Marcos Fabrício Lopes da Silva é poeta afro-brasileiro, autor de “Zumbi dos Ipês” (2018), “O feeling e o bíceps” (2019) e “A boca do mundo” (2019).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia tomando café da manhã na padaria perto de onde moro, acompanhado de um jornal impresso, no qual busco informações frescas e opiniões arejadas, o que é uma raridade. Costumo ser teimoso naquilo que amo: entre mortos e feridos, uma crônica me tira do sério e me coloca em sintonia com a graça e o humor. Todos os dias, sou salvo pela leitura e pela escrita. Assim, me livro de fazer coisas que não valeriam mesmo a pena perder tempo. A escrita e a leitura adoram ocupar o meu tempo, mesmo assim, dedico atenção especial à preguiça – ela me ganha na conversa.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meu nome é poesia. Meu sobrenome, madrugada. Sinto-me poeta na postura artística primeiramente. A escrita só vem depois de me aceitar melhor como pessoa. Quando não me aceito, prefiro deixar a escrita de lado e tirar o atraso do sono. A leitura se passa no trânsito com várias obras. Não prometo fidelidade a nenhum livro. Escrevo à mão e também direto no computador. Todos os dias, bato o ponto e apanho reticências. Registro o que elas querem me contar. Daí nascem os escritos por onde vou desenvolvendo sentenças sem juízo. Uma boa dose de irresponsabilidade faz bem ao ofício de escritor. Texto mais ambíguo e menos umbigo costuma se sair melhor em termos criativos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando me concentro, faço planos de aula [sou professor]. Planos de voo acontecem ao me preparar para a escrita viajante. Refiro-me ao momento da invenção, porque os resultados variam em matéria de qualidade [ou falta dela]. Nem todo o chute se transforma em gol. O lance é não deixar de treinar. Ouvido surreal ajuda. Terceiro olho também. Meter o nariz onde não é chamado rende história. Se entre dormir e escrever, você preferir a segunda opção, já era! Vai ser gauche na vida, como diria Carlos Drummond de Andrade. Respeite a liberdade de expressão da sua sombra: a partir daí a aventura poética começa a raiar.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu muito mais pesco do que pesquiso quando vou à luta para escrever poesia. Começo encontrando o esquisito, depois descobrindo o inusitado, na sequência acolhendo o anormal e por fim dando voz ao transgressivo. Leio prosa e poesia para beber dos outros a água que não encontro somente em mim. A literatura me livra da loucura de ser só eu mesmo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O que é do momento o futuro não toma. O que é do futuro o momento não leva. Quando escrevo, tento transcender as necessidades imediatas da vida. Assim, eu me aproximo ao princípio lúdico, na chave daquilo que Hélio Oiticica (1937-1980) chamou de “mundo lazer”, a propósito do seu projeto Éden (1969). A ação artística procura, muitas vezes, trazer à tona a elaboração do componente irracional que pulsa por debaixo dela. O que me incomoda é a “antiarte ambiental” – eu a combato com poesia dos pés à cabeça. Escrever poesia é sentir a liberdade embalar o meu tempo psicodérmico. Sem arrepio, não há poemação (termo cunhado pelos poetas Jorge Amancio e Marcos Freitas para nomear importante evento literário produzido por eles, no Distrito Federal)!
