Maria Ester de Freitas é professora titular aposentada da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (FGV).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Estou em vias de estabelecer uma nova rotina de vida, em virtude de minha recente aposentadoria, quando me afastei das classes de graduação e pós-graduação, porém continuo com algumas orientações de doutorado a serem concluídas até 2019. No momento, tenho sido a minha própria prioridade; ou seja, sou exclusivamente meu plano A para recolocar a saúde em bons termos, antes de mergulhar em alguns projetos de livros que já tenho definidos e que devo iniciar nos próximos meses. Não creio, contudo, que a aparente disponibilidade de tempo altere substancialmente a minha forma de escrever ou o meu ritmo.
Agora, sem ter que estar na escola e sem a preocupação com tempo gasto no trânsito, meu dia começa tranquilo com a alimentação de meus dois gatos (Capitu e Georges), a degustação do café e do jornal, seguidas de cuidados no meu pequeno jardim de varanda. Depois disso, me estabeleço em minha biblioteca e organizo a tarefa do dia. Geralmente releio o que escrevi antes, caso o texto esteja em construção; ou reviso os rascunhos, caso não tenha ainda dado o chute de partida. Uma caneca de café é obrigatória, mesmo quando fica gelado.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Atualmente posso começar a trabalhar a qualquer hora, desde que não tenha que interromper o que estou lendo ou escrevendo; não consigo me concentrar em múltiplos objetos simultaneamente e não gosto de barulhos quando leio ou escrevo. Portanto, antes de começar o trabalho intelectual me asseguro que resolvi pendências domésticas; é importante salientar o fato de que moro sozinha, o que diminui enormemente as oportunidades de dispersão, mas o telefone e serviços de mensagens sempre podem trazer o mundo para perto (deixo que toque ou guarde mensagens, cuido delas quando faço um intervalo). Gatos são animais muito companheiros para um escritor, deitam do lado do computador e dormem enquanto você escreve; gostam de livros, mas não mexem nas suas marcações. Suas presenças irradiam serenidade e relaxamento. Eles também gostam de estar no meio dos livros só pelo prazer de estar.
A organização do trabalho em si depende do tipo de “produto” e do seu estágio. Por exemplo: o início da escrita de um artigo ou capítulo de livro ou livro difere da sua fase de planejamento e estruturação, que por sua vez é diferente das fases de “ruminação” e “terraplanagem”, quando dos aspectos principais de definição do objeto, perspectiva e metodologia. Devo dizer que faço exatamente o que prego aos meus alunos: todo projeto grande ou pequeno nasce de uma pergunta-chave. É a pergunta que me diz o que ler, quais as escolhas metodológicas, qual o tom da escrita, qual a sua importância, que objetivos atende, interessa a quem e quais os limites do meu trabalho. Muitos dos meus textos trazem a pergunta no próprio título.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Acredito muito na combinação do gosto pela escrita, do interesse genuíno pelo assunto e do pé na realidade em relação ao tempo. Isso significa que se o autor está trabalhando com um prazo fixo e preza a qualidade das coisas que assina, o tempo tem que ser bem distribuído em relação às demais solicitações de uma vida cheia de tentações. Não é incomum se subestimar o tempo para submissão de papers para congressos e versões de dissertação ou tese; depois vem o choro pela prorrogação de prazo pelas mais diversas razões. Enfim, o tempo é fixo (24 horas por dia e nada mais), porém como a sua utilização é variável, existe a necessidade de se ter claro o que é essencial e o que é acessório, o que pode ou não esperar e o que se pode delegar para outras pessoas fazerem. Um projeto bem definido é um script fabuloso, pois traz os limites que o trabalho deve abarcar, evitando-se perder em um caminho entre o céu e a terra ou perder-se no emaranhado do tudo com tudo.
Escrever é como fazer ginástica: no começo dói muito, as frases demoram a se impor, a tela em branco é um desafio que pode ser enfrentado com gosto ou como uma obrigação da qual se quer fugir; aqui existe uma chance gigantesca para auto sabotagem. Não acredito na inspiração que cai do céu. Do mesmo jeito, não existe texto ou tese na cabeça do autor, uma boa ideia nada mais é que uma boa ideia se não for colocada no papel. Acredito em construir: planejar a casa, juntar o barro, fazer o tijolo, levantar a parede, fazer o acabamento e ter a casa, linda, do jeito que se planejou ou o mais próximo possível dela.
