Marcos V. Chein Feres é doutor em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e professor associado da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina matinal é peculiar para um capricorniano bem pragmático. Todavia, meu ascendente em aquário ajuda a contrabalançar as escolhas de trabalho e de lazer ao longo do meu dia. Normalmente, levanto cedo, pois me apraz praticar yoga e, principalmente, a meditação nela incluída (encontrar comigo mesmo ao refletir sobre minha relação com o cosmos). Gosto de tomar um bom café da manhã. Para mim, é uma das refeições mais importantes e um bom desjejum transforma positivamente o meu dia. Entre o fim da minha prática de yoga e o desjejum, gosto de ler algo. Nesse momento, costumo ler um texto ou parte de um livro de teor mais técnico. O começo do meu dia é sempre muito especial, pois ele vai determinar minha atitude ao longo da minha jornada diária de trabalho e de bons encontros.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho grandes rituais para preparação para escrita. Preciso, em princípio, estar bem concentrado e já ter acumulado tanto leitura específica sobre o tema quanto realizado uma coleta de dados bem orientada. Entretanto, por ter me envolvido nos últimos anos de minha vida acadêmica mais intensamente com a pesquisa empírica, não posso responder a essa pergunta de forma individual e autocentrada. Na verdade, a minha preparação para leitura depende mais do que de leituras e de coleta de dados, mas sim de encontros coletivos de pesquisa e de intensos debates com meus bolsistas de iniciação científica, de mestrado e coautores. A percepção do trabalho científico como um afazer coletivo me fez refletir, profundamente, sobre meu papel como estudioso, leitor e pesquisador na área de Direito. Mais que isso, encontrei-me como sujeito relacional no processo de construção da escrita acadêmica de modo a concebê-la não mais como um ato individual e isolado de um sujeito autocentrado, mas sim como um ato colaborativo e coletivo, produto de um grupo de estudiosos independentemente do grau ou do estádio de desenvolvimento científico de cada um (uma) dos (das) participantes.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A partir da adoção de um modelo de pesquisa coletiva e colaborativa, o texto final passa por vários olhares e por processos diversificados de discussão e de debate. Há um momento importante em que dois ou três dos autores se encontram para uma leitura final do texto. Nesse exato ponto, ao discutirmos determinados trechos e passagens, o texto ganha forma e estrutura de produção efetivamente coletiva de sorte a não ser possível apontar onde começa a contribuição de um (uma) e onde termina a contribuição de outro (outra). A meta de escrita consiste em, pelo menos, três a quatro vezes ao mês realizar bons encontros para a produção final de textos oriundos de coletas e de sistematização de dados bibliográficos e empíricos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Na escrita colaborativa, há momentos em que se precisa discutir os dados coletados e produzir relações de inferências as quais dependem de uma boa compreensão do problema e da hipótese de pesquisa. Assim sendo, num trabalho colaborativo e coletivo, todos se tornam sujeitos essenciais na exata contribuição de cada um ou cada uma. Não há preponderância da escrita final ou do relato final da pesquisa sobre a coleta de dados. Uma coleta de dados feita de modo errático compromete a produção textual a qual deve resultar de boas inferências que, por sua vez, estão atadas aos dados coletados e sistematizados. Nesse processo, todos os (todas as) partícipes da pesquisa contribuem para um texto final de forma direta e indireta. Todos se tornam autores(as) e coautores(as) de um relato final de pesquisa. Embora o campo jurídico ainda seja muito avesso a esse tipo de produção coletiva, é preciso entender que, em pesquisas empíricas, não há lugar para uma produção individualizada e autocentrada, como já foi habitual na prática de pesquisa jurídica por décadas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O maior obstáculo para uma boa escrita em projetos de pesquisa empírica consiste na impossibilidade de compreensão dos dados e na real dificuldade de extrair dados desconhecidos dos dados conhecidos no processo de inferências. O esforço para não cair em tentações tautológicas e equivocadas é, sem dúvida, hercúleo, pois a minha formação foi toda construída no antigo sistema bacharelesco do curso de direito de fins do século XX. Dessa forma, tenho mais a superar do que os coautores e as coautoras mais jovens os quais já vivenciam uma mudança mais estrutural