María Elena Morán é escritora e roteirista, doutoranda em Escrita Criativa na PUCRS.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Gosto de acordar cedo, entre 7h e 8h. Eu não existo como ser pensante antes de ter comido alguma coisa, então minha rotina começa por aí. Gosto de me preparar um bom café, comer sem pressa, assistir as notícias ou conversar com meu marido, nos dias que acordamos juntos. Quando dá, gosto de curtir um solzinho no rosto, nos braços, nos pés; fico na janela deixando o sol me esquentar, enquanto dou uma fuçada nos prédios vizinhos e seus começos de dia. Numa tentativa de disciplinar um pouco meus horários, tento começar a trabalhar às 9h e o primeiro que faço, sempre, é repassar o que preciso fazer durante o dia. É um hábito que tem me ajudado muito na organização do trabalho e das ideias, porque vivo uma briga constante entre minha necessidade de ordem e controle, e minha cabeça caótica, volátil e esquecida.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou uma pessoa totalmente matinal ou, sendo um pouco mais flexível, diurna. Tomar um bom café e aproveitar a manhã foi, durante muito tempo, meu único ritual. Com o tempo, conforme a escrita foi virando ganha-pão, comecei a precisar ajudas para convocar a disposição para escrever todos os dias.
Provei a música clássica e Bach confirmou sua reputação de gatilho criativo eficiente, então agora a primeira coisa que faço é botar para tocar minha playlist “O mundo em pausa”, ou jazz ou silêncio. Deixo a janela aberta e coloco uma garrafinha de água a um lado, embora muitas vezes esqueça dela. Acendo meu abajur de luz amarela, cuja única função na mesa é criar um clima. Em dias mais dramáticos, posso até acender um incenso. Leio os últimos parágrafos que eu tiver escrito ou quanto for preciso para “achar” de novo o ritmo, o fluxo, que é o mais difícil na hora de recomeçar a escrita. Começo a rascunhar. Se não estiver gostando, escrevo mesmo assim, ativo o piloto automático. Sei que, em algum momento, as frases vão começar a melhorar, o entusiasmo irá tomando conta e então estarei pronta para reescrever, num mood mais astuto, as partes que estiverem ruins.
Esse entusiasmo, responsável por esta escolha de me dedicar à escrita, raramente acorda comigo. Ele demora mais um pouco, às vezes demais. Mas ele vem, ele sempre vem.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sempre escrevo por períodos, um pouco pautada pela natureza dos trabalhos de roteiro, mas também porque tenho dificuldades para pular de um projeto para outro. Para mim funciona muito mais trabalhar concentrada, geralmente em períodos de duas semanas em um projeto, e depois passar para outro. Essa alternância é muito mais produtiva e rende melhor escrita do que a alternância diária, porque permite um mergulho real em cada um.
Chamo esses períodos de “maratonas” ou de “imersões”, que parece mais chique e menos cansativo, mas normalmente, em tempos de dissertações, teses e prazos, o sentimento é de estar correndo uma maratona mesmo.
De qualquer forma, tento organizar bem meu tempo para evitar colapsos. Coloco metas diárias de escrita porque sou competitiva e ter um objetivo sempre me dá um gás, mas tento ser muito realista e flexível, pois não faz sentido nenhum gerar cobranças excessivas, para além das que o simples exercício da escrita já gera.
Eu sou uma hedonista e uma otimista convencida. Tento ter consciência de meu corpo e seus limites e procuro respeitar muito meus ciclos. O entendimento do trabalho como sinônimo de autoabuso e a romantização da exaustão não me convencem, não me funcionam e não me seduzem. E, sem sedução, perco a razão de escrever.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Fico muito tempo alimentando a ideia, deixando-a macerar na cabeça. Sinto que quando tenho a energia criativa colocada nesse nascimento, ela funciona como um ímã, que vai atraindo motivos, referências, lampejos. Para mim é imprescindível esse período em que vou pela vida me enchendo de achados, porque uma boa parte do trabalho surge dessas serendipidades. Costumo, inclusive, a fazer muita pesquisa fotográfica, pois sinto a necessidade de encontrar imagens que traduzam as sensações que estou buscando, é como uma cadeia de traduções.