Quando trabalho um texto, escrevo todos os dias de forma concentrada por algumas horas na tarefa que defini para o dia. Sigo a estrutura que estabeleci e organizo o tempo em função dela, sabendo que alguns subtemas ganharão mais força, outros serão diluídos e outros novos aparecerão. Diferente de outras pessoas, não consigo escrever um pedacinho de um capítulo e pular para um pedacinho de outro, escrever vários artigos ou ler vários livros ao mesmo tempo; posso fazer consultas e checar informações entre autores, mas não ler várias obras inteiras simultaneamente. Não tenho uma mente fragmentada e nem sou do tipo de que vai fazendo uma colcha de retalhos para ver no que vai dar. O texto é meu, não do acaso, tenho isso claro. É sempre possível retornar ao que escrevi e fazer melhorias, nenhum texto nasce pronto ou como arte final, mas uma coisa é seguir uma construção, tecendo amarrações, outra é deixar o texto ao capricho das ondas que podem vir ou não. Assumo a minha autoria, para o melhor e o pior.
Durante muito tempo só escrevia à noite e gostava da sensação de saber que a cidade estava dormindo, mas tive que assumir classes pela manhã e precisei fazer um esforço brutal para recolocar meu relógio biológico no horário do mundo. Como o meu habitat natural favorece bastante o silêncio, quando mergulho profundamente em um texto, esqueço até de comer; eu simplesmente perco a noção do tempo. A cadeira e a iluminação têm que ser boas…
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como disse antes, parto sempre de minha pergunta; pesquiso o que já existe sobre o assunto; separo os autores tidos como importantes no tema (consulto as bibliografias de todos os livros tidos como fundamentais); leio muitos livros sobre o assunto-foco ou de alguma forma relacionada, apesar de uma franca e descarada campanha para que a academia se limite a ler artigos dos últimos cinco anos, especialmente os publicados internacionalmente. Neste sentido, sou rebelde, livros continuam sendo minha matéria prima e fonte principal de conhecimento e consulta.
Quando trabalho com pesquisa empírica, leio os autores principais antes de desenhar o questionário ou roteiro de entrevistas, dependendo das técnicas e o método de análise que vou usar. Considero fundamental saber pelo menos o básico sobre o assunto, antes de importunar os outros; penso que é uma falta de educação ou mesmo um desrespeito ir entrevistar alguém sobre um tema ou uma vivência e não se ter a menor ideia sobre o que o outro está falando ou tendo como roteiro um questionário sem noção. Entendo que o trabalho de campo é uma operacionalização que deve gerar um novo campo teórico ou fortalecer o que já existe sobre o tema. Muitos pesquisadores esgotam uma pesquisa no próprio trabalho empírico e não conseguem extrair dele nada além daquilo que os dados já explicitaram, geralmente por falta de um arcabouço teórico que lhes deem sustentação ou porque o tempo foi subestimado.
Leio os livros inteiros e não só parte deles, gosto de falar de um autor sabendo o seu raciocínio sobre o tema. Rascunho o diálogo entre os autores, os contextos que viveram, os pontos de convergência, as grandes discordâncias, os métodos que seguiram, as conclusões a que chegaram. Desta fase, geralmente subestimada por muitos, nasce minha estrutura: as partes, os subtemas, os autores, algumas citações já separadas, o desenvolvimento e análise próprios de questões que se endereçam à pergunta, as conclusões, a bibliografia, os anexos etc. O tempo inteiro a pergunta está lá cobrando a sua resposta, por isso o autor deve estar atento ao risco da dispersão e sempre de olho no “isto me ajuda a responder a minha pergunta ou estou derivando ou delirando?”
