Maria Caú é escritora e crítica de cinema em A Lente Escarlate.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Quando eu tenho liberdade, minhas manhãs não existem. Eu sou uma pessoa profundamente noturna, e sempre sofri com esse descompasso com relação ao mundo acordado. Praticamente nada do que escrevi na minha vida (seja poesia, prosa, críticas de cinema ou artigos acadêmicos, ou qualquer outra coisa) foi realizado nessa parte do dia. A forma como começa o meu dia vai variar do projeto no qual estou trabalhando, ou se preciso ir a alguma reunião ou algum compromisso de trabalho. Em geral, eu acordo muito tarde, tomo um café e assisto à Netflix durante um tempo antes de me engajar com o mundo. Depois, saio para um almoço sempre tardio e só depois de retornar, após um novo café, começo a planejar meu dia, que em geral dura pelo menos até as três ou quatro horas da manhã (e às vezes até as seis ou sete). Sempre invejei muito as pessoas diurnas porque elas me passam a sensação de serem mais produtivas, apesar de eu saber que essa correlação é falsa. Tem sido um trabalho de anos entender e aceitar que eu funciono melhor nesses horários pouco convencionais (e acho que eu preciso mesmo aceitar esse fato porque quase tudo que eu fiz que mais me dá orgulho foi criado assim). Dito isso, eu sou uma pessoa muito responsável, e se eu marcar um compromisso de trabalho às sete da manhã, eu irei. Mas não me peça para escrever algo criativo a essa hora.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Em geral eu começo a me concentrar melhor na segunda parte da tarde (depois das quatro ou cinco). Mas a verdade é que a minha zona temporal mais produtiva acontece depois das dez da noite. Eu diria que uns 70% de todo o meu trabalho acadêmico foi composto entre dez da noite e cinco ou seis da manhã. É insalubre, eu sei, mas escrever uma tese é sempre insalubre, eu acho.
Sobre rituais, depende do tipo de escrita de que estamos falando. Eu bebo bastante café – certamente um dia isso me trará problemas maiores do que as crises de labirintite que eu já tenho. Quando estou bastante travada, eu coloco uma dose de amarula no café para relaxar, ou tomo uma cuba libre. Também ando bastante, para lá e para cá: na rua e dentro de casa mesmo. Às vezes vou até a varanda e fico observando a movimentação. Essas andanças às vezes ajudam a esclarecer pontos do texto. Eu não gosto de ouvir música quando escrevo. Sei que muitas pessoas fazem isso, mas é mais um desses hábitos que não consigo adquirir, por mais que eu tente. Quando estou escrevendo algo longo com um prazo determinado, eu sigo muito a orientação do Hemingway, que é nunca parar quando você não sabe para onde ir, mas sim quando você já tem um gancho determinado para retomar, o que torna muito mais fácil recomeçar. Usando essa máxima eu escrevi quase cem páginas da minha tese em menos de seis semanas, sempre nas madrugadas. Funcionou maravilhosamente bem.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias. Meu pai era um grande poeta e ele escrevia quase todos os dias. Eu adoraria ser uma pessoa mais disciplinada, mas como escrever ainda não é minha única atividade, às vezes se torna impossível. E eu também escrevo coisas de naturezas muito diferentes: trabalho como redatora, revisora, crítica de cinema; sou pesquisadora (na área acadêmica e fora dela), escrevo poemas e contos: tudo isso segue um processo diferente. Às vezes, no meu tempo livre, a última coisa que eu quero fazer é ler ou escrever, estou estafada. Eu estabeleço metas apenas quando tenho prazos muito rígidos. Na verdade, eu adoraria ter mais prazos porque me dou bastante bem com eles. Se eu tivesse um prazo para terminar a peça que comecei ou meu livro de poemas, eles estariam finalizados, acredito. Mas com a escrita mais, digamos assim, criativa, eu vou sempre me atrasando porque os prazos não existem. Eu acabo escrevendo apenas por impulso. Recentemente, fui convidada a colaborar com um poema numa coletânea e um dos motivos pelos quais aceitei, além de ser um projeto incrível, era para que eu pudesse passar a encarar a poesia como um trabalho, como um projeto com todo o pragmatismo que esse pensamento implica. Eu passei muito tempo acreditando na inspiração. Hoje estou meio convencida de que esperar pela inspiração é uma prática de autossabotagem.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu tenho um processo diferente para cada gênero de escrita. Nos ensaios acadêmicos, em geral sempre começo um pouco atrasada porque nunca acho que a pesquisa que fiz está suficiente. Tenho sempre a sensação de que poderia ler mais, assistir a mais filmes (eu pesquiso cinema), amadurecer mais a ideia. É um grande problema porque eu reescrevo pouco, então tenho uma exigência muito absurda de que o texto saia já em sua máxima potência. Tem gente que vai escrevendo o que vem na cabeça, como um rascunho, e depois arruma. Eu já escrevo de forma organizada, em ABNT, com notas e referências, tudo. Se eu tenho que colocar uma data, eu paro tudo e procuro a data. É um TOC, mas não consigo evitar, ver um texto acadêmico mal organizado me impede de avançar. E é um problema também quando eu tenho que editar meus textos porque me preocupo muito com a coesão e o encadeamento dos tópicos: para mim é como uma narrativa que vai se desdobrando. Aí fica quase impossível mover as peças de lugar. Eu me preocupo bastante com estrutura em tudo que escrevo: tem sempre uma escaleta montada para os meus textos acadêmicos, eu começo com ela, e vou seguindo ou fazendo pequenas correções. É como uma bússola, sem ela não sei me guiar.
Para poesia, eu começo com um verso, com um jogo de palavras ou sons que me interessa, ou com uma ideia ou sensação, e parto daí. É um processo totalmente diferente. Eu reescrevo muito mais, experimento combinações, desloco estrofes. Em poesia, ler em voz alta me ajuda muito. Preciso sentir o som das palavras no corpo. Quando escrevo diálogos para um roteiro ou uma peça também leio em voz alta: se não parece caber na boca, eu mudo.
Eu tenho o problema sério de realizar muitas tarefas ao mesmo tempo, em vez de finalizar uma de cada vez. Talvez eu deva pensar nisso não como um problema, mas como uma habilidade. Não é incomum que eu esteja escrevendo uma crítica de cinema, abra um arquivo ao lado, comece uma poesia, termine um dos dois, ou nenhum, e volte no outro dia. Minha cabeça às vezes precisa de exercícios verbais diferentes para que eu consiga realizar aquela tarefa. É uma coisa meio maluca e caótica, mas funciona (para mim, não imagino que funcionaria para qualquer outra pessoa).
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu procrastino todos os dias. Adoraria ter uma receita para acabar com isso porque quem mais sofre sou eu mesma, já que sou extremamente responsável com prazos, o que faz com que eu perca noites de sono para terminar trabalhos que procrastinei para começar. Eu me engajo em muitos projetos, então estou sempre concluindo alguma coisa, mas sofrendo de ansiedade por não concluir outra. Com a maturidade, a gente vai aprendendo a lidar melhor com essas coisas. Eu também sou muito perfeccionista, e é só aos poucos que eu consigo internalizar que feito é melhor do que perfeito. E que perfeito não existe. Perdi muito tempo da minha vida dando meu melhor em trabalhos mal pagos nos quais eu não era respeitada. Hoje tento dar 70%, reservo os 100% só para o que mais amo e para aquilo em que me sinto respeitada como escritora, seja que tipo de escrita for. Até porque quando você dá 100%, você espera de todos o mesmo, e isso gera cobranças e ansiedade desmedidas.
Sobre as travas da escrita, eu tenho um amigo roteirista, o Joe Cacaci, que uma vez me disse que o tal do bloqueio de escritor não existe. Eu tento manter isso em mente. Tem dias em que tudo flui muito rapidamente, parece até uma psicografia, e às vezes surge com muita dificuldade, é um sofrimento. Mas, pelo menos para mim, os resultados não são necessariamente melhores quando a escrita é menos sofrida. E eu adoro escrever, então, em termos de sofrimento, é o melhor sofrimento. Foi assim que terminei a minha tese. Eu pensei: você está aqui, apenas escrevendo, trabalhando com a escrita, como você sempre quis (neste ponto, eu já tinha feito todas as matérias e a pesquisa e só me restava escrever). Então abrace a doçura desse sofrimento. Foi um trabalho duro, mas eu não me dei folga nos últimos dois meses, e achava um luxo apenas escrever, sem mais tarefas. Acho que nunca tive um sentimento tão grande de realização.
O medo de não corresponder é outro companheiro, e é uma coisa que as mulheres conhecem melhor que os homens, por conta da sociedade machista, que nos transmite sempre essas inseguranças. Acho que aos poucos aprendi que eu sei escrever, que escrevo bem, que estudei para isso e sou capaz. Claro que você nunca sabe exatamente qual vai ser a reação das outras pessoas, e é preciso conviver com a rejeição, especialmente na área mais dita criativa. Sempre que eu mando uma poesia ou um conto para um concurso ou uma revista, eu tento me lembrar que a rejeição é a maior probabilidade. Mesmo assim, às vezes você toma um não como algo muito pessoal, como se fosse uma prova de que você deve parar de escrever. Mas acho que eu sou incapaz de parar, então é melhor me acostumar. A maioria das pessoas que escreve não consegue parar, é um vício.
Sobre projetos longos, depois de uma tese você perde o medo de qualquer projeto de maior alcance. Eis uma vantagem do doutorado.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu sou (ou fui) revisora e preparadora de textos, então reviso algumas vezes, mas em geral não faço mudanças enormes. Quase sempre mostro meus textos para o meu companheiro, que também é escritor e revisor, e acho que nos tornamos meio dependentes da opinião um do outro. Ele é bastante crítico, e eu sempre reclamo das críticas dele. Às vezes acato algumas sugestões, às vezes nenhuma, mas é um exercício bacana porque eu já começo a defender as minhas escolhas ali mesmo. Acho que só ele lê meus textos acadêmicos e as críticas de cinema antes da publicação (além dos editores, claro). Aos poucos com as críticas estou aprendendo a não encher os editores com pedidos de mudanças de vírgula ou reclamações sobre o que eles resolveram cortar. Estou tentando nem reler os textos que vão ao ar porque sou perfeccionista louca e preciso de reabilitação. Aí está: eu sou tão crítica aos meus textos que as críticas dos outros acabam sendo fichinha.
As poesias eu mostro para alguns amigos. Uma amiga em especial, a Mariana Fonte, que foi quem mais me incentivou a escrever poesia, faz várias críticas e considerações sobre os poemas, e várias vezes eu reescrevo por conta dessas ideias, já que ela é uma ótima leitora. Mas não tenho essa relação com muitas pessoas. Para algumas eu mostro um rascunho ou um poema mais ou menos acabado e elas apenas reagem ou comentam de forma ampla, e aí eu vejo se atingi o que queria.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tudo no computador. Escrevo algumas notas à mão para me guiar, em cabines de crítica ou quando estou assistindo a um filme ou tendo ideias num café, mas não começo seriamente nada à mão, à exceção de poesia, que às vezes flui melhor em papel, nessa relação mais tátil.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu não tenho a menor ideia. Se eu soubesse o ritual de invocação de ideias, eu o realizaria uma vez por semana. Eu leio muito, não apenas livros, mas artigos estranhos na internet, vejo documentários obscuros e gosto de assistir a aulas e palestras. Eu sou o tipo de pessoa que se enfia em cursos sem parar. Sou naturalmente muito curiosa, e acho de verdade que essa é a única característica que qualquer pessoa que trabalha com escrita tem que ter. Eu tenho tantas ideias para artigos acadêmicos que eu poderia vendê-las. Nunca tive problemas com ter ideias, é a realização que é a parte difícil. Ter ideias é fácil. Poderia colocar uma banquinha na praça dizendo “Vendo ideias para romances”.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Eu diria: não faça um doutorado agora, é muito sofrimento e muita reclusão. Pense duas vezes, vá tentar escrever outras coisas por um tempo.
O que mudou? Eu escrevo mais, tenho mais disciplina e meu estilo está muito mais construído. Eu costumava escrever coisas barrocas ou ultrarromânticas com dezesseis anos que eu preciso queimar para ninguém nunca achar porque era terrível. Minhas redações de colégio eram cheias das palavras mais obscuras para demonstrar erudição. Graças aos deuses essa fase passou. Também passei a ver a escrita mais como um trabalho (duro). Passei muito tempo esperando me sentir preparada para escrever alguma coisa, e agora eu tento (e nem sempre consigo) escrever mesmo desse lugar de insegurança. A insegurança pode ser um propulsor, ou pelo menos é essa mentira que eu conto para mim mesma. E também tento me lembrar que sobrevivi a escrever mais de duzentas e tantas páginas de uma tese. Depois disso, tudo parece possível.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Para falar a verdade, eu gostaria de terminar meus projetos antigos, especialmente uma peça e um piloto de série de tevê, ambos parados há anos. Isso é o que me causa mais ansiedade e culpa. Mas também estou tentando aprender que essa obsessão por terminar tudo é por conta do produtivismo da sociedade capitalista e tem coisa que é para ser só um rascunho, um exercício, e não acabar. Quando um projeto não pago não traz mais felicidade, por que acabar? É uma questão difícil porque às vezes a gente não acaba também por medo ou por autossabotagem. A grande sabedoria é perceber a diferença.
Também adoraria, é claro, escrever um romance. Acho que o romance ainda é o grande projeto de quase todo escritor, por mais estranho e antiquado que pareça. Esse é o livro que gostaria de ler e que ainda não existe, porque eu gosto muito de reler o que escrevo quando já tenho algum distanciamento e aquilo parece ter sido escrito por outra pessoa. Também gostaria muito de ler os romances que os amigos escritores estão escrevendo, especialmente o do meu companheiro, que está ficando muito muito bom. Fora isso, há muitos e muitos livros que já existem e que eu gostaria de ler. Pensar nos que ainda não existem me traz muita ansiedade, prefiro não fazer isso.