Maria A. A. Abreu é Professora Adjunta do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordar, pra mim, nem sempre é algo automático. Tendo a ficar acordada até altas horas, se a minha rotina não exigir que acorde cedo todos os dias. Basta um fim-de-semana indisciplinado e lá vem a insônia, que se transforma em um sono vampiresco assim que o sol começa a aparecer. Se estiver trabalhando em algo em que eu veja muito sentido – aqui entendido como coerência interna e com alguma aderência à realidade – tendo a trabalhar por horas seguidas, esquecendo da vida. Então, como a vida é o mais importante, meu dia começa com cinco passos, que tento seguir:
Primeiro, higiene pessoal necessária para começar o dia, que pode variar de simplesmente escovar os dentes, limpar a pele do rosto e passar protetor solar, até a tomar banho e me vestir de modo adequado para sair de casa, logo após os passos a seguir.
Segundo, tomar minha dose diária de levotiroxina sódica, pois não tenho tireoide.
Terceiro, comer alguma coisa que seja nutritiva e saudável. Gosto de coisas leves: frutas, leite fermentado, pão ou torrada integral com requeijão. Em dias frescos (não há inverno no Rio de Janeiro), tomo uma bebida leve e quente; em dias de calor, bebida fria.
Quarto, arrumar a cama. Para mim, tem um efeito mental impressionante: é sinal de que começou o dia. Se tenho de sair logo, saio com a sensação boa de que vou chegar em casa e encontrar a cama arrumada. Se tenho de ficar em casa, também é um passo inicial de organização mental. O modo como arrumo minha cama já me dá sinais de como está meu humor e minha disposição a ser zelosa com meu trabalho.
Quinto, fazer alguma atividade física, que costuma ser uma caminhada pela Praça Paris ou pelo Aterro do Flamengo.
Esta última geralmente é atropelada pelas atividades do dia. Nas férias letivas sou mais disciplinada, por incrível que pareça. As demandas alheias é que me desorganizam. Estes cinco passos estão em minha geladeira, para que eu não esqueça. Sempre tento agregar um sexto, que dependerá das minhas atividades previstas para a semana. Esses passos foram uma conquista, que só veio depois do reconhecimento – que poderia ser óbvio, mas para mim não foi – de que o dia fica pior, ou mais arriscado, se os passos acima não forem seguidos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo de acordo com a necessidade, portanto, posso escrever a qualquer hora do dia. O fato de não ter filhos, nem alguém que dependa exclusivamente dos meus cuidados me permite isso. Normalmente, escrevo mais à noite. Mas, tudo depende de como está minha rotina de atividades. Terminei minha tese de doutorado quando tinha acabado de me mudar para Brasília. Escrever à noite não dava certo, porque chegava muito cansada do trabalho que me sustentava economicamente, na época. O apartamento em que morava tinha janelas muito amplas, de parede a parede, praticamente do chão ao teto. Era um pouco ofuscante. Aproveitei a demora na instalação de cortinas para acordar com a luz do sol e escrever diariamente. Não foi algo prazeroso, nem acredito que tenha produzido um resultado desejável, mas foi o possível e o mais eficiente naquele momento.
Não tenho qualquer ritual. Se tiver a necessidade de escrever, tenho capacidade de concentração mesmo em lugares barulhentos e não muito confortáveis. A qualidade do trabalho é que vai variar, de acordo com a qualidade da concentração envolvida. E esta depende de vários fatores: entusiasmo; os custos de não atender um prazo; a importância que dou para o tema que estou abordando na escrita; a relevância que eu própria atribuo a uma intervenção minha naquele tema, e também meu estado de saúde.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho metas diárias de escrita. Mas como utilizo a escrita também para registro de alguns diálogos internos, é difícil me lembrar de um dia, no passado recente, em que eu não tenha escrito. Esta rotina só é possível quando não estou ocupando algum cargo administrativo. Se estiver exercendo alguma função administrativa que importe em demandas diárias, vou passar vários dias sem escrever, o que prejudica muito meu humor.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Qualquer escrita minha é movida pela necessidade de atender uma demanda profissional, intervir em algum debate que considere relevante, expressando algum argumento ou posição que possa ser útil, ou de expressar alguma subjetividade.
