Marcos Napolitano é professor do Departamento de História da USP.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Eu preferiria trabalhar em apenas um projeto por vez, mas a realidade da carreira acadêmica atual quase nunca permite isso. Normalmente, tenho que combinar a escrita de vários artigos ao mesmo tempo. Quanto estou envolvido na redação de um livro de maior fôlego, prefiro me concentrar somente nele.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Normalmente, eu trabalho a partir de um plano de redação, com tópicos e subtópicos. Mas ao longo da escrita, o plano pode ser modificado. No último livro que escrevi (História Contemporânea – do Entreguerras à Nova Ordem Mundial, Contexto, 2020), senti que a escrita fluiu mais, sem um roteiro prévio muito detalhado. Sem dúvida, para mim é mais difícil escrever a primeira frase. Aliás, todo o primeiro parágrafo. Sem um bom primeiro parágrafo, não há bom livro.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Procuro trabalhar ao longo do dia, principalmente pelas manhãs. Mas também trabalho bem à tarde, mesmo em meio a uma casa agitada, com crianças, televisão, cachorro, carro do ovo e da pamonha, etc. Preciso apenas de um pequeno escritório e um computador PC com internet. Mas confesso que tenho uma fantasia de, algum dia, escrever em um chalé na Serra da Mantiqueira, com vista para as montanhas. Mas isso é pura fantasia de dublê de escritor, acho difícil que aconteça (rs).
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Sento e trabalho. Alguma coisa tem que sair, ainda que seja uma ementa confusa de um futuro texto organizado (rs). Obviamente, essa solução é boa para escrever um livro acadêmico ou técnico, que depende mais de transpiração do que de inspiração. No geral, a atividade de escrita de livros e artigos me dá prazer, e como eu tenho muito pouco tempo para estas atividades, em meio a bancas, aulas e burocracias mil, não me dou ao luxo de travar.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Acho que o texto mais difícil foi a tese de doutorado. Além da inexperiência em textos de fôlego, da dificuldade em articular muitos elementos de pesquisa, há sempre aquela pressão interna do tipo “será que isso daqui vai dar certo?”. No final deu certo, mas o texto poderia ser mais fluido, menos truncado com tantas citações de outros textos e notas explicativas. Mesmo gostando de notas de rodapé, reconheço que exagerei (rs). Já o texto que me deu mais orgulho foi o livro “Coração Civil: a vida cultural brasileira sob o regime militar” (Intermeios, 2017). Mas há muitos pequenos artigos dos quais eu gosto muito, acho bem escritos e originais, especialmente o ciclo de artigos sobre o cinema brasileiro que publiquei entre 2009 e 2014. Mas nunca tive aquela sensação de terminar a obra e dizer “parla!”. Sempre acho que faltou algo mais.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Os livros que foram produtos de teses obedeceram ao fluxo dos temas de pesquisa do doutorado e da livre-docência. Ou seja, os temas já estavam dados e a escrita não foi pensada, originalmente, para se transformar em livros. Os outros livros completos que eu escrevi foram demandas de editoras ou convite de outros pesquisadores, no caso de capítulos para coletâneas. Apenas o livro sobre a ditadura (1964: História do Regime Militar brasileiro, Contexto, 2014) foi uma proposta minha, aceita pela editora Contexto.
O leitor ideal depende da natureza do livro que você está escrevendo. Eu já escrevi de tudo: relatório burocráticos, pareceres, livros didáticos para o Ensino Médio, livros paradidáticos para iniciação acadêmica e escolar em algum tema, manuais metodológicos e teóricos para professores do ensino básico e historiadores em formação, livros para pesquisadores e especialistas e até um livro historiográfico voltado para o público leitor não acadêmico, como foi o livro sobre o regime militar. Para cada gênero, eu imaginava um leitor ideal. Mas para ser franco, como eu me considero melhor leitor do que escritor, acabo sendo meu pior crítico (rs).