No caso de artigos, existe hoje um formato bem definido e hegemonicamente aceito, com pequenos ajustes de “personalidade” a cada revista ou ao veículo de publicação; este formato não é apenas físico, mas de organização do conteúdo, é um verdadeiro passo a passo que o autor deve preencher se quiser que o seu texto vá além da primeira leitura pelo editor ou equivalente. Seguindo o modelo internacional, basicamente tem-se que dizer qual a contribuição do artigo para o campo e qual a metodologia. Como resultado, têm-se hoje muitos textos irrelevantes, mas metodologicamente corretos, com argumentações fracas, densidade teórica beirando o zero, bibliografias que não foram lidas, mas apenas ciscadas e recortadas cirurgicamente nas partes que interessavam, uma bibliografia que beira a fraude. Pode ocorrer de se encontrar o autor de um artigo publicado que não sabe nada sobre o assunto se for perguntado para além da superfície. Este é um modelo que, na minha opinião, não aprofunda ou amplia a qualidade do saber, mas aumenta muito a quantidade de coisas escritas e garante os pontos para avaliação do autor, da revista e da instituição. Tudo legítimo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Todo autor passa por situações de impotência temporária, que podem ser as travas a que você se refere ou que também são chamadas de “branco”, “pane” etc. Creio que essas travas podem ser de dois tipos: de conteúdo e de forma. Na de conteúdo, o escritor simplesmente acha que esgotou o seu futebol e não sabe mais o que dizer sobre o assunto, o que nem sempre é verdade, daí ele precisará esfriar a cabeça, voltar à pergunta, aos autores, aos dados e rascunhos; na trava de forma, ele sabe que tem o que dizer, contudo não consegue achar o jeito de explicitar o raciocínio, fica em círculo e a frase ou o gancho, que vai avançar o texto, simplesmente não lhe ocorre no momento.
Na minha experiência, tanto um caso como o outro pede uma parada, sob risco de o autor se irritar e entrar numa espiral de auto humilhação se achando “o/a incapaz”. Eu lido hoje com isso como sempre lidei: largo de mão, vou para o cinema, leio um livro policial, vejo uma série na televisão ou vou tomar cerveja com os amigos e falar bobagens. Isso sempre dá certo comigo, volto, releio tudo, apago ou rasgo, reviso e aí – quando as sinapses fazem o seu trabalho – eu retomo o caminho. Já descobri que não adianta insistir a partir de um certo ponto, o cérebro se recusa a cooperar nessa direção. Mas é preciso ter claro que estas situações não são por tempo indeterminado, é preciso colocar um prazo para a pausa e isto é bem diferente de preguiça e sabotagem.
Sou uma pessoa muito disciplinada quando escrevo, geralmente procuro cumprir meu cronograma, não negocio adiamentos comigo mesma; quando preciso, faço ajustes internos (sacrifico meu tempo pessoal), sem alterar a data final. Não gosto de ficar no limite, então me organizo para terminar o texto antes do prazo externo e, quando consigo, me dou mais lazer como presente. Ou seja, se termino uma tarefa antes, uso o tempo restante comigo e não com outra tarefa na fila de espera. Tento não assumir o que não posso e nem escrever sobre assuntos que não me despertam o prazer de saber sobre eles. Descobri há tempos que saber dizer não é um luxo, pelo qual geralmente pagamos muito caro, mas também descobri que é um luxo você escrever sobre o que acredita que de fato importa.
Existe, sem dúvida, o medo da vergonha de não corresponder às expectativas alheias e eu o vivi algumas vezes; observo isso também em meus orientandos e tento ajudá-los a superar; sou muito exigente, mas sou dedicada e atenta ao comportamento deles. É normal que queiramos ser aplaudidos pelas pessoas que admiramos, especialmente as que estão conosco numa empreitada de longo prazo, como numa tese, por exemplo. É bom que nos preocupemos com a qualidade do que fazemos, não apenas por não querermos decepcionar o nosso orientador ou orientadora, mas para não decepcionarmos a nós mesmos, a ter cuidado onde colocamos o nosso próprio nome; sou antiquada em relação a isso: acredito piamente que o nome de uma pessoa fala por ela.
O medo muitas vezes paralisa a pessoa, pega-a pela sua mão, leva-a para um esconderijo e diz-lhe para não se mexer. Ora, quem já superou o medo de escrever e ser julgado como autor, sabe que bobagens podem ser muito didáticas, que elas expõem as nossas falhas e a gente só melhora quando reconhece nelas o que pode ser aprimorado; as bobagens, especialmente as lidas em voz alta, são um feedback precioso, a pessoa se dá conta da enormidade da besteira que disse e é bom rir disso, corrigir o rumo; uma bobagem bem aproveitada tem o seu valor, por isso ela não deve ficar escondida para aparecer apenas quando foi publicada. Como orientadora, me assusta mais um aluno que acha que “não tenho nenhum problema para escrever”, do que um outro que me diz “sou do tipo que diz tudo numa frase” ou “sou um horror escrevendo”. Geralmente, a minha questão para eles é mais relacionada ao que já leram do que sobre o que já escreveram. Quando um aluno de pós-graduação não leu nada por livre e espontânea vontade ou nunca leu um livro inteiro, sei que será uma luta. Às vezes, perdida. O hábito da leitura é uma maratona que dura uma vida, mas pode ser começado mesmo tardiamente.