Nos escritos que são resultados de atividades de pesquisa acadêmica, a passagem da pesquisa para a escrita tanto pode ser mais automática – o caso de um relatório, por exemplo -, como pode ser algo que exige um esforço mental e prévio à escrita de maior intensidade. Os textos meus de que mais gosto foram resultado de muito trabalho prévio: notas, reflexões registradas com esquemas que muitas vezes são compreensíveis só para mim e, sobretudo, autoconvencimento de que aquele é um modo bom de acrescentar algo ao debate em que estou entrando. Mesmo com esse trabalho prévio, a checagem das informações e o envolvimento com o fluxo do texto consomem bastante energia. Mas há textos de intervenção – que também me agradam – que foram escritos em uma sentada, após algum estímulo externo e o uso de algum repertório já acumulado.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Desde que eu sinta a necessidade de que falei acima, não existe trava na minha escrita. Mas a necessidade nem sempre se impõe. O maior obstáculo são as atividades alheias à escrita. Em geral, sou uma pessoa responsável com os outros, o que faz a minha atenção com demandas do cotidiano absorverem mais energia do que eu desejaria dedicar a elas. Sou muito suscetível ao clima político, e posso ficar dias paralisada, sem escrever, somente me informando acerca de algum fato que julgue relevante. Gasto muito tempo me informando, porque me interesso por vários assuntos. Pouca coisa vira escrita, mas antes de escrever eu preciso estar no mundo, porque é ele que vai demandar o momento da publicação. A principal expectativa que eu preciso atender é a minha. E meu julgamento a respeito dos meus textos não coincide com os dos meus pares, nem com os dos meus leitores. Ajustar essas avaliações – a minha e as externas – é um desafio. Esse ajuste é o que deveria definir o momento de terminar um texto. Mas como ele é muito difícil, quase sempre o que acaba definindo o empenho rumo ao término de um texto é o prazo, ou a necessidade de deixar aquele projeto para iniciar outro mais estimulante.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Se os textos são pequenos, reviso uma vez. Sou uma revisora pouco profissional. Como penso muito antes de escrever, os textos costumam resultar em algo minimamente compreensível. Se o trabalho é mais longo, e tenho prazo, passo alguns dias revisando, mas procuro fazer isso só uma vez. Se pudesse, mostraria e debateria todos os meus trabalhos antes de publicar. Na verdade, tenho mais prazer com o debate do que com o produto final do texto escrito. Os textos de que mais gosto foram os que, de alguma forma, tiveram seus argumentos debatidos em conversas informais, em aulas, em outros textos menos ambiciosos, ou em debates entre pares, seja por meio de pareceres, seja por meio de intervenções em apresentações em orais.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia variou bastante desde que comecei a escrever profissionalmente. Quando fiz o mestrado, iniciado em 2000 e terminado em 2003, eu e vários colegas não tínhamos computador ou boa internet em casa, então muito tinha de ser feito na universidade, em condições quase nunca boas. Hoje, a estrutura nas universidades está melhor, os computadores mais acessíveis e a internet mais barata. Quando a nossa rotina ainda não estava tão impregnada pelo acesso à tecnologia, escrevia muito à mão. Atualmente, apenas tomo notas e faço esquemas assim. Em geral, redijo direto no computador. Gosto de computadores de mesa, com teclado que me permita digitar com os dez dedos. Meus primeiros trabalhos na graduação foram feitos ainda na máquina de escrever. Procurava datilografar com alguma rapidez. Essa rapidez se tornou maior com o teclado do computador. Não consigo escrever textos com qualidade razoável no celular. Estou começando a usar uma ferramenta de aproveitamento de arquivos em PDF e suas respectivas referências. Meu modo de escrita, embora todo no computador, ainda é bastante artesanal.