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Normalmente, são os editores. É ótimo quando temos um editor exigente, detalhista e com visão de conjunto, ritmo e forma. Mas eu não costumo mostrar “working in progress”, só resultados minimamente acabados. Meus colegas pesquisadores e professores tem tanta coisa para fazer que não tenho coragem para pedir que eles leiam meus originais. Infelizmente, a vida acadêmica atual não permite mais um tempo ideal no processo de escrita e publicação. Tudo tem prazo, tudo será avaliado pela CAPES ou pelas universidades, tudo precisa apresentar algum resultado quantificável. Isso está prejudicando muito o processo de escrita, sobretudo de obras mais alentadas e adensadas.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Eu sempre gostei de escrever, desde os tempos do ensino médio. Entre minhas opções de faculdade estava o jornalismo. Sempre gostei de cinema, desde adolescente, e sonhava em unir as duas coisas, a cinefilia e a escrita ensaística. Mas foi no mestrado que eu iniciei, efetivamente, a carreira de escritor acadêmico, e a verve ensaística teve que ficar na geladeira, pois teses e dissertações têm estrutura argumentativa mais rigorosa e dependente de conceitos, fontes e dados precisos. Posso dizer que aprendi a escrever, academicamente falando, com a professora Maria Helena Capelato, minha orientadora. Ela me ensinou a estruturar o argumento e perceber o texto como um todo articulado. Eu sempre repito para os meus orientandos uma de suas lições na hora de escrever: evitem adjetivos e advérbios. Ultimamente, tenho soltado mais o lado ensaístico, mas ainda evito adjetivos e advérbios (rs).
Acho que o melhor que alguém pode dizer para quem está começando a escrever, com todas as inseguranças, é: antes tudo, divirta-se. Aliás, meu mantra de trabalho é a frase de Paulo Leminski: “distraídos, venceremos”. Rigor e curtição são fundamentais para elaborar um texto. Mas a curtição não pode se transformar em paixão narcísica pelo seu próprio texto, a ponto de considerá-lo além de qualquer crítica. Um bom leitor crítico te ensina a escrever melhor.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Em textos acadêmicos, o estilo é um luxo, quase sempre vítima das regras lógicas de argumentação, de citação, de estrutura e clareza inerentes a esse tipo de texto. Claro, há espaço para o estilo e, normalmente, ele vem com o tempo, a não ser em casos excepcionais, de jovens mestrandos ou doutorandos que já tem seu próprio estilo. Não foi o meu caso. “Quando eu crescer”, gostaria de escrever como o professor Antonio Candido, aliando simplicidade, clareza, rigor e profundidade, sem jargões teóricos, clichês explicativos ou literatices.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Bem, são muitos os autores e livros que eu recomendaria, posto que me impactaram ao longo da vida. Dentre os textos acadêmicos, o primeiro texto que realmente me pegou na graduação foi de Lucien Febvre, “O problema da descrença no século XVI”. Na graduação, também fui muito impactado pelo texto de Pierre Clastres, “O arco e o cesto”, que até hoje eu acho um dos mais belos textos de ciências humanas. Gosto também de Hobsbawm, um escritor sem ornamentos e, ao mesmo tempo, sofisticado. Além deles, acho o “Dialética da Malandragem”, de Antonio Candido, outra aula de rigor teórico, sofisticação argumentativa e fluência na escrita. Como todo mundo que se formou nos anos 1980, tive minha fase “Foucault, Benjamin e Barthes”, que ainda acho grandes escritores, apesar do labirinto de ideias nos quais eles nos metem, cuja saída nem sempre é localizável (rs). Meu DNA kantiano me faz gostar mais do estilo de Hannah Arendt, cuja escritura maravilhosamente clara nos faz lembrar que para toda ideia há uma realidade social muito palpável, ainda que sem uma figuração já estabelecida pela narrativa socialmente compartilhada, e sempre colocando os conceitos sob prova.
Há outros tantos autores clássicos de prosa memorialística ou ficcional que eu recomendaria: Machado, Dostoievski, Poe, Cortázar, Graciliano, Rosa, Clarice Lispector, Primo Levi, Italo Calvino, Elias Canetti, entre outros. Aliás, acho fundamental que escritores técnicos e acadêmicos nunca deixem de ler boa ficção. Até porque, “quem há de negar que esta lhe é superior”?