Maria Inez do Espírito Santo é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo meu dia cuidando de mim, de meu quarto e das plantas que tenho em casa. Alimento-me e dou água às plantas. Arrumo minha cama, tomo meu banho e, aí, sinto que o dia pode, realmente, ser levado adiante.
Embora seja uma pessoa agitada que se movimenta com grande rapidez, pela manhã demoro mais do que parece necessário para desembaraçar-me dessas pequenas tarefas.
Interessante: ao escrever a palavra desembaraçar, lembrei-me da expressão em espanhol que fala da gravidez: embarazada. É mais ou menos isso. O termo antônimo, desembarazada, quer dizer desempacotar. Como se eu tivesse que abrir o invólucro todas as manhãs: uma espécie de desfazer o embaraço do sono, dos sonhos… desatar nós.
Mas, normalmente, este é um tempo muito bom. Por isso não gosto de sair de casa cedo. Durante quase toda minha vida tive que me despachar depressa: para a escola, para os muitos trabalhos… Agora, que faço meu próprio horário, procuro não ter compromissos externos antes de me sentir pronta. Gosto que meu amanhecer interno se dê mansamente. Isto quando estou sozinha, porque se tenho companhia, é inevitável querer acertar o ritmo com o outro e aí a sintonia produz resultado diferente.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor a partir do entardecer, o que não é tão desejável, porque quando engreno num trabalho não consigo parar, o que prejudica meu tempo de sono. Nessas ocasiões, sempre me lembro do João Ubaldo Ribeiro, numa entrevista, dizendo que escrevia melhor de madrugada, enquanto os invejosos estavam dormindo…
Tenho um ritual pessoal com certeza, mas é difícil descrevê-lo. Tem a ver com espaço, iluminação, silêncio e fundamentalmente com estar só. Não sou capaz de escrever na presença de outra pessoa.
Gostava (e ainda gosto) de escrever à mão. Foi a imposição da necessidade de produzir livros didáticos (para a minha Escola Viva), o que me exigia praticidade, que me obrigou a me render ao computador e, em consequência, a vir a aceitar a Internet.
Mas ainda hoje, quando uso papel, sou exigente com a gramatura da folha (sempre branca), com o tipo de grafite e com a ponta do lápis ou com o bico ou a pena da caneta. Gosto de caligrafia, do desenho das letras, esta é a questão. Um ponto interessante é que ao escrever à mão minha letra muda, de acordo com a emoção…
Também sinto que facilita minha entrega à escrita ter duas pedras, perto de mim. Por vezes me agrada tocá-las e batê-las, uma na outra, antes de me debruçar sobre o trabalho. A sensação táctil e o som de fricção do pequeno choque entre elas parecem abrir alguma fresta.
Preciso de silêncio externo. Música só entra nessa química se for clássica. Lenta, de preferência…
Antigamente gostava de tomar café, enquanto trabalhava. Descobri que um bom chá faz efeito análogo, que o prazer oral do fluir – e não o tipo de líquido – é que vai irrigando meu ritual.
Preciso também que haja certa ordem no ambiente. Não consigo produzir no meio do caos.
Mas, se me acontece de escrever pequenos textos num parque, num café quase vazio, durante uma viagem ou passeio, ou até mesmo num momento de afastamento pessoal, durante uma festa, isso se dá como que por impulso, trazido pela energia de um ambiente que não controlo. É bom também. Nesse caso sinto como se fossem pequenas, mas preciosas faíscas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não me obrigo a escrever. É um ato que sempre me foi prazeroso, então não quero estragar essa relação, tornando-a uma obrigação. É difícil resistir à pressão externa, às cobranças de pessoas que, por gostarem de ler meus textos, estão sempre perguntando: Está escrevendo algo novo? É bastante desagradável lidar com isso.
De tempos em tempos faço as páginas matinais propostas pela Julia Cameron em sua proposta de desbloqueio criativo. É um exercício excelente: 3 páginas diárias, escritas à mão, sem pensar enquanto escreve, nem reler. Apenas escrever, como limpeza, como jorro.
Mas minhas verdadeiras escritas, textos para livros, trabalhos acadêmicos, ensaios, acontecem em períodos concentrados. Mergulho pelo tempo necessário, meio sem respirar. Termino exausta!
Já crônicas, quando as escrevo para o blog, saem mais facilmente e encaro-as como exercício, também. Da mesma forma que entrevistas escritas, longas dedicatórias, cartas aos amigos, introdução para livros.