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm de observações do mundo e de reflexão. Procuro variar meus estímulos, mas a vida profissional especializada está comprometendo essa diversidade. Hoje, como estou empregando minha energia em temas mais interdisciplinares, as próprias fontes profissionais são muito diversas. Me considero uma pessoa criativa. Meu maior problema é falta de método e de disciplina. Ideias para projetos de pesquisa não faltam. O que falta é tempo e capacidade de organização para realizar esses projetos. Já fui muito ciosa de minhas ideias. Atualmente, fico feliz quando descubro que alguém, seja por coincidência, seja por ter dialogado comigo, está desenvolvendo alguma pesquisa na mesma direção que eu iria. Menos um tema para me preocupar, ou uma oportunidade para dar o passo seguinte. Não gosto muito de ser pioneira em temas. Prefiro entrar em debates razoavelmente estabelecidos. Talvez meu maior receio seja representar o papel de “alguém que sabe javanês”, tal como o personagem do conto de Lima Barreto.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Hoje sou menos preocupada com o texto do que já fui. Já tive uma obsessão quase estética com meus textos. Tenho 42 anos, e acho que passei por uma transição nos modos de produção e divulgação da escrita. Quando comecei meu mestrado, tinha uma ilusão pueril de fazer um trabalho que considerasse definitivo sobre algo. Era quase como se eu quisesse sintetizar o recado que queria dar a respeito de uma questão, e então, mudar de objeto de reflexão. Essa ilusão logo foi perdida, mas os caminhos mentais que levavam a ela permaneceram por um tempo. Os golpes mais fortes nessa ilusão vieram a partir do meu trânsito em áreas que eu não tinha quase conhecimento, quando eu já era doutora em outra área. Tive de ter outras ambições em minha escrita. A principal ambição adquirida foi a de ser clara e reduzir ambiguidades no texto.
Meu recado pra mim mesma, que é válido para qualquer trabalho – e é sempre necessário reiterar, pois ainda não foi internalizado de tal modo a se tornar um pressuposto anímico automático -, é: por mais que uma tese seja algo relevante – e é importante que assim seja considerada, até para que haja empenho em direção à sua boa qualidade -, ela é um trabalho que pode se encerrar ali, ou abrir várias frentes que serão ou não incrementadas por trabalhos futuros, próprios, ou de seus pares. O importante é encontrar um tema e uma pergunta que faça você querer acordar todo dia para investigá-la. Isso fará despertar o prazer pela pesquisa, e também pelo processo, ainda que trabalhoso e às vezes angustiante, de escrita. Depois de descoberto esse prazer, aí a própria vida e a experiência vão dizer se você gosta mais de pedalinhos, de carrinhos de trombada, ou de montanhas russas. É possível encontrar diversão em todos eles. Mas, para cada objeto de pesquisa um deles fará mais sentido. Acho que a maturidade está em identificar isso e saber se você está disposta a encarar o desafio naquele momento.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho vários projetos começados, a maioria deles sem perspectiva de ir adiante. Sonho com estudantes e pesquisadores que queiram desenvolver cada um deles. Nem quero pensar em algum que eu ainda não comecei. (risos)
Se eu conseguisse responder, ainda que por meio de indicações, qual livro eu gostaria de ler que ainda não existe, começaria a escrevê-lo agora. Em tudo o que pesquiso, tenho uma desconfiança permanente de que alguém já escreveu mais ou menos aquilo. A ambição de ser original foi também perdida. Às vezes retorna, mas não demora muito tempo para eu rir dela.
Os livros que até hoje admiro me surpreenderam e estavam além da minha imaginação, no momento em que os li. Acho mais fácil vir outros que já existem e que me surpreendam do que algo que eu possa imaginar, assim, de antemão.