Marcus Cardoso é poeta, músico e arte-educador.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Moro numa cidade chamada Ribeirão Pires, no final do Grande ABC paulista, e trabalho na capital paulista. Então, quase todos os dias, acordo 2h30 min antes de entrar no trabalho para fazer essa viagem. Por isso, costumo acordar cedo por obrigação, comer alguma coisa com pressa, caminhar até a estação de trem e começar a peregrinação até o lugar em que vendo minha força de trabalho. Todos os dias essa mesma repetição faz com que eu faça muitas coisas automaticamente, o que me libera para pensar em outras coisas enquanto as faço.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho ritual antes de começar a escrever. O que acontece é que, antes de registrar um poema no papel ou no bloco de notas, fico ruminando uma palavra, frase ou mesmo uma imagem dele. Geralmente isso me acompanha por um tempo e, como uma feridinha aberta, fica me incomodando o resto do dia até que escreva. Acho que o ritual me tem mais do que eu tenho algum ritual.
Como meu trabalho é distante, muitas vezes produzo melhor durante a hora e meia de viagem no transporte público. Nesse vácuo de espera que é o caminho até o trabalho no transporte, consigo pensar e, como a cabeça está descansada, conseguir soluções melhores para os poemas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta de escrita em si, mas todo santo dia penso em palavra, em frase, em texto. Minha cabeça pensa nesse formato. Então mesmo que não digite, desenvolvo enquanto penso, lapido palavra com o pensamento. Quando escrevo por encomenda (um poema ou qualquer outro tipo de texto) geralmente peço o máximo de prazo, pq não controlo quando a ideia vem: gosto de pensar como o Gullar que diz que a poesia é um espanto (e não nos espantamos toda hora) e anexar isso com aquilo do Horácio Costa de que não dá pra encoleirar o poema. Tento estar com os músculos da palavra sempre bem treinados e à postos para agir ao menor sinal de faísca do poema. Como o golpe de karatê que o Leminski tanto fala.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Com o poema eu costumo guardar notas, palavras frases, mas me esforço para guarda-las na memória. Aquela coisa de ruminar. Vou guardando e guardando como um grande acumulador de referências e ideias. Quando preciso começar, os melhores já saem da cabeça para o papel quase prontos. Como se aquecesse minhas turbinas na cabeça e tentasse por no papel já quase todo bem resolvido. Quando preciso começar alguma coisa pq o prazo está curto, é mais difícil. Geralmente vou escrevendo e apagando até chegar em alguma frase boa e aí escrevo à partir dela.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Confesso que não tenho medo do poema. Quando tenho algum bloqueio, paro e vou ler. Tenho percebido que escrever é uma continuidade da leitura. E é de lá que tudo parte. Isso tem funcionado para mim nos últimos tempos.
Como mostrou o Tarso de Melo, num levantamento de um ou dois anos atrás, em São Paulo, temos mais poetas do que leitores de poesia. E isso é uma coisa que me toca. Não pretendo ganhar nada com poema. Nem reconhecimento. Então eu escrevo pq, se não o fizesse, não saberia respirar. E respirar depende só de mim, em nada do outro. Então escrevo. Como vai ser publicado ou se esse texto vai acabar esquecido no bloco de notas quando trocar de celular, não me preocupa tanto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Algumas vezes. Sempre deixo eles dormirem um pouco, e volto depois para ver se ainda dormem ou já morreram. Acho que o trabalho do escritor é mais reescrever do que escrever. Mas me forço para parar de reescrever também.
Eu costumava mostrar para alguns amigos próximos, mas cada vez mais tenho feito isso menos. Tenho pensado na importância dos nossos próprios erros, e como fazer do jeito que a gente acha que tem que ser é tão importante quanto o olhar do outro. Pra mim, um poema é sempre uma tentativa de chegar em algum lugar. As vezes se chega, as vezes não. Quase sempre não, na verdade. Então tenho cada vez mais gostado do poema como ele sai, sem palpites ou coisa do tipo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu costumava escrever muito no celular, até fazer um curso com o Maurício Salles Vasconcelos, na USP. E ele dizia que é preciso escrever em cadernos. Eu tentei, e ainda tento, mas as possibilidades de edição no digital me são muito mais preciosas. Elsa tem a velocidade do meu pensamento, eu acredito. Então estou tentando voltar cada vez mais para o celular ou o teclado. Para mim, na hora de lapidar e chegar na sintonia fina do poema, trocando uma palavra, testando um corte ou outro, isso fica melhor.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Tento cultivar, já faz tempo, duas propostas: registrar a segunda coisa que vem na minha cabeça quando penso sobre algo. E encontrar o contrapé de tudo que eu olho. Essas duas coisas, quando cultivadas, me colocam num estado de investigação perene do poema. Assim, consigo chegar no mais fundo que algum assunto pode oferecer. Penso o poeta como uma espécie de arqueólogo, que precisa tirar camadas até encontrar alguma preciosidade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Costumo falar isso: o que nos dá um estilo e uma personalidade em alguma produção é nossa incapacidade. Explico: todo artista faz a mimese a partir de algum outro. Eu, por exemplo, sempre quis ser um Leminski. E o jeito com que eu sempre falho quando tento é o meu mais puro estilo. A gente só consegue ser a gente mesmo quando a gente falha tentando ser o outro.
Voltar no tempo sempre foi meu tormento. Lembro de criança ficar aflito pq não conseguia voltar no tempo. Mas, se conseguisse, além de ficar muito aliviado, diria para escrever mais e mais e mais e mais e mais.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Ah, vários! Projeto é o que não falta. Tenho todos anotados, mas que nunca saíram: fazer um festival de música, criar um zine online, escrever um livro teórico sobre a colonização do olhar.
Eu gosto de me surpreender, então quando esse livro existir, vou adorar.