Quando a ideia já está carregada dentro de mim, passo ao planejamento e demoro nele, não consigo escrever sem ter alguma ideia clara sobre o caminho. Antes isso me gerava alguma angústia relacionada com a falta de espontaneidade ou o excesso de controle. Depois de fazer as pazes com meu processo, entendo o planejamento como uma coreografia que, dentro dela, deixa amplos momentos para o improviso, sem perder de vista qual é a música que se está dançando.
Talvez o equilíbrio ideal entre o que se planeja antes da escritura e o que se descobre durante ela — o que se aproveita, de fato de essas “descobertas” — resida em ter, mesmo no planejamento mais aberto e esburacado, uma bússola clara, o que Milan Kundera chama de “palavras-tema” ou o “centro do romance” de que fala Orhan Pamuk, que me permita identificar o que agrega e questionar o que empobrece ou polui o texto.
Uma vez que começo a escrita, ela flui rápido e prazerosa, com seu masoquismo tradicional. Por um lado, tem a dor de que toda essa constelação de ideias começa a ganhar forma uma palavra após a outra, e essa forma é sempre inferior ao desejo abstrato e todo-poderoso que temos quando pensamos e planejamos uma história. Mas essa dor é uma dor ao mesmo tempo gostosa porque, por outro lado, a concreção tem o gosto da realidade, da página legível e corrigível, do trabalho do escritor-artesão feito obra.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O inimigo infalível da procrastinação é o prazo. Esse processo de deixar a ideia crescer e planejar bastante antes de escrever é uma faca de dois gumes, pois se bem é certo que muitas vezes é preciso parar um pouco e voltar atrás, repensar escolhas e replanejar, mais de uma vez me surpreendi usando “meu processo” como desculpa para justificar o que, no fundo, é só vontade de adiar algo que me incomoda por algum motivo.
Medo, auto sabotagem, insegurança, ansiedade: todos esses fantasmas vêm muitas vezes sob a forma da procrastinação. Para mim, a única forma possível de lidar com eles é não fugir, mas tentar entender os motivos deles estarem de visita. Acho que a escrita acontece nesse processo, às vezes consciente, às vezes inadvertido, de lidar com esses fantasmas. Personagens, cenas, descrições cuja escrita ficamos postergando, normalmente mexem com questões que nos resultam dolorosas, sensíveis, atemorizantes.
Coisas que me ajudam a destravar: conversar sobre o que está acontecendo, seja com alguém totalmente externo à literatura ou sobre colegas que entendam as dificuldades próprias da escrita; fazer exercício, quanto mais puxado melhor: qualquer coisa que obrigue o pensamento a focar em outra coisa; ou, se o que está pegando é alguma sensação de falta de ideias ou de inspiração, saio para caminhar, assisto comédias ou faço atividades domésticas. Odeio lavar louça, mas já resolvi mais de um problema de escrita enquanto ensaboava uma panela.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso bastante, leio uma e outra vez, em distintos estados de ânimo, com algum tempo entre uma leitura e outra. Mostro sempre para alguns leitores próximos, muito diferentes entre si: meu marido, minha mãe, minha irmã, dois ou três amigos. Gosto muito de ler em voz alta durante o processo de escrita, mas também quando sinto que estou me aproximando da versão final. Ajuda muito a ter uma percepção do ritmo da narrativa, a testar as vozes das personagens e suas diferencias, a capturar pequenos ruídos como rimas, cacofonias e outros estraga-prazeres.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu confesso que virei totalmente dependente da tecnologia e tenho plena consciência de que ela pauta meu processo de escrita, sua velocidade (ou falta de), seu ritmo, sua multiplicidade. Escrevo a mão nas minhas cadernetas e faço todo tipo de anotações e esquemas nos quadros que tenho no meu escritório, mas quando chega a hora de escrever, vou direto para o computador.
Nos últimos projetos estou trabalhando com um software chamado Scrivener, que é ótimo para projetos de narrativas longas, pois facilita muito o manejo do texto, que vai ficando muito volumoso na medida que a escrita vai avançando. Também permite ter todos os materiais à distância de um click, tudo muito intuitivo e rápido.
