Mari Messias é poeta.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Idealmente acordo cedo e, antes de qualquer outra coisa, pratico atividades físicas. Acho que me deixam com humor melhor e o pensamento mais claro. Como tenho um emprego fixo raramente consigo escrever fora de finais de semana, mas nos finais de semana minha rotina é basicamente a mesma. Normalmente acordo cedo, ando de bicicleta e então me dedico às atividades mais intelectuais. Normalmente, também, eu já tenho algum trecho, texto ou poema em andamento e uso os finais de semana pra trabalhar mais a fundo neles.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu sou uma pessoa essencialmente diurna, mas tenho fases noturnas. E por trabalhar durante o dia muitas das minhas leituras e ideias vem de noite. Porém a realização, o trabalho mais ‘braçal’ é normalmente durante o dia.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tenho períodos mais e menos prósperos de ideias, mas ainda assim raramente consigo escrever todos os dias, especialmente poesia . Quando escrevi diariamente foram textos pra blogs e sites que tem inspiração mais cotidiana, mesmo.
De toda forma a poesia, que é o formato no qual mais me vejo (também como leitora) é um pouco mais irregular pra mim que outros tipos de texto. Quero dizer, às vezes escrevo muito mas às vezes passo semanas sem ideias. Fora que na loucura de revisar e reescrever nem sempre consigo finalizar um poema rapidamente ou saber diariamente o que eu quero tirar colocar fazer com ele. Então acho que impor escrever x horas por dia pra mim provavelmente seria infrutífero, mas sem dúvida ter mais tempo livre me ajudaria a escrever mais.
O Cummings escreveu uma introdução pro seu livro 5 onde fala do Processo:
If a poet is anybody, he is somebody to whom things made matter very little-somebody who is obsessed by Making. Like all obsessions, the Making obsession has disadvantages; for instance, my only interest in making money would be to make it. Fortunately, however, I should prefer to make almost anything else, including locomotives and roses. It is with roses and locomotives (not to mention acrobats Spring electricity Coney Island the 4th of July the eyes of mice and Niagara Falls) that my ‘poems’ are competing.
They are also competing with each other, with elephants, and with El Greco.
Isso define bem o que eu sinto sobre escrever poesia, sou apaixonada pelo Processo. O fim é menos importante e muitas vezes, pra mim, mais atrapalhou que qualquer coisa. Então o que me faz continuar querendo escrever é sempre isso, os detalhes, a sensação de estar em busca e criando alguma coisa que finalmente vai ajudar a me aproximar de quem sabe algum dia dizer o que eu gostaria como eu gostaria.
Além disso como escrever, pra mim, sempre foi mais uma busca pessoal que qualquer coisa costumo ter projetos que além de impulsionar a criação também viabilizam que ela “chegue em algum lugar”, ou pelo menos tente. Ou seja, normalmente minha “meta” está atrelada mais a um projeto que qualquer coisa. De certa forma, pensando agora, criar projetos não deixa de ser um jeito de concretizar esse amor pelo Processo, né?
Entre meus projetos já tive livretos, sites, fanzines e agora estou trabalhando em 3: um fanzine temático só meu, um fanzine coletivo e uma newsletter que lanço a cada dois meses. A newsletter, por exemplo, traz um texto, uma citação, músicas e uma poesia sempre em torno do mesmo tema.
Gostar mais de viver o caminho que chegar no final é meio aquilo que dizem, né, um poeta é alguém que está escrevendo uma poesia, porque assim que essa poesia acabar de ser escrita talvez essa pessoa nunca mais escreva algo. E além de tudo esse trajeto também é muito bom.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Depende. No meu processo com a poesia acredito que essa divisão entre estar em pesquisa e escrita muitas vezes se confunde. E minha meta, mesmo, é buscar saídas menos pragmáticas e literais, que é onde eu penso com mais facilidade mas não necessariamente onde mais me encontro como escritora e leitora de poesia. Acho que também suavizar essas barreiras ajuda um pouco a diminuir a dificuldade de começar o processo de escrita em si. Além disso posso demorar entre horas, dias ou meses pra acreditar que terminei de escrever algo, então, a coisa realmente é mais fluida.
Junto disso como meu tempo costuma ser escasso eu aproveito as folgas como se encaixam melhor pro que estou tentando fazer. E por ser filha de artistas acredito, sinceramente, que sempre estamos no processo criativo. Então se eu estou no ônibus ouvindo Don L ou se estou em casa tentando organizar um projeto ou lendo tudo é parte do Processo criativo e tudo dá corpo ao fim que estou tentando alcançar.
Claro que tem coisas mais claramente funcionais. Por exemplo, um dos meus projetos atuais é baseado em um livro clássico e tento seguir a estrutura e o universo dele, mas normalmente indo e voltando entre compilar informações e escrever.
De toda forma acho que isso também funciona porque sempre leio um tanto, mesmo sem necessariamente atrelar finalidade ao que eu tou lendo. Às vezes eu leio porque tou em busca de ideias, porque quero encontrar o formato perfeito para alguma ideia que já tive mas normalmente leio porque, como diria o Henry Miller, “Estou sempre procurando o autor que me faça sair de mim.” E o autor que consegue fazer isso comigo é sempre uma inspiração, direta ou indiretamente no que eu tou produzindo ou gostaria de estar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não sou muito de procrastinar mas, sinceramente, com o resto sou péssima. Adoro escrever, o Processo me faz feliz, mas sou muito insegura, me exijo demais e também me pergunto com muita frequência qual a finalidade de tentar criar poesia, “justo eu”. E foi exatamente por isso que parei de escrever todas as vezes que parei, a mais longa sendo a última que durou alguns anos. Quando voltei foi porque entendi, graças a um problema de saúde, que meu trabalho como alguém que escreve não é tão diferente de quem eu sou como alguém que sempre leu poesia. Como disse a Audre Lorde, “Para as mulheres poesia não é um luxo. É uma necessidade vital de nossa existência”. E eu voltei pra poesia também pelo que ela disse, pela necessidade de “criar horizontes mais longínquos” “esculpidos na aventura pedregosa” da minha vida diária.