Uma coisa que interfere nesse processo é a presença nas redes sociais. Minha frequência é intensa, porque, como não se pode confiar em noticiários no Brasil de nossos dias, é uma forma de me manter minimamente informada. E aí é impossível não opinar e vou além disso, buscando dar alguma colaboração eficiente. Mas reconheço que desvia minha atenção. E como um postergar inevitável.
Como é seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não costumo começar pela pesquisa. Acontece que um assunto, um tema, me provoque o desejo de escrever e aí eu inicio. A partir de então, ponho-me a pesquisar e vai acontecendo um entremeio, com naturalidade.
Embora adore pesquisar, como leitora não me agradam os textos cheios de citação. Então, baseada em minha própria experiência, não acho bom que as pesquisas se imponham sobre o texto autoral. É como dizia meu velho analista, dr. Lourival Coimbra: “Quando você come peixe, você não vira peixe, o peixe é que vira proteína do seu corpo.” Daí eu penso que o que aprendo com as pesquisas deve ir aparecendo quase que espontaneamente, no texto que produzo, traduzido em meu estilo.
O importante é fazer registros criteriosos do que foi pesquisado e citá-los minuciosamente ao final do texto, dando a oportunidade de o leitor expandir sua leitura, se assim desejar, honrando os autores que nos abriram portas.
O que é difícil, à medida em que vou pesquisando, é não escancarar tantas frentes na escrita, que me arrisque a perder o fio da meada. O ir e vir, entre a expansão do conhecimento e a capacidade de fazer a interligação adequada entre os assuntos abordados, é que pode dar a concisão e o fluxo que tornam a leitura do texto agradável e instigante.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Procuro aceitar os tempos de estio. Nos intervalos, artesaneio: faço tricô, bordo, costuro à mão, pinto casinhas em pedras portuguesas. Faço a mão literalmente. Preparo a mão. Dou às minhas mãos outras oportunidades de expressão, enquanto elas se recusam a revelar as palavras que contenho em mim, represadas.
Quanto ao medo de não corresponder às expectativas, não tenho receita pra isso. Sofro a parte que me cabe, repetindo pra mim mesma que isto é uma tolice. Que afinal, a expectativa maior é minha mesma e está ligada ao ego, à vaidade, à onipotência e que é preciso não me levar tão a sério assim. Aos poucos vai funcionando…
Objetivamente só tive um projeto mais extenso: o livro “Vasos Sagrados”, que levei 6 anos para concluir. Fora disso, o projeto longo é, de fato, a própria escrita, porque durará toda a minha vida, eu sei. E não terá um ponto final. Talvez, por isso, eu goste tanto de reticências…
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Revisões também são trabalho sem fim… Vou revisando e sabendo que sempre poderei mudar, continuar apurando. Mas sou do signo de Áries – paciência não é meu forte – portanto, a um momento, desisto de procurar defeitos. Ou publico e um dia percebo que podia estar melhor ou, se não publico, faço revisões mais adiante, quando releio o texto.
Acontece também de ter textos guardados e não reconhecê-los, quando os releio, tempos mais tarde. É surpreendente e muito estranho. Normalmente são textos que de boa qualidade.
Para ser publicado por uma editora é obrigatório passar pela revisão formal, feita por profissionais especializados. Pra mim é duro. Não gosto que mexam nos meus textos.
Quando fui coordenadora pedagógica em escolas, ensinava aos professores a ter muita delicadeza ao corrigir os trabalhos dos alunos. Principalmente redações. Nunca riscar, nunca impor mudança de palavras. No máximo sugerir e marcar erros ortográficos, a serem corrigidos, com dois minúsculos tracinhos e jamais em vermelho.
Trabalhei algum tempo como repórter e redatora de jornal e odiava que adulterassem meus textos. Felizmente a tentativa de fazê-lo aconteceu poucas vezes.
Mostrar um texto a alguém para pedir uma opinião, uma orientação, é quase como fazer ultrassonografia. Talvez, a partir do exame, seja possível tomar alguma cautela em relação ao desenvolvimento do bebê, mas essencialmente você não pode transformá-lo. Sinto a criação como alguma coisa extremamente frágil, no melhor sentido desse termo. Frágil como um cristal. Nada fraco. Potencialmente fortíssimo, mas que necessita de muita delicadeza no trato.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como já contei aqui, a princípio fui completamente hostil com a tecnologia. Até que me rendi a ela, quando percebi que era quase mágico o fato de poder fazer correções simultaneamente. Veja que tenho 71 anos e sou do tempo em que o máximo de tecnologia que usávamos era a máquina escrever, que incluía a necessidade de corretor de carbono branco etc… Daí meu encanto quando pela primeira vez vi que podia fazer e refazer o texto automaticamente, no computador.