Uma vez ministrei um seminário de pesquisa e incluí, no final de cada encontro, uma coisa que chamei de “oficina da escrita”, na qual os alunos tinham que escrever em vinte ou trinta minutos algo sobre um tema bem trivial, como: a mesa, a janela, o estrangeiro, o tempo. Me entregavam e eu devolvia aleatoriamente no início da aula seguinte, para que cada um lesse anonimamente em voz alta o trabalho de alguém. Muitas ideias extraordinárias! Os mesmos objetos vistos e pensados de formas totalmente diferentes, o que nos levava a outras estradas, como as diferentes perspectivas de análise, o olhar do autor, os vieses da nossa própria história, a originalidade do pensamento etc. Uma delícia! Então, vai aí um outro recurso para lidar com a trava: largar o texto um pouco, abrir uma nova tela e escrever sobre um assunto bem descompromissado. É divertido e funciona.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
De novo, a importância de ter uma pergunta bem formulada ajuda muitíssimo; ela é o guia até as conclusões. Considero que termino meu texto quando ele está encadeado de forma que a resposta nas conclusões seja clara para o leitor. Converso muito com o leitor imaginário. Se este texto recebe feedbacks de editores ou pareceres blind review de colegas, leio com atenção suas ressalvas e sugestões. Geralmente melhorias e algumas alterações nos textos são feitas, sugestões são atendidas, autores podem ser incluídos. Porém, também pode acontecer de nem todas as sugestões serem aceitas, caso o autor considere que elas não são pertinentes à sua argumentação ou quando um parecer na verdade está propondo outro texto que não o que lhe foi submetido. Autores e avaliadores são humanos e ambos têm limites; às vezes um ou outro ou ambos esquecem isso.
Um autor tem o direito de negar o que considera uma mutilação no seu texto, se não concorda com o conteúdo que está sendo pedido para ser revisto ou quando existe, da parte do avaliador, um viés ideológico que ele gostaria de ver contemplado no texto que avaliou. Boas revistas são cuidadosas na escolha do seu corpo de avaliadores, este tem claro que a sua contribuição é no sentido de melhoria do texto (caso seja possível, pois alguns textos não são passíveis de serem melhorados nem com reza) e não a de substituir o autor. Um avaliador que domina o assunto, e é bem resolvido em relação à sua própria produção acadêmica, não tem necessidade de massacrar um texto alheio ou ofender o seu autor. Dignamente, pode aconselhar ao editor a sua recusa e justificar a sua decisão tecnicamente para o editor e para o autor, se for política da revista este procedimento.
Eu já tive muitos artigos melhorados a partir das avaliações dos pareceres das revistas a que os submeti. Ao longo de minha carreira, me neguei a fazer mudanças duas vezes e retirei os textos. Numa delas, o “avaliador” não entendia absolutamente nada sobre o assunto e sequer havia lido o livro original que eu resenhara (avaliar o conteúdo de uma resenha solicitada pelo editor já é uma coisa bem estranha). No segundo caso, um dos avaliadores foi corretíssimo em sua avaliação e recomendações, ficou satisfeito com as mudanças efetuadas e deu o seu ok para publicação. O segundo parecer, me causou grande mal-estar, pois tratava-se de alguém que trazia enorme preconceito sobre o tema (diversidade e seus segmentos) ou sobre a autora. As suas ditas contribuições eram no sentido de inviabilizar a publicação do artigo, através de uma escalada cansativa de pedidos de alteração, impossível de ser atendida. Percebi o jogo depois de três meses de vai-e-volta, denunciei-o formalmente ao editor, mas retirei o artigo para evitar uma situação desagradável para este. No entanto, por uma espécie de justiça poética, este artigo foi avaliado e publicado por outra revista nacional e figura como capítulo de livro de uma obra coletiva, publicada em inglês e francês, com muito sucesso.