Enquanto escrevo, meu navegador está sempre aberto: aba do dicionário, aba dos sinônimos, aba do tradutor para encontrar as palavras que me fujam num e outro idioma, abas das pesquisas aleatórias, abas, abas, abas. Às vezes, claro, esta superlotação me distrai, uma pesquisa chama outra e, quando percebo, estou indo muito fundo em algum assunto que era para ser secundário. Mas nunca sinto que seja perda de tempo. Pode ser, sim, um desvio, mas a maioria das vezes é nessas veredas que a gente encontra as ideias mais interessantes.
Estou sempre tentando achar ferramentas que me permitam acompanhar o fluxo do pensamento e a tecnologia, ao mesmo que o modela, nos ajuda a flagrá-lo com mais velocidade. Tenho também vários grupos de whatsapp comigo mesma em que me compartilho referências, anoto ideias, mando fotos, envio mensagens de áudio no meio da noite; tudo na tentativa de botar um pouquinho de ordem nessa enxurrada de estímulos que recebemos cada dia e que, afinal, são nossa matéria prima.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm de longe, vêm da infância, vêm das minhas cidades, vêm da rua. Acho que quando comecei a escrever literatura tinha muitas ideias porque todas pareciam já estar dentro de mim, esperando vazão. Agora preciso me investigar e investigar os outros com mais paciência, ir mais fundo.
Sobre os hábitos para me manter criativa, claro que ler bastante e assistir cinema e séries fazem parte da lista, mas acho que o principal para mim é observar os outros, tentando enxergar ou fantasiar sobre o que há por trás de suas atitudes, sem maniqueísmos, forçando um olhar empático inclusive com aqueles que parecem muito distantes de mim o que defendem valores e posturas das quais discordo. Acho que esses são os mais interessantes, literária e humanamente falando. Não há truque que funcione melhor para mim que sair pra rua e ficar vendo e escutando as pessoas, seus corpos, suas expressões.
Mas, para que isso tudo possa se transformar em obra, eu preciso me sentir bem, com o corpo e a mente dispostos para a criação, por isso acho imprescindível incluir neste conjunto de hábitos se divertir, fazer algum exercício e descansar o suficiente, que são as três primeiras coisas que a gente abandona quando entra naqueles períodos de maratona. Tudo bem fazer isso de vez em quando, mas quem pretende se dedicar à escrita ou a arte como modo de vida tem que ter cuidado, pois trabalhando com horários próprios e projetos sempre tão pessoais é muito fácil fazer da negligência consigo mesmo uma parte da rotina.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Como todo mundo, meu processo começou sendo bastante mais inocente com relação às escolhas narrativas. Na medida que fui estudando, fazendo oficinas literárias e escrevendo mais, essas escolhas deixaram de ser apenas intuições e passaram a ser opções refletidas, conscientes e não por isso menos intuitivas, apenas menos acidentais. Com o tempo, a escrita também passou de ser um hobbie a ser meu ofício, com tudo o que isso significa em termos de disciplina, tempo, dedicação, alegrias e frustrações.
Outro câmbio importante que notei foi uma tendência a pensar narrativas mais longas e mais pessoais; histórias que desde a primeira vontade, já exigem um maior espaço de desenvolvimento. Sinto que isso tem a ver com ter alimentado uma confiança maior em mim mesma, uma voz que consegue falar mais alto que as vozinhas da desistência e de autocrítica bestial; uma que me diz que sou capaz de encarar projetos mais desafiadores.
Se eu pudesse voltar à escrita dos meus primeiros textos, poderia me dizer que não preciso escrever como ou sobre o que os outros acham que eu preciso escrever, que confie em meus instintos e não insista em levantar bandeiras que não são minhas. Poderia me dizer isso, mas não o faria. Essas descobertas foram um processo tão prazeroso e contundente na minha vida, que não gostaria de impedi-lo com esse conselho.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Volta e meia penso num livro impossível, que é um livro que nunca acaba. Uma história inicialmente simples em que o narrador vai esgotando os elementos que a compõem, mas cada um desses elementos, por vez, gera uma outra história cheia de elementos que rendem novas histórias e assim por diante, como uma árvore genealógica de uma família fecunda em excesso.
Não sei se é um projeto que eu gostaria de ler, até porque em teoria seria impossível (e cansativo demais), mas é um livro que fica aparecendo em sonhos. Talvez não seja um livro, mas uma vida.