Maria Helena Machado é autora das peças Sexton e Aos Peixes e do romance 1757, ainda a ser lançado.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu já desperto ansiosa então logo após me espreguiçar e esvaziar a bexiga sento numa almofada durinha e tento meditar por vinte minutos. Pratico meditação transcendental, aquela que foi propagandeada pelo David Lynch e que, na época em que começou a ficar popular aqui no Brasil, foi alvo de muitas críticas e deboche da minha parte, achava ridículo pagar caro por um curso que te dá um mantra particular. Bem irônico porque o Lynch sempre foi um dos meus cineastas preferidos, amo a liberdade dele, sua voz única, a abertura para o inconsciente, e fiquei achando que ele tava fazendo um papelão. Cuspi pra cima porque há cerca de dois anos anos finalmente me rendi à meditação transcendental e foi a técnica que mais funcionou comigo. Não que eu consiga parar os pensamentos, mas só o fato de ficar de olhos fechados repetindo um som meio mágico dentro da cabeça já dá uma amenizada na inquietude e muitas vezes surgem imagens interessantes. Tem uma frase do livro que o Lynch escreveu sobre a MT que diz que em águas profundas estão os peixes mais robustos. E a literatura que me move é essa, aquela que nasce do mistério, daquilo que a gente sabe mas não sabe que sabe. Mas enfim, depois de meditar, tomo limão com gengibre, própolis, cúrcuma e pimenta cayena, engulo meus comprimidos diários e vou ao café e ao primeiro cigarro do dia enquanto repasso as tarefas burocráticas e mentais a serem cumpridas. Minha agenda varia de acordo com os projetos que estou envolvida no momento, tento não marcar nada pela manhã porque preciso mexer o corpo antes de qualquer exercício mental, sou viciada em endorfina, meu humor é um antes e outro depois do suadouro, mas quando a criação é coletiva muitas vezes tenho que me render e colocar a cabeça pra funcionar logo cedo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Parece que quase o meu dia inteiro é um grande ritual para começar a colocar as coisas em palavras. Sou coruja, durante a madrugada é quando sinto que a conexão se abre, como se meus neurônios virassem antenas cheias de Bombril. Meu caos interno é grande e aí tento encontrar maneiras de aplacá-lo. Tudo em volta precisa estar limpo e organizado. Antes de sentar em frente ao computador, acendo um incenso, coloco o celular no modo avião, às vezes ponho uma música – não pode ter letra, agora tô na fase de escutar Chopin – mas na maioria do tempo qualquer barulho me dispersa, então prefiro mesmo o silêncio. E aí deixo as coisas virem.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sou picotada em tudo. Preciso de muito esforço pra manter uma linha de raciocínio contínua, meu método é feito de catar cacos que em algum momento começam a fazer clic, clic, clic e as peças vão se encaixando, como um grande quebra-cabeça. Escrevo todos os dias, mesmo que seja apenas frases soltas ou uma ideia, mas quando o prazo aperta estipulo cronogramas e começo a correr contra o tempo. Tenho feito o exercício hercúleo de tentar manter o foco sem pressão porque senão a pressão vira o foco e atrapalha tudo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo é bem caótico, então tudo vem de notas, o começo, o meio e o fim. O momento da escrita em si não é prazeroso, o alívio só acontece quando encaixo os pedaços. Meu maior obstáculo é a ansiedade. Fumo vários cigarros, tomo café, água, ando de um lado para o outro, tenho dificuldade de ficar quieta por mais de dez minutos, anoto coisas em diferentes cadernos, uso o bloco de notas do celular, gravo áudios. Meu marceneiro foi incrível e projetou uma mesa articulada que me permite escrever em pé ou sentada, tem me ajudado bastante. Quando estou criando, geralmente a pesquisa e a escrita acontecem simultaneamente, uma vai puxando a outra e se retroalimentam. Só começo pela pesquisa em trabalhos acadêmicos ou quando se trata de um tema especifico que está longe do meu universo. Agora, por exemplo, estamos iniciando a seis mãos – amo trabalhar em parceria – uma série fictícia, Punga, que se passa no tambor de crioula do Maranhão. É uma realidade que desconheço, então a etapa de pesquisa é ponto de partida. Quando escrevi a peça Sexton, em parceria com a Juliana Schmitz – minha dupla mais constante, funcionamos muito bem juntas- não sabíamos nada sobre a Anne Sexton, incrível poeta americana expoente do Confessionalismo que cometeu suicídio e, na época da peça, era pouquíssimo conhecida aqui no Brasil. Tivemos que adentrar sua biografia, vasculhar seus poemas, descobrimos um universo sentimental com o qual nos identificamos muito, ficamos completamente encantadas por ela antes de iniciarmos a dramaturgia. Não lido bem com arcos dramáticos e jornadas do herói, acho difícil quando preciso seguir narrativas clássicas, passei anos lutando contra isso, mas a literatura – diferente dos roteiros e da dramaturgia, que na maioria das produções partem de escaletas previamente definidas – me fez descobrir que posso me esparramar. É a palavra que me dá corda.