Maria Fernanda Elias Maglio é defensora pública e escritora, autora de Enfim, imperatriz (Patuá, 2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tento acordar o mais cedo possível, porque é o único momento em que consigo escrever. Faço café, vou ligando o computador, relendo algum texto em que estou trabalhando, entrando devagar na literatura. Adoro as primeiras horas da manhã, porque são frescas, ainda estão impregnadas de sono, de sonho. Depois o dia começa de verdade e a rotina vai atropelando tudo, as preocupações, os compromissos de trabalho e das crianças me mobilizam e a literatura vai se perdendo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sem dúvidas de manhã é a hora em que melhor escrevo. Não só por ser a única possível, mas porque a minha escrita mora aí, nesse dia recém-chegado, ainda não contaminado pelos horários, o trabalho, as crianças. Às vezes tento escrever um pouco à noite, mas quase nunca rola uma boa sessão de escrita. Geralmente estou cansada demais e, apesar de adorar a noite, tenho muito sono, acabo dormindo cedo. Já percebi que minha produção literária vai bem com uma cabeça fresca, sem emoções fortes, nem tristeza, nem alegria, um estado quase neutro, que só acontece de manhã bem cedo, com o dia ainda imaculado. Já tentei escrever, por exemplo, bebendo um vinho, essa coisa bem clichê de escritor se inspirando e para mim não rola. Tem que ser de cara limpa, cabeça sóbria, energia toda na escrita.
Não tenho ritual para escrever, porque se construir qualquer ritual, não vou escrever. Se eu criar rituais, vão ser de procrastinação e não de escrita. Escrevo com interrupções. Meus filhos acordam, pedem leite, para trocar o desenho na televisão, brigam, demandas de crianças. Então é uma escrita interrompida, cortada. Tive que aprender a trabalhar assim. Até porque não conheci outra forma, quando comecei a escrever já tinha dois filhos. Acho que a única coisa que faço de forma sistemática quando escrevo, é não abrir a janela. Ligo o abajur, mas não abro a janela. É como se quisesse guardar um pouco da noite, como se a escrita estivesse nesse liame de dia e de noite.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta diária de escrita, no sentido de número de palavras, mas procuro escrever todos os dias, durante uma hora. Quando comecei a escrever, escrevia quando me sentia inspirada. Isso até entender que inspiração, ao menos para mim, é uma bobagem, dessas tantas que as pessoas inventam para se sentirem especiais em relação ao resto do mundo. Comecei a escrever de fato quando deixei de acreditar em inspiração. Além de que criava uma angústia: procrastinava a inspiração, quando sentia que estava inspirada o suficiente para produzir, me sentia cansada e acabava não escrevendo. Resolvi isso me impondo uma obrigação de escrita, tirando a produção literária desse lugar sacro da inspiração e colocando-a no cotidiano. Só tornei a literatura possível quando a retirei da solenidade. Eu sento e escrevo. Às vezes o resultado é bom, às vezes não. Uma vez um grande amigo escritor, Diego Schutt, me disse algo que nunca me esqueci: em uma produção longa, o próprio escritor não saberá qual parte do texto foi feita em um momento de grande inspiração e qual não. Quando estou meio de bode, sem conseguir produzir algo que preste, aproveito para reler textos em que estou trabalhando, pensar em alguma poesia não terminada.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não costumo compilar notas, mas dependendo do que estou escrevendo, faço pesquisa sim, acho uma delícia fazer pesquisa. Há uns meses escrevi um conto sobre um mergulhador e pesquisei bastante sobre mergulho, nome dos equipamentos, de peixes, animais marinhos, assisti a vídeos. Mas o meu processo não é: pesquisa, pesquisa, pesquisa, escrita. Às vezes escrevo um pouco, daí sinto necessidade de pesquisar, escrevo mais um pouco e faço outra pesquisa. É o próprio texto que me indica a necessidade de pesquisa, porque em geral o processo começa com escrita e não com a pesquisa. Minha escrita é muito orgânica, vou puxando a fita devagar para não arrebentar. A pesquisa é o que me ajuda a não arrebentar a fita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas na escrita, a procrastinação, a ansiedade, sempre vão existir, ao menos para mim, que sou uma pessoa que me questiono o tempo todo sobre tudo. Procuro não pensar muito sobre isso. Meu processo de escrita acontece de uma forma espontânea. Tem um espaço que não conheço direito, algum território entre o consciente e o inconsciente, onde moram as histórias. Enfio a mão e puxo uma história devagar para não arrebentar. O veículo que permite puxar a fita é a linguagem, é através dela que a história aparece. Procuro confiar que isso sempre vai dar certo (o que não significa que todas as produções darão bons textos), que esse espaço nebuloso não vai se tornar estéril de ideias e que serei capaz de achar a linguagem com a força necessária para desencravar a história desse território.