Foram poucas as vezes em que escrevi em parceria. Nesses casos, os parceiros estão em permanente diálogo, durante todas as fases até a finalização do texto e sua publicação. Mas, no geral, assino sozinha e geralmente não detalho com colegas o que estou fazendo. Falo, quando perguntada, da ideia-chave, da direção que penso que a coisa tomará ou das possibilidades de autores a consultar, mas não gosto de submeter à discussão textos em andamento. Como disse, antes de retomar o trabalho do dia, leio o que foi escrito antes, faço alterações constantes, então o texto está sempre vivo e em movimento, portanto em plena ebulição. Nestas condições, interferências alheias não me ajudam, eu prefiro discutir quando já tenho começo, meio e fim alinhavados. Aí posso considerar o debate alheio, mas dentro da estrutura que eu própria construí, seguindo a minha pergunta de pesquisa e a minha intuição em como respondê-la.
Ainda que o tempo seja um grande teste para qualquer escrita acadêmica, visto que surgem novos desenvolvimentos, novos cenários, novas situações, novos olhares ou novas questões, não me prendo aos textos já escritos para publicar revisões ou novas edições de livros. O que escrevo é circunscrito a um contexto e isto geralmente é explicitado, portanto em uma palestra ou conferência posso trazer o tema para o dia de hoje, mas prefiro me aprofundar no assunto em textos novos ou desbravar novas trilhas teóricas. Isto para dizer que não fico me revisando, sigo com o jogo para frente e não para trás. Por exemplo: o meu primeiro artigo sobre assédio sexual é de 1996, o assunto agora voltou com força mundialmente; me entrevistam e eu analiso os episódios de hoje, mas não tenho intenção de escrever de novo sobre o tema, pois não creio que houve mudança substancial na essência do fenômeno de poder nocivo que ele expressa. As formas de sua manifestação podem ter se ampliado pelo uso da internet, novos ambientes de trabalho e formatos de família, mas na essência, o assédio sexual continua na minha opinião o mesmo em causas e efeitos devastadores. O mesmo posso dizer sobre assédio moral, este explorei em muitos textos, que continuo considerando como pertinentes. Não gosto de mudanças cosméticas ou retornar com um tema já estudado ou requentá-lo por oportunismo de mídia. Não tenho muita paciência para mais do mesmo; é diferente se situar um assunto e partir para questões novas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Leio com a cabeça e com a mão, assinalo as ideias que me parecem fundamentais em um texto, resenho-o depois de concluída a leitura; depois retrabalho todas essas resenhas, muitas delas escritas manualmente. Não tenho problemas em escrever no computador, mas prefiro rascunhar os esboços à mão. Gosto da minha letra e da maneira como vou ligando temas, ideias, autores, perguntas e duvidas com setas, interrogações, redondos, quadrados, negritos, puxadinhos ou parêntesis. Sei que esta estrutura não será definitiva, mas este primeiro bate-bola é muito divertido e me dá muita alegria, eu me aproprio psicologicamente do que vou fazer quando vejo a minha letra no papel e não uma letra uniformizada ou um padrão impresso. Depois, tudo bem passar para o computador, mas este momento fundador do texto é importante para mim. Geralmente guardo essas anotações até o final do trabalho, retorno a elas de vez em quando, depois jogo-as fora; creio que nunca mostrei isso a ninguém.
Como estou sempre mexendo no texto, quando ponho o ponto final é hora do ponto final. Submeto imediatamente, não sem maiores hesitações, já dormi com o texto várias vezes, já debati e briguei com os autores, já ruminei as ideias, assim o que segue adiante é o que considero o meu melhor. Tenho uma atitude humilde em relação ao saber e sei que o que escrevo é temporário e só uma pequena contribuição que se junta a outras; o conhecimento é uma construção coletiva e não tenho a pretensão de ser definitiva em nada, é sempre um gerúndio: se fazendo, aprendendo, construindo, reformulando, repensando, relendo…
