Marco Túlio Costa é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Responder a isso durante uma quarentena não é o ideal. Mas, na Era Pré-Coronavírus, eu não tinha essa rotina que alguns escritores se impõem. Ademais, “trabalho”, ou trabalhava para me sustentar, na área de Comunicação Social, que é minha formação acadêmica (Fiz também Letras e uma Especialização em Língua Portuguesa). Eu já vinha trabalhando em casa, dedicando esse horário a produzir coisas para clientes. Tenho duas tarefas diária, que são levar a cachorra para um passeio (chama-se Tulipa) e preparar o almoço, não suporto quentinhas, marmitas (minha mulher, que não é boba nem nada, trabalha fora). Por isso, a parte da manhã é muito curta para me dedicar à literatura. O que acontece com frequência é acordar com alguma ideia ou solução para o que estou produzindo. Então, corro e faço anotações.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Geralmente à tarde, pois fico sozinho em casa, o que é muito bom. As anotações que fiz, vão para os trabalhos em produção. Se são ideias novas, vão para uma pasta no Word. Atualmente estou produzindo alguns contos cujas ideias centrais estavam anotadas. Alguns têm a ver com este período sombrio que enfrentamos, reflexões a partir desse caldeirão de insanidades em que o Brasil se transformou.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho metas, pois não escrevo para blog, revistas ou jornais. Não sei se é por indisciplina. Na verdade, passo longos períodos, meses, sem produzir uma única linha. Então, quando o inconsciente e as anotações atingem um ponto de fervura, se assim podemos comparar, eu me sento para produzir. Geralmente é difícil essas primeiras páginas. São cheias de incertezas. De forma que minha produção fica concentrada em alguns períodos. Por exemplo, em 2014 produzi três originais (estão inéditos), a partir de anotações que vinham sendo feitas havia muito tempo. Às vezes encontro soluções que me agradam para ideias que tive muitos anos antes.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É um processo lento, como estava dizendo. Costumo dizer que supero a fase da preguiça. Mas na verdade é um processo de convencimento. Um exemplo: certa vez, estava conversando com amigos sobre um costume antigos dos moradores de Passos, Minas Gerais, onde moro, de criar um porco no fundo da horta. Isso, acreditem, perdurou até os anos 80. Bom, essa criação tinha como objetivo as festas de final de ano, quando a leitoa ou leitão saía do chiqueiro para as mesas de festa. Até que um prefeito resolveu, por motivos sanitários, acabar com isso. Ora, entrou na conversa um conhecido, Cheraim, que tem raízes no Líbano, e me disse que criava “porcos no terraço” de sua casa. Era uma coisa absurda. Mas ele explicou todo o sistema, desde quando levava para a laje da casa os leitõezinhos até o momento do abate, como era feita a limpeza diária, etc e tal. Da história, o que ficou na minha cabeça foi simplesmente “porcos no terraço” e fiquei muitos anos tentando encontrar um significado para isso. Até que escrevi uma distopia, em que porcos estão no poder, fazendo aí uma intertextualidade com Tomás Morus, Platão, Bacon e muitos outros.
Um fato muito comum é que a história que está sendo construída, ainda que eu tenha um roteiro pré-elaborado, vai nos enriquecendo (ou enlouquecendo) com outras tantas possibilidades.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho problemas quanto a isso, porque não vejo cobranças ao final do trabalho. A rigor, escrevo para mim mesmo. Dessa forma, escrever é um processo muito envolvente, empolgante, e o prazer a escrita está todo nesta busca de soluções mais interessantes. Construída a primeira versão, por exemplo, vem outra fase, de joalheria, desde a eliminação de partes, retirando excessos, o refinamento de frases, na escolha de palavras.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Inúmeras. Às vezes lendo de cabo a rabo, às vezes só aqui e ali. Tive um original, terminado em 1999 que foi publicado pela FTD em 2011, sendo finalista do Jabuti em 2012. Sim, mostro meu trabalho a outras pessoas. De fato, foi assim que aprendi a melhorar meu texto. Meu pai, autodidata, sempre teve uma biblioteca muito grande, sempre recebi incentivo para a leitura. Quando comecei a escrever, era sobre a mesa dele que eu deixava meus escritos. E era sob seu martelo impiedoso (depois ele se tornou professor de Linguística e de Teoria da Literatura, na Faculdade de Letras aqui de Passos) que eu aprendi a ter um olho mais crítico. Mostro também a outros amigos escritores (alguns têm paciência e disposição para isso). Acho fundamental esse olhar de fora, feito por pessoas que têm competência para isso. Um jovem escritor deve evitar ao máximo o mero ‘elogio’ de amigos. Isso ajuda muito pouco.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Nunca escrevi à mão. Tenho preguiça, minha caligrafia é displicente, horrível. Aprendi datilografia em casa aos 12 anos de idade. Tenho muita facilidade para datilografar sem olhar o teclado. Não tenho mais a minha máquina de escrever, que deixei sob os cuidados de minha filha mais velha. Desde os anos 90, quando comprei meu primeiro computador, só uso essa tecnologia. Ela é excelente para acabar com a preguiça da revisão. Isso porque, antigamente, depois de preencher uma página inteira, com um impecável trabalho datilográfico, ao reler o texto – o que ocorrer frequentemente – podia achar que uma palavra tal ficaria mais bem colocada… mas, nossa, datilografar tudo aquilo de novo! Sem dúvida, digitar em computador deixou