digitar muito rápido, sem olhar. Gosto de pensar o teclado como um acoplamento. Ver a mão se sentir em casa ali. As letras surgirem na velocidade da cabeça. Me incomodam, só, as fontes – nunca encontrei alguma que parecesse com a minha letra. Porque, claro, isso não existe. Então escrevo algumas coisas à caneta, mas a minha letra é contraproducente, porque é, como posso dizer?, a justaposição da repetição da letra. Rabisco um B e logo outro B, por cima, nunca no mesmo lugar. Faz-se uma certa tonteira, incertidão. A caneta eu uso também pra desenhar, cavar na intuição algum traço imprevisto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu acredito num processo bastante bonito, que é o da convivência. Conviver com os objetos, com as pessoas, com os assuntos. Eu acho que, no final das contas, circulo por poucos temas, e todos são ou dividem os meus hábitos diários comigo. É doído e gostoso, conviver com as coisas. Para ficar mais concreto: há muito tempo eu ando com caixinhas de fósforo nos bolsos dos casacos, por exemplo. Ao invés de isqueiros, uso os fósforos para acender o que preciso. Eles me pedem um gesto – e o gesto, pra mim, é o principal método de invenção, a maneira como invento de mexer e manusear o que quer que seja. Na convivência incessante com essa caixinha, acabei escrevendo uma série de coisas em torno – poemas, vídeos, desenhos.
As ideias são gosmas do olho. São imagens que grudam ali – não estão, nunca, do lado de dentro. No máximo é um cisco, pelo que cai no lugar errado, e arranha. Essas dores na cabeça, coisas que se impõe, irritam. Eu preciso estar incomodada pra escrever.
O poema é fundamentalmente uma postura.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A falta de tempo. (risos) A falta de tempo que sobra à escrita mudou completamente nossa relação. O Buckowski (aff, citando um boy, mas) tem um poema que diz “o problema que eu encontrei / na maioria dos poetas que eu conheci é que / eles nunca tiveram um trabalho de 8 horas / e não há nada / que coloque uma pessoa / mais em contato / com as realidades / do que um trabalho de 8 horas”. Digo isso porque à primeira vista a existência de uma poeta dificilmente parece casar com um trabalho fixo. Eu consegui um por necessidade, claro – onde não escrevo, mas faço e aprendo outras coisas. Fora as manas do slam das minas, que me contaram estar pagando seus boletos com a venda de seus zines e o chapéu que passam nos eventos, são raríssimos os casos de poetas que se sustentam financeiramente com seus poemas – a inviabilidade desse mercado literário para uma autora é uma discussão urgente, cuja porta, inclusive, as minas do slam vêm empurrando revolucionariamente. Mas por enquanto preciso trabalhar 9h por dia e isso muda a relação com os poemas não só pelo tempo, mas porque demanda inventar uma forma de ativar esse lugar, fixo, fora do papel, pra onde vou diariamente. De lutar contra todas as repetições e adestramentos, poeticamente falando. O poema se torna a relação obrigatória com a outra, com o seu próprio corpo gasto, com a violência minuciosa do sistema. O poema tem que ser feito no ônibus, num rascunho tremido, corrido.
As condições de trabalho de uma poeta vocês podem ler no manifesto que escrevemos para o nosso movimento, uma coalizão de poetas mulheres chamado RESPEITA.
Pra mim eu diria nunca desistir ou esquecer dessa guerra.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um longo inventário de todos os gestos de uma mão.