no campo da pesquisa do Direito. Meu maior desafio é o de não me acomodar na minha zona de conforto comum aos que já alcançaram determinadas posições no campo acadêmico. A todo momento, procuro me conscientizar do meu eterno lugar de aprendiz e jamais me colocar em posição de superioridade frente aos dados coletados e às críticas apresentadas ao texto final. Projetos longos ou curtos, a meu ver, devem sempre ser tratados com o mesmo rigor e a mesma importância de tal forma que expectativas e ansiedades estão sempre presentes e devem ser utilizadas como instrumento de propulsão para a realização de um trabalho de boa qualidade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Apesar de estarmos sempre correndo contra a premência do tempo, apraz-me submeter nossos trabalhos a críticas do grupo e à apreciação externa ao grupo antes de caminhar para a publicação. Congressos e eventos na área são importantes para submeter nossas pesquisas ao crivo de outros pesquisadores. Nesse sentido, procuro sempre ter ouvidos para ouvir e olhos para ver as críticas e as sugestões ofertadas por pesquisadores e leigos externos ao nosso grupo de pesquisa. Toda crítica e toda sugestão, sempre que possível, é socializada nos grupos internos de trabalho para que possamos repensar nossas análises e nossas produções textuais. Tenho me esforçado mais arduamente para não ceder à ansiedade de publicar o trabalho antes de passar por revisões necessárias ao amadurecimento da pesquisa.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Notas à mão são interessantes para pontuar uma ou outra questão da pesquisa. No entanto, os textos são discutidos e escritos via computador. No intuito de exercer uma escrita coletiva e colaborativa, é essencial estar aberto a todas as formas de tecnologia desde o google drive até à coleta online de artigos científicos. A internet viabiliza ricas fontes primárias e bibliográficas para explorarmos em nossas pesquisas, o que nos leva sempre a utilizar a tecnologia em todas as fases da pesquisa.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As discussões em grupo são uma fonte inesgotável de novas ideias e servem, de fato, como fomento para novos projetos de pesquisa ou novas abordagens sobre temas específicos com os quais estejamos trabalhando no momento. Reuniões semanais com o grupo de pesquisa se revelam sempre profícuas. Todavia, há momentos em que são interessantes leituras e reflexões individuais as quais contribuem para novas discussões coletivas. Mais do que tudo isso, a criatividade, para mim, depende muito do meu envolvimento pessoal e afetivo com a pesquisa e o estudo. A todo momento, procuro resgatar meu prazer pela curiosidade científica e pela vontade de saber e de investigar algo novo no campo da pesquisa empírica em Direito.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Infelizmente, a vida não me permite lamentar. Na verdade, ao longo dos anos, aprendi que o processo de aprendizagem exige humildade constante que contenha nossos impulsos de vaidade e “pseudograndeza” acadêmica, assim como reconhecimento das nossas limitações ao longo das muitas etapas de vida por que passamos. Quando elaborei meu projeto de tese, encontrava-me numa episteme completamente distinta daquela que permeia hoje meus objetivos de pesquisa acadêmica no Direito. No entanto, posso lhe dizer, com segurança, que a experiência de um doutorado e da defesa de minha tese me transformou como ser humano e, assim, possibilitou a transformação da minha atual prática de ensino e de pesquisa. Enfim, não posso lamentar o fato de a minha tese não ter sido um produto mais consistente de pesquisa como eu desejaria que tivesse sido. Afinal, ela foi o melhor que pude produzir naquele momento, diante das minhas contingências e limitações pessoais.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há muitos projetos que eu gostaria de fazer, mas ainda não comecei. Gostaria de escrever um livro sobre a necessária interação entre pesquisa e ensino do Direito, tendo como norte a minha experiência coletiva de ensino-aprendizagem e de pesquisa. Mas não me sinto ainda preparado para produzir algo consistente do ponto de vista teórico-empírico. O livro que gostaria de ler, porém não existe ainda, é o que traduza, de forma empírica, as inconsistências de uma lógica de aprendizagem e de pesquisa no Direito derivada de um processo de alienação tanto dos (das) estudantes quanto dos (das) docentes. Talvez, uma boa etnografia que relate os sabores e os dissabores de uma educação jurídica com efeitos deletérios na formação de uma classe burocrática egoísta, alienada e individualista a qual hoje detém o comando do país.