Ou seja, eu voltei a escrever porque gosto de ler e estou sempre em busca de tentar criar algo que sinto falta de ter lido.
Nessa volta decidi que preciso encarar e lidar com minha autocrítica infernal e minha crise recorrente de finalidade. Foi e está sendo difícil demais. Mas no começo desse trajeto, pra ajudar, decidi fazer uma oficina da Angélica, uma amiga que amo e que admiro como poeta, como intelectual mas especialmente como um ser humano que sintetiza o que eu vejo como poesia, que é a formalidade rígida misturada com a delicadeza e fragilidade humana. Enfim, uma pessoa que ama e vive o Processo lá do Cummings. E, pra mim, foi realmente essencial. Encontrei meus pares, pessoas que gosto e admiro, e readquiri a potência da laboração, e voltei a ver que pra mim escrever é como ler poesia, uma parte de quem eu sou.
No final, talvez, o grande aprendizado que eu tirei deste monte de idas e vindas que tive até agora é que eu gosto de escrever, o Processo é um prazer fenomenal. Meu problema é mais externo, tem relação com as coisas que envolvem expor o que escrevemos. E por isso, também, decidi fazer esta newsletter que estou fazendo, pra lidar com pudores porque não tem nada de tão terrível (nem de tão glorioso) em trocar o que se produz. Tirar a criação desse pedestal doido no qual colocamos as coisas relacionadas com arte (e que, no final, é o que nos faz achar que algumas formas de arte são melhores que outras).
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso sem parar e às vezes reviso tantas vezes que nem lembro qual a última versão. Hahaha. Também sempre tenho amigos próximos nos quais confio e pros quais mostro o que escrevo.
Pelo meu temperamento muito crítico escolho sempre os meus amigos que são mais críticos, que não tem problemas em dar opiniões mais duras, debater e que são leitores compulsivos, porque isso ajuda a criar um filtro bom. Às vezes um bom amigo-leitor é a diferença entre uma coisa horrorosa e uma coisa ok, eu acho.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu gosto muito da tecnologia, tanto pra escrever quanto pra ler.
Acho que desde sempre uso caderno e computador para escrever e agora muitas vezes coloco rascunhos ou trechos de ideias no celular, também, pra finalizar em outro lugar. Isso depende muito de onde eu estou, quanto tempo tenho e ao que eu tenho acesso, mas essencialmente prefiro o computador pra finalizar porque tenho a impressão que consigo organizar melhor a maior parte das ideias e dos projetos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acho que foi o Leminski que falou que pra fazer poesia é preciso ser muito mais que um poeta porque do contrário acabamos fazendo apenas poesia sobre poesia. Da minha parte eu acho que o ideal é uma mistura entre viver fora da cabeça e ler bastante.
Ler bastante porque às vezes a faísca que precisamos vem do trajeto de outra pessoa e viver fora da cabeça porque andar de bicicleta pelo centro de São Paulo, viajar, ver o mar, viver as coisas e as pessoas além do burocrático da vida é o que vai me possibilita encontrar ideias para além da poesia sobre amor (ou na poesia sobre amor de um jeito mais próximo com a vida que os poemas de amor). Quero dizer, pra mim ter um respiro mental, ou seja, não só ler nem trabalhar ajuda muito. Viver, mesmo.
Ultimamente, por exemplo, estou tentando escrever um poema sobre as galinhas de um amigo e outro sobre a coxia do teatro. Primeiro vivi algo, então rascunhei as ideias, em seguida busquei referencial básico (teoria e literatura) e agora estou tentando polir e achar mais referências para que essas ideias virem algo que quem sabe algum dia se aproxime do que eu gostaria de conseguir dizer como eu gostaria de conseguir dizer.
De toda forma, estou sempre procurando jeitos e trajetos novos pra mim, testando formas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Às vezes eu acho que fui me domesticando através de subterfúgios mentais, ou seja, peguei caminhos mais lógicos que me eram mais fáceis e tolhi muito do meu processo. Se leio as coisas que escrevia mais jovem, aos 20 anos, por exemplo, acho que antes eu escrevia de um jeito mais “selvagem” e ao longo do tempo fui me tornando mais rígida e contida, mais focada em formato. Agora quando voltei a escrever, nos últimos anos, foi porque sentia saudades disso, da alegria desse processo e acreditei que seria capaz de resgatar um pouco dele escrevendo de um jeito menos protocolar. Claro que o apuro formal é importante mas minha busca atual é resgatar um pouco da paixão pela vidência do Rimbaud.
Acho que eu me diria existem várias teorias e várias formas de colocar em prática a escrita e o pensamento mas que eu não preciso necessariamente me encaixar nelas, posso seguir o meu próprio caminho porque não tem nada de errado com ele. E meu caminho pode, inclusive, ser eternamente de busca. O resto importa menos que isso.
Ou não diria nada porque foram momentos importantes que tiveram sua beleza e eu gostei de ter vivido.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Meu atual desejo é criar projetos que resgatem a não finalidade da arte, resgatar a fruição da inutilidade. Ao mesmo tempo gosto de participar de projetos que sejam um momento de imersão porque acho que a gente vive em dispersão frenética. Por exemplo, quero criar um zine em xerox, misturando poesia e ilustração, com amigas e amigos.
Não sei que livro quero ler e ainda não existe, acho que alguma fábula fantástica no novo mundo ou um épico com uma mulher bem megera como protagonista.