Marcos Peres é autor de “O evangelho segundo Hitler” (prêmios SESC 2012/2013, São Paulo de Literatura 2014 e finalista do Prêmio Jabuti 2014) e do romance policial “Que fim levou Juliana Klein?”
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Gosto de tomar um café, brincar com meus cachorros e ler um pouco. Vejo notícias, olho o celular, acompanho as novidades do meu time de futebol. Quando me vejo desperto, concentrado, parto para a escrita. É a melhor hora do dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Para a escrita, gosto das manhãs. É o período em que me sinto purificado, sem os tantos contratempos diários que inevitavelmente passamos. Para parafrasear uma música que gosto muito, escrever, nas manhãs, é a premier bonheur du jour.
O ritual é simples: tomar café, sentir-me acordado, ligado, alerta. Postergo a atividade nos dias em que me sinto muito excitado ou triste. Os sentimentos, assim como o álcool, me trazem acentos, e depois me fazem não reconhecer a escrita. Gosto de pensar que, no momento em que me sento para escrever, dispo-me de meus preconceitos, de meus problemas, dos tantos fantasmas próprios. Naquele momento, as vozes que me interessam são as vozes que pretendo imprimir no escrito. O resto – ou seja, minha vida toda – é secundário.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Aprendi com a prática que consigo escrever mil ou duas mil palavras, por dia, em um período de duas ou três horas. Se alongar o tempo ou a quantidade, minha concentração diminui, como também a qualidade daquilo que escrevo. Então, paro, e vou viver.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não sei se tenho uma regra geral para transformar a pesquisa em escrita. Acho que depende muito do grau de pesquisa que o projeto necessita. Em outras palavras, em alguns casos, algumas anotações já são suficientes para me deixar confiante para iniciar um texto ficcional. Em outros casos, travo até não me sentir senhor do tema. Na última pesquisa feita – e que ainda não conclui – um tema puxou outro, e outro, e me vi em uma espiral de livros técnicos, antigos, herméticos. Em determinado ponto, tive que frear o progresso das leituras técnicas. Se ficasse preso, o resultado ficcional sairia uma monstruosidade, um manual que não interessaria a nenhum leitor de ficção.
Ou seja: não há uma regra. Acho que o importante é saber que a escrita tem voz ativa e pede, em cada caso, um tipo de pesquisa, um trato distinto, uma abordagem personalíssima. Acredito nisso e procuro sempre respeitar meus textos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A curto prazo, óbvio, fico incomodado com os silêncios, com a ausência de ecos, com a ideia de que o que faço é supérfluo, que há tantas coisas importantes no mundo para que alguém se preocupe com o que um pobre escritor do terceiro mundo – nascido no tempo e local errados – se aventura.
A longo prazo, no entanto, creio que esse incomodo jogue a meu favor. Gosto da ideia de trabalhar com a falta de acomodação, com o não-conforto, com o constante questionar do que sou e do que quero. No pouco tempo em que estou nessa, aprendi que há uma volatilidade muito grande nos julgamentos, e que o gênio de hoje vira o idiota de amanhã com certa frequência. Não se deixar levar pelo elogio – ou não ter sequer elogios – é uma arma poderosa para o escritor. Claro, não deixa de ser torturante, as brigas internas são sempre ferrenhas, em muitos momentos me questionei seriamente se era isso que eu queria continuar fazendo para o resto de minha vida. No entanto, acredito que esse processo, por mais doloroso que seja, me faz extrair o melhor do que posso de cada escrito. A zona de conforto é um território muito perigoso para o escritor.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Também não há uma regra aqui. Alguns textos saem do forno mais cedo, outros necessitam de uma maturação maior. Penso que o autor nunca sente que o texto esteja realmente pronto. Mas há um momento em que precisa passar para frente – ou suas intervenções vão acabar estragando tudo. É como colocar tempero em uma comida: se o cozinheiro for displicente, o resultado será insosso. Se exagerar, o prato resultará intragável. Saber o momento correto é que é a pergunta de um milhão de dólares. Se, por acaso souber, me diga.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Os esqueletos e os insights são todos feitos a mão. Depois passo para o computador, porque acho mais organizado. Faço um roteiro geral, antes do escrito em si. Depois, no final, quando acabo o texto, imprimo-o e volto para o trabalho manual, tingindo as folhas impressas com o vermelho das correções.
Me sinto confortável escrevendo com tecnologia. Gosto de fazer uso de nuvens, etc, mas mantenho a famigerada gaveta de originais, que todo escritor que se preze tem.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
O conhecimento de algum fato que pretendo escrever vem da vida ou de alguma mídia que simule a vida – no caso, principalmente a leitura. Acho que a grande maioria das minhas ideias vêm de leituras que me pegaram, de alguma forma: pelo tema, pelo contexto, pela humanidade dos personagens. Não escrevo sobre um livro simplesmente porque considero tal livro excepcional. Escrevo, sim, porque este livro me foi excepcional (ou não) e, principalmente, porque ele me inquietou de alguma forma. Essa inquietação é um combustível, sempre.
Ainda assim, tento permanecer sempre alerta com a vida. Sei que, de notas de rodapé, de acontecimentos banais, de um olhar enviesado, pode nascer o germe de uma ficção. Não há como ser escritor sem ser um leitor atento. Tanto dos livros quanto da vida.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não sei se é uma melhora, mas há, claro, alterações com minhas preferencias de leitura, minhas referências, meu modo de enxergar a vida. O escritor, como a vida, é o rio do Heráclito, alterando-se sempre. Sou avesso a conceituações, o amor é isso, a literatura é aquilo, o escritor precisa disso ou daquilo, mas nesse ponto acho que posso falar com tranquilidade: as experiências, as leituras, a alteração do humor e as predisposições corporais – todo este complexo conjunto vai alterando o processo de um escritor. Oxalá mude para melhor.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tantos projetos que ainda quero fazer: um livro tal qual o que Borges cita em Exame da Obra de Herbert Quain (um livro imaginário chamado April March); um romance histórico sobre a vida e a obra de Geraldo Vandré; uma trilogia policial, em que cada livro sugira um final distinto para o mesmo fato; um livro em que cada personagem tenha uma noção distinta da passagem do tempo; um romance psicológico em que uma sociedade se mostre apenas como imaginação de um adolescente com problemas com drogas; uma ficção científica de uma sociedade que seja regida por um computador estoico, ao molde de Alphavilede Godard; uma história fantástica em que o protagonista, um escritor de sucesso, se encontre com o espírito do seu cachorro de infância, ressuscitado em um corpo humano; um romance que comece narrando a realização de uma vingança e que, permita, para poucas pessoas, a descoberta do motivo que ensejou tal vingança; uma tetralogia que emule os Evangelhos canônicos, e que contenha, cada um à sua maneira, um acontecimento similar a crucificação, e que seja passado em minha cidade.
Um livro que gostaria de ler, mas ainda não existe? Acho que em algum canto, na infinita Biblioteca de Babel, esse livro já deve existir. Nós é que não soubemos procurar direito…