Mesmo assim só domino as ferramentas mais elementares para a produção dos textos. Mas venho fazendo mínimos progressos tecnológicos, quando a necessidade se impõe, para resolver alguma situação específica.
Por incrível que possa parecer, atualmente coordeno um grupo de Leitura e Reflexão online! Foi a forma que encontrei de dar prosseguimento a um trabalho de mais de uma década, morando no exterior.
Algumas vezes faço rascunhos à mão. Mas reconheço que não é muito sensato, nos tempos em que vivemos, armazenar tanto papel. Sou uma pessoa um tanto nômade e como o passar dos anos, o acúmulo de caixas e caixas de cadernos e pastas com escritos tornou-se uma preocupação a mais. E também comecei a imaginar meus filhos tendo que dar conta de todo esse acervo, quando um dia eu partir de vez.
Aproveitei a última mudança – dessa vez para fora do Brasil – e comecei a digitalizar tudo o que tinha guardado. Muita coisa tive que digitar letra por letra! Só um detalhe, para exemplificar o esforço que me custou: tenho uma correspondência de 50 anos com minha irmã, uma tonelada de cartas!
Nesse aspecto preciso reconhecer que um pendrive é bem mais leve que um baú, embora não tão charmoso, é verdade.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Embora, modéstia à parte, eu seja uma central atômica de ideias, dificilmente escrevo sobre elas.
Os hábitos que me mantém criativa são os mais simples possíveis: caminhar, cuidar, sentir e expressar meus sentimentos sem reserva (aceitando os riscos de fazê-lo), contemplar a natureza, interessar-me por pessoas que encontro, pelas suas diferentes formas de ser e de viver, trabalhar com as mãos e principalmente ousar fazer diferente. Sou autoexigente, mas quase sempre gosto muito do que consigo aprender sozinha, ainda que com dificuldade. Isto me fortalece, sem dúvida.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Comecei a escrever ainda menina, fazendo poesias, escrevendo diários. Só lembro de alguns trechos que guardei de cor, porque, aos 26 anos, queimei tudo o que escrevera até então. Nessas alturas redações escolares, cartas e textos amorosos foram incinerados também, numa grande fogueira que ardeu por uma noite inteira. Hoje eu lamento ter tido aquele impulso. Aconteceu, porque eu queria me transformar subitamente e me sentia presa a tanto romantismo. Agora, lembrando daquela menina e daquela mocinha, eu sinto orgulho delas. Sinto saudade da alegria simples que me dava escrever, enquanto sonhava ser escritora.
É muito bom ouvir, agora, minha neta Lucia, de 10 anos, quando me telefona para ler para mim suas redações. Fico encantada! E grata, por ela querer escutar minha opinião.
Acontece o mesmo quando alguma pessoa amiga me pede para ler seus textos, quando se sente insegura sobre a possibilidade futura de publicar. Eu sempre estimulo, porque para mim tudo aconteceu quase como magia. Sou grata e procuro retribuir o que a vida tem me oferecido.
Sem dúvida, amadureci ao longo dos anos e meu texto amadureceu também. Crescemos juntos. Acho que pertencemos um ao outro e mesmo que não viesse a publicar, desde muito cedo me senti uma escritora em construção. Afinal, para mim, escrever é uma forma de falar com as mãos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há dois projetos, nesse momento.
O primeiro é minha dissertação de mestrado, cujo tema, por sugestão de minha orientadora, é minha própria vida profissional. Isto é um desafio enorme, porque embora tenha muito pra relatar, tudo o que realizei até agora foi sem preocupação com embasamento teórico. O rigor acadêmico me obrigará a encaixar minha história em teorias pré ou pós existentes, o que me parece um tanto assustador.
Acrescento a isso que será um trabalho que me exigirá revisitar meu percurso detalhadamente, para além do bem-estar e do mal-estar que isso venha a me provocar.
O segundo é escrever um livro de ficção, um romance, quem sabe? Nunca me permiti escrever ficção e penso que poderia ser uma excelente forma de acertar as contas com a vida real, olhá-la pelo seu outro lado, oculto. Este será um livro que gostarei de ler.