Tenho um romance em andamento, mas minha produção até agora é de contos e poesias. Então projeto longo é alguma coisa que me gera ansiedade, com certeza. Como tenho esse processo muito improvisador, de deixar me levar pela linguagem, ir sentindo a história através da linguagem, tenho dificuldade de planejar, o que seria fundamental para um trabalho extenso, como um romance. Isso para mim é um problema, porque qualquer planejamento se perde nesse puxar da história por meio da linguagem. Ainda preciso achar um meio, que funcione para mim, de lidar com projetos longos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus textos de modo exaustivo, acho que é minha obrigação como escritora mostrar o melhor trabalho possível. Mas é engraçado que a produção final, depois dessa revisão minuciosa, é muito semelhante à primeira versão do texto. Claro que há diferença, mas é sutil. Apesar da sutileza, a mudança é fundamental. A supressão de uma frase, de uma palavra, faz toda diferença no resultado final do texto.
Meu primeiro leitor é meu marido. Foi a primeira pessoa para quem mostrei meus textos e continua sendo quem lê tudo que escrevo, antes de qualquer publicação. Ele é um ótimo crítico, conhece meu estilo, sugere pequenas mudanças.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não sou uma pessoa muito tecnológica de um modo geral, mas escrevo diretamente no computador. Até ando com uma caderneta na bolsa, às vezes anoto uma frase, uma palavra, um início de uma poesia, mas o texto só acontece mesmo quando está no computador. E não gravo várias versões, vou gravando a mudança em cima do original, até que o texto esteja pronto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu gosto de perceber a vida, gosto das relações humanas, das interações. Ando na rua atenta às conversas, observando as roupas, os trejeitos, o cheiro de comida, suor, gordura velha, lixo, creme de cabelo, asfalto quente. A vida é muito misturada, diversa, acho que a literatura está aí, nessa mistura, contradição, diversidade. Passo os dias catando essa literatura desperdiçada.
Sou defensora pública, trabalho fazendo a defesa de quem está cumprindo pena, então o que faço muito é procurar literatura nos processos: leio os documentos interessada na vida daquela pessoa, no entorno dela, quem é, quem matou, quem foi estuprada, quantos anos tinha quando cometeu o crime, o que fazia da vida, leio depoimentos, laudos, qualquer coisa que envolva história. A literatura está em todo lugar, mas está, principalmente, onde não há literatura.
Também tenho vontade de escrever com estímulos mais clássicos: músicas e livros. Música é alguma coisa que me dá muita vontade de escrever. É engraçado, porque quando eu ainda não escrevia, há sete, oito anos ou mais, escutar música mobilizava alguma coisa dentro de mim que eu não sabia o que era e era bastante angustiante porque tinha a sensação de algo escapando. Hoje sei que essa consequência de ouvir música, esse estado que me mobiliza, é vontade de escrever.
Também leio bastante, sempre li muito, mas agora com um outro olhar, com olhos de quem também escreve. A não ser que eu esteja lendo Guimarães, se eu estou lendo Guimarães leio com olhos de que se encanta e só. Se fosse ler Grande Sertão com olhos de quem escreve, nunca mais ousaria escrever na vida.
Há dois anos frequento a oficina da Noemi Jaffe e para mim tem sido excelente. Ter a obrigação de escrever de determinada forma, sobre determinado tema, diferente do que eu pudesse supor, me ajudou muito a construir um texto melhor. A limitação na escrita, ao contrário de suprimir, liberta a linguagem e pontencializa a história.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos?
Minha escrita é relativamente recente, então as mudanças ainda não são tão perceptíveis. Mas eu tinha receio de ser uma escritora de um único tema. Meus primeiros escritos tinham como cenário um ambiente rural e as histórias eram passadas em um tempo que não era o hoje. Então tinha medo de nunca conseguir escrever uma história que se passasse na cidade e hoje. Fui perdendo o medo ao longo dos anos, a medida em que percebia que minha verdade como escritora poderia aparecer em qualquer cenário, em qualquer tempo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de conseguir concluir o romance em que estou trabalhando, é minha principal pretensão literária (e que fique bom, claro).
Tenho vontade de ler qualquer livro que Guimarães poderia ter escrito e não escreveu. Então o livro que eu gostaria de ler não existe. E não é ainda, infelizmente.