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Me sinto procrastinando dia e noite, meu ritmo é outro, sou lenta, mas aos trancos e barrancos venho tentando eliminar toda espécie de comparação em relação ao tempo, essa instância soberana. Talvez seja também por isso que eu gosto de projetos longos, acho que as mudanças internas vão sendo absorvidas e acabam dando origem a transformações também na narrativa, o tempo permite descobertas em períodos mais espaçados. Trabalhos relativamente longos em conjunto me deixam bem empolgada. Apesar das intempéries que sempre surgem no caminho, gosto de estar numa equipe, das trocas, aborrecimentos e desafios, de ir descobrindo as potencialidades de cada um e até usar as relações do processo como material criativo. Expectativas são uma bela bosta, sou super medrosa, mas em qualquer criação é preciso meter a coragem em cima do medo, abrir as pernas e deixar sair algo pro mundo, e tudo pode ser feio ou bonito. Tenho que ficar repetindo isso pra mim mesma feito um mantra. As travas surgem sempre, às vezes insisto pra ver onde vai dar, geralmente quando o prazo tá apertado, mas senão vou fazer outra coisa que de repente o clic vem. Acho que existem dois tipos de pessoas, as que vivem e as que observam. Penso que na maior parte do tempo sou espectadora. E de repente o mundo de fora destrava.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Ih, inúmeras vezes, pode ser um trabalho infinito. Abandono na hora que tem que abandonar. As peças e os roteiros que escrevi muita gente leu antes que eu enviasse para algum concurso ou que fossem filmados ou encenados. Pela própria natureza do teatro e do audiovisual, onde o texto cênico é o produto final, aquilo que tá no papel entra em contato com muita gente e vai sempre sofrendo modificações, são olhares sobre olhares, a publicação é a cena, mas até aí já passou pelo crivo de muita gente. Meu romance ainda não foi publicado e será minha estreia na literatura, que sinto ser feita quase que exclusivamente de solidão, o texto é o contato direto do escritor com o leitor. Escrevi o livro, 1757, ao longo da oficina de romances da Carola Saavedra, minha mestra mor, escritora incrível que super admiro, como artista e como pessoa e como mulher e como professora, e a Carola acompanhou todo o processo, assim como os colegas que passaram pelo caminho. A metade final do livro foi escrita paralelamente a um grupo de escritoras regido também pela Carola, não era para ser só de mulheres mas acabou sendo, um desses encontros potentes que aniquilam os acasos, aconteceu uma mágica, um verdadeiro caldeirão, líamos umas às outras, falávamos de ser mulher e dessa mochila de chumbo gigante que carregamos nas costas. Isso foi muito inspirador e necessário, me deu coragem pra encarar o universo feminino abafado. E agora o livro tá sendo lido por alguns poucos amigos escritores que admiro e confio muito e pela minha irmã mais nova. Acredito na troca, dou muito valor à opinião dos outros, gosto de ouvir olhares e no meio deles tentar descobrir qual a minha verdade, que também está sempre mudando.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre que tenho uma ideia sinto que ela pode me escapar então anoto na hora. O celular ajuda muito porque escrevo no bloco de notas ou me envio um áudio. Sempre ando com um caderno, mas a possibilidade de falar ao invés de escrever é um super adianto porque a cabeça funciona mais rápido que as mãos. Pra passar do bloco de notas pro editor de texto é só recortar e colar. Apesar de eu ter muitas coisas escritas à mão – gosto de sentir a concretude do lápis ou da caneta correndo no papel como uma extensão do corpo – por conta da pressa para não esquecer o pensamento muitas vezes eu mesma não entendo o que escrevi. Acho que a tecnologia ajuda na praticidade.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Das pessoas, das relações, da vida, das coisas atrás das coisas, da arte. Acho que a arte alimenta a arte. To sempre com um livro a tiracolo, vou muito ao teatro, sou fissurada em teatro, vejo filmes – mas to totalmente por fora das séries – adoro viajar, ir à museus, e tenho a sorte de ter ao redor pessoas queridas, sagazes e muito inspiradoras. Acredito que o auto conhecimento é uma das principais ferramentas para a criação, as obras que me tocam são aquelas que escarafuncham a fundo, que falam destes temas universais que nunca vamos entender, a morte, a vida, o tempo, o mistério da existência. Faço análise jungiana há quinze anos, gosto de ler sobre psicologia, astrologia, espiritualidade, mitologia. E sempre fico conectada porque “chamo” histórias de desconhecidos, não raro alguém vem me contar alguma coisa, no ônibus, na fila do mercado, no táxi, no banco… Enfim, tudo pode ser fábula. Ou já é.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu teria escrito muito mais se não tivesse lutado tanto contra o caos. O fato de ter descoberto e assumido a literatura foi um grande ponto de virada, um verdadeiro renascimento. Sinto que é a linguagem pela qual me expresso melhor, onde posso me esparramar. Então, eu diria para mim mesma: deixa de ser besta e aceita seu processo caótico, não trava uma batalha contra ele, só respira e escreve.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho muita vontade de levar romances de escritoras mulheres para a cena, gosto muito da relação entre a literatura e o teatro. E eu gostaria de ler milhares de livros que já existem, mas não dá numa única vida, tomara que eles continuem existindo em outras.