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Gosto muito de ler, gosto muito do campo que escolhi e tenho uma boa dose de imaginação. Considero Administração um campo sempre aberto, devedor assumido da interdisciplinaridade, portanto cabem todos os temas. Especialmente as áreas que me interesso são bem abrangentes e multitemáticas, como culturas e relações interculturais, ambientes de trabalho, diversidade ou psicossociologia das organizações e elas me levam a universos bem amplos. Então, tenho sempre muitas interrogações tanto mais teóricas quando diretas do mundo prático. Também gosto de pessoas, me interesso por elas e creio que o trabalho é uma grande fonte de identificação, seja de prazer ou de angústia. Não temos como viver fora das organizações, então melhor entendê-las em suas naturezas, subterrâneos, possibilidades e limites. Na maior parte das vezes os filmes me dão boas pistas, seja porque têm sempre organizações envolvidas, seja porque têm sempre pessoas fazendo coisas com outras pessoas ou contra outras pessoas… Um prato cheio! Afora leituras específicas do campo, leio de tudo, de jornal a bula de remédio. Assim, estou sempre com muitos temas e perguntas, porém – como disse – trabalho um por vez.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Não creio que tenha mudado substancialmente o processo ou a forma de escrever ou meus critérios de escolhas temáticas, mas aprendi melhor como limitar metodologicamente os conteúdos e também a dar-lhes os nomes técnicos. Por exemplo: fiz, sem falsa modéstia, uma excelente análise de conteúdo na minha dissertação de mestrado (a melhor que fiz até hoje), com a criação de categorias, triangulação e tudo o mais, porém nunca tinha lido nada sobre isto, jamais tinha ouvido falar da Bardin! Ainda que eu escreva sobre temas técnicos, não me sinto presa a um linguajar rebuscado, hermético e escolástico, eu gosto de metáforas, gosto das palavras e creio que um texto não precisa ser chato para ser sério. Sou disciplinada em muitas coisas, porém meu modo predominante é informalidade; assim, sempre que possível, uso uma linguagem corriqueira mesmo para explicar conceitos tidos como complicados, de forma que o leitor não precise fazer uma ginástica com dicionários (ou com o Google) para entender o que estou dizendo, porém tenho um enorme cuidado em não ser simplista ou superficial. Sou fiel às minhas fontes e faço questão de deixar claro os meus débitos para com elas. Contudo, se eu precisar escrever um texto rebuscado e metido a besta, eu também saberei fazê-lo, mas não é a minha forma dominante ou preferida. Não escrevo para mim mesma, então se meu leitor-alvo não entende o que digo, o problema é todo meu.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Disse no início que sou recém aposentada, foi uma decisão minha, mas ainda estou na fase de experiência e tenho alguns projetos de livros em perspectiva para o médio e longo prazos. Creio que para o trabalho intelectual não se precisa de um emprego, o seu cérebro com seu saber, sua forma de trabalhar o conhecimento e seu prazer com tudo o que fez ao longo do tempo são patrimônios seus. Então, fico feliz de ter tido uma carreira acadêmica bem-sucedida pelos meus critérios e ter agora a oportunidade de me dedicar de forma exclusiva a uma das atividades que sempre cumpri, mesmo no meio da correria: escrever. Tenho enorme prazer em escrever. Considero a escrita a maior herança que a humanidade me deixou, me emociono com isso.
Também disse que preciso de silêncio e não interrupções quando escrevo, assim me encontro em uma situação bastante privilegiada, visto que essas condições estão – em boa medida – sob o meu controle (claro que sempre tem um vizinho fazendo uma reforma no apartamento em cima ou ao lado do seu, mas este tipo de coisa não pode lhe paralisar; aporrinha, mas não mata).
Existem alguns temas técnicos que creio que merecem uma maior atenção ou não foram ainda explorados como penso que poderiam e me sinto capaz de enveredar nesta empreitada. Estimo que em breve mergulharei no primeiro projeto, que está relacionado com duas questões interligadas: envelhecimento e aposentadoria. Vejo o envelhecimento como um aplauso à vida, só envelhece quem não morreu; por seu lado, considero a aposentadoria, diferente de muitos autores, um momento de grandes possibilidades para que uma pessoa se torne mais íntima e amiga de si mesma.
Um outro projeto, mais ousado e demorado, será uma tentativa de incursão no mundo literário, acompanhando um personagem de ficção ao longo de sua vida. Gosto de brincar com a ideia e vejo meu protagonista vivendo diferentes fases, felizmente é um sujeito feliz na sua essência. Não suportaria ter que viver acompanhada de alguém que dorme e acorda com a infelicidade crônica. Veremos se darei conta do recado! Tenho certeza de que não foi escrito.
Comprei e ainda não tive tempo para me deleitar com a coleção de todos os livros que ganharam o Nobel em Literatura, desde a primeira vez que foi concedido. Então, se tudo for nesta direção, estarei certamente muito bem acompanhada e nunca me faltará assunto… O resto é a vida que não me pertence.
Gostei muito de fazer parte deste projeto, creio que além de simpático, ele será muito útil. Então, convido aos leitores a darem a si mesmos uma chance de descobrirem seus talentos como escritor ou escritora e divirtam-se com isso. Isto realmente é uma grande viagem! Obrigada.