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
O poeta se encontra na corda bamba estendida entre o discreto e o exibido. Há poemas cuja lapidação se dá até o ponto de não falseá-lo. Isto é, sem violentar sua essência primeira. Também respeito o calor do momento quando a construção poética já se mostra “pronta” para mim. Levo comigo a força sublime do “instante-já”, como diria Clarice Lispector (1920-1977). Consigo estar aberto para o tempo psicológico. A revisão é a beleza de óculos, fundamental para diminuir a margem de erro do poema e ampliar a margem de acerto do texto. Entregar seus textos à crítica apreciativa do outro representa também exercitar, na prática, a saudável alteridade. Priorizo a autonomia autoral como critério importante. Somado a ela, busco estar aberto para as contribuições de leitura que possam estender o saber estético, ético e político do que escrevo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Pertenço à geração bloggeira (não só a ela). Fiz parte de um coletivo pensante e sensível muito legal chamado República do Pensamento, nome inspirado em um artigo de Machado de Assis (1839-1908), no qual o escritor e jornalista defende o seguinte propósito liberal: “O jornal é a verdadeira forma da república do pensamento. É a locomotiva intelectual em viagem para mundos desconhecidos, é a literatura comum, universal, altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das ideias e o fogo das convicções” (O jornal e o livro, Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 10 e 12/01/1859). No meu entender, o conceito machadiano deveria se estender a todos os meios de comunicação verdadeiramente comprometidos com o debate republicano de reflexões e atitudes, no sentido de enriquecer o cabedal informativo, opinativo e argumentativo da opinião pública. Cabe à literatura oferecer a história plena, usando certos efeitos da história plana para movimentar a roda da criação. Escrevo textos à mão, datilografados e digitados. Do guardanapo ao computador, respeito à diversidade dos suportes até porque eles me suportam poetizando em vários momentos. Quando o assunto é livro, escuto o lado A e o lado B da minha produção e procuro, desse balanço, publicar uma obra variada das ideias.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Essa pergunta já foi respondida por Augusto dos Anjos (1884-1914), em seu poema “A ideia” (Eu e outras poesias, 1912): “De onde ela vem?! De que matéria bruta/Vem essa luz que sobre as nebulosas/Cai de incógnitas criptas misteriosas/Como as estalactites duma gruta?!/Vem da psicogenética e alta luta/Do feixe de moléculas nervosas,/Que, em desintegrações maravilhosas,/Delibera, e depois, quer e executa!/Vem do encéfalo absconso que a constringe,/Chega em seguida às cordas do laringe,/Tísica, tênue, mínima, raquítica…/Quebra a força centrípeta que a amarra,/Mas, de repente, e quase morta, esbarra/No molambo da língua paralítica!”. O homem é um animal diferente. Só ele tem consciência de si próprio e da realidade, pode refletir sobre isto e, também, agir sobre si, transformando-se, e sobre a realidade exterior, criando cultura e mudando as circunstâncias. A poética conta sobre a essência dos começos autênticos, das origens radicais. O ser é o albergue da linguagem. Pensar sem linguagem é impossível, e a linguagem está repleta de sentidos. A polissemia é a realização da literatura problematizadora. Fazer arte, no mundo contemporâneo, é mais importante do que nunca, pois o novo homem está ameaçado de ser vítima da mentalidade tecnocrática. Para me manter alfabetizado em linhas e entrelinhas, leio e escrevo regularmente. É fundamental para desenvolver a sensibilidade, a sociabilidade, o senso crítico, a imaginação. Para me manter criativo, tento ficar mais atento à advertência feita pelo criador da somaterapia, Roberto Freire (1927-2008), no livro Utopia e paixão: a política do cotidiano (1988): “Para conhecer o mundo e a vida, é preciso estar antenado, alerta, apaixonado. O que interessa é aprender a decodificar as mensagens naturais que percebemos dentro e fora de nós. Esse, o caminho da sabedoria. E só não são sábias as vítimas da repressão sensorial, principalmente da cintura para baixo”.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ao longo dos anos, tornei-me mais aventureiro das palavras. Fatos reais e surreais compõem o que escrevo. O ritmo me fascina mais do que a rima. Não me considero um poeta de experimentos de linguagem exuberante. Escrevo para não estranhar as esquisitices (minhas e as dos outros). Sou operário das letras, sinto-me participando de uma montagem coautoral fascinante. Se eu pudesse voltar à escrita dos meus primeiros textos, diria a mim mesmo: “pensando bem, foi melhor assim!”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero me dedicar aos estudos sobre terapia literária. Sobre o tema em questão, o poeta Manoel de Barros (1916-2014), em Livro sobre nada (1996), revelou: “A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos”.
Inspirado pelo desejo do meu irmão Carlos Felipe, gostaria de ler um livro no qual Deus fosse um autista.