Maria Amália é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa preguiçoso e cheio de afazeres domésticos. Os gatos, os cachorros e a casa são mais urgentes do que a pressa em colocar as ideias no papel. Não consigo escrever sabendo que tem uma pilha de louça na pia ou um cesto cheio de roupas para lavar. Quando tudo está aparentemente tranquilo e em ordem é que consigo parar para trabalhar. Às vezes, enquanto faço a lista de compras do mercado, escorrego para o rodapé da folha onde esboço a continuação de um texto. E, assim, rotina e trabalho se (con)fundem e vou espalhando partes das minhas histórias pela casa: no bloquinho ao lado do telefone fica um pedaço, no verso do comprovante do banco, outro… E quando, sem querer, limpo a bolsa e jogo fora a lista de compras com aquela frase que seria perfeita para aquele capítulo?
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Há alguns anos trabalhava melhor à noite; escrevia ou desenhava até de madrugada. O problema é que acordar tarde passou a me incomodar, o dia parecia render menos. Então comecei a me forçar a dormir mais cedo e a adequar meus horários à rotina da casa. Hoje, escrevo melhor à tarde, depois do almoço.
Não tenho nenhum ritual específico, mas só consigo escrever sem bagunça ou sem a preocupação de saber se paguei aquela conta, ou se precisarei sair mais tarde para fazer qualquer coisa fora de casa. Acho que meu ritual é buscar um ambiente tranqüilo para trabalhar e tentar não me abalar com as eventuais interrupções. Trabalhar em casa é muito bom para algumas coisas, mas tem uma desvantagem enorme: todo mundo acha que você está sempre disponível.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
O ideal seria escrever, no mínimo, um parágrafo todos os dias. Mas existem momentos em que é impossível escrever. Então roteirizo mentalmente o texto e fico ansiosa para anotar em qualquer lugar, sem correr o risco de perder a ideia.
Não tenho meta. Minha meta, quando estou empolgada, é escrever até as letras começarem a embaralhar. Quando bate o cansaço e sinto que não estou rendendo, paro. Vou fazer palavras-cruzadas ou assistir um filme.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Se tenho notas suficientes não é difícil começar. Meu sistema é igual ao de um quebra-cabeças: junto peça por peça e só começo a uni-las quando vejo o todo. O começo, o meio e o fim. Claro que ao longo da escrita muita coisa é alterada. Até porque, em determinados textos, os personagens passam a comandar a história. Quando isso acontece, deixo-me levar pelas minhas criaturas. Muitas nascem despretensiosas e, com o passar dos acontecimentos, ganham asinhas e se impõem.
Durante o processo de escrita, leio e releio mil vezes o começo do texto. E escrevo e reescrevo outras mil vezes. Mas tem uma hora em que deixo a revisão para depois, para não interromper a fluidez das ideias.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quem tem a escrita como ofício está acostumado a esperar pela inspiração. Aquela velha amiga que sempre avisa “estou chegando”, mas que ainda está sentada no sofá, olhando para o teto, com preguiça de tomar banho. A inspiração demora, demora… e muitas vezes desiste no meio do caminho e se esquece de avisar “não conseguirei chegar a tempo”. Às vezes me forço a escrever pelo menos uma linha. Às vezes sai mais do que uma linha. Às vezes não sai nem uma vírgula. Aí, quando isso acontece, sempre bate aquela sensação de “que dia inútil”.
Medo de não corresponder às expectativas…? Ah, isso todo mundo tem. Raro é não sentir isso.
Projetos longos têm seu lado bom, uma vez que você está focado num tema e não precisa sair em busca de novas ideias por um algum tempo. E têm seu lado ruim também. Que é o da solidão e o do cansaço. Escrever e ilustrar são atividades extremamente solitárias. Então a gente se pega com a sensação de viver num mundo a parte. O que salva, por incrível que pareça, são as redes sociais. Quem trabalha em escritório faz a pausa para o cafezinho. Meu cafezinho acontece pela internet mesmo, nas prosas virtuais com os amigos distantes.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes, mas nunca acho que estão prontos. Tem uma hora em que eu penso “vai ficar assim mesmo”. Depois disso, o texto descansa por um tempo e só então quando consigo esquecê-lo é que voltamos a nos falar. Faço uma revisão final, deixo a autocrítica de lado e dou por encerrada a primeira etapa. Ficar inseguro quanto ao conteúdo é natural. Querer revisar infinitas vezes, também. Mas a gente aprende que é preciso desapegar e passar para frente.
Não costumava mostrar aos meus amigos, mas agora gosto de apresentar o texto a eles para saber se está compreensível, se está palatável. Gosto de ouvir críticas. Positivas e negativas. E fico satisfeita quando eles também me pedem para opinar sobre o que escrevem.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Meus rascunhos são sempre escritos à mão. Tenho uma coleção de caderninhos cheios de anotações que só eu entendo. Minhas frases rodam a página e muitas vezes ganham movimento circular. Preciso escrever simultaneamente ao que acontece na minha cabeça, então os garranchos e rabiscos não seguem nenhuma ordem. Admiro quem consegue escrever sem rasurar e de forma linear. Tem horas em que nem eu agüento. Por isso o quanto antes passo a limpo para o computador.
Costumo sempre contar para as crianças que meu lado escritor nasceu na máquina de escrever da minha bisavó. Quando tinha oito anos, minha família se mudou para o apartamento da bisavó Rosalina em São Paulo. Aquele sim era “um museu de grandes novidades” para uma menina. Entre os objetos de museu havia uma máquina de escrever (que não era novidade porque minha mãe, jornalista, redigia na sua Olivetti de estimação). Mas aquela máquina pesadona, antiga, e um aparelho de telefone tão antigo quanto, foram mais do que suficientes para eu e meu irmão montarmos uma agência de detetives, onde eu era a responsável pelos relatórios das investigações cujo personagem era sempre o mesmo bandido atrapalhado chamado João Banana.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Nas minhas oficinas de criação literária para o público infantil explico que as ideias estão em todos os lugares: elas tanto me acordam no meio da noite quanto aparecem disfarçadas nos sonhos. As ideias também estão em uma conversa dentro do ônibus, daquelas que a gente escuta de enxerido. Estão em uma matéria de jornal, em uma história inusitada contada por alguém. Em uma música, em um filme ou nas entrelinhas de outro livro. Também estão no silêncio ou na impaciência de uma sala de espera. O Simsalabim (livro que brinca de ser revista para o público dos contos-de-fadas) surgiu enquanto esperava para ser atendida no dentista. Fiquei imaginando que tipo de revista a fada do dente disponibilizaria no seu consultório.
Manter-se criativa está na sintonia entre nossas antenas e as ondas que pairam no ar. É preciso prestar atenção aos acontecimentos no entorno, não desprezar nenhuma ideia, por mais ridícula que possa parecer. Afinal, tudo pode virar história. A graça está na forma como será contada.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Quando comecei a estudar roteiro áudio-visual fiquei um bom tempo travada: eu só conseguia pensar por meio de imagens. Na paleta de cores, nos planos-sequência, no cenário… Com o tempo, a confusão se desfez e me deu outra noção de pensar na produção de um livro. Agora já não via mais apenas o texto, mas o conjunto. Atualmente não consigo mais dissociar o texto da imagem. O que acaba dificultando o trabalho dos ilustradores, porque eles perdem a liberdade para criar, uma vez que a tendência do autor é roteirizar toda a cena.
O que eu diria a mim mesma? “Busque a simplicidade!”
Mas é tão difícil ser simples…
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho uma lista de projetos na fila de espera. Outro dia encontrei essa lista sem querer. Pulou de um dos lindos caderninhos que ganhei da amiga escritora Silvana Tavano. Não o encontrava em lado nenhum, então fui achá-lo no fundo da gaveta da minha escrivaninha.
Daí lembrei-me do livro que nunca saiu do título e da sinopse: Cartas a um jovem príncipe – correspondências entre uma escritora e um sapo. Uma brincadeira com o título do livro Cartas a um jovem poeta, do Rainer Maria Hilke, que ganhei da minha mãe (ela dizia “depois desse livro você nunca mais será a mesma”). Ou então o projeto de um livro com uma compilação de informações inúteis: Pequeno manual das conversas de elevador. Começaria com “você sabia que o elevador é o meio de transporte mais seguro que existe?”
Difícil essa última pergunta… O livro da minha vida, talvez? Uma biografia muito da sem graça. Na verdade seria um livro de bolso com uma breve reunião de mini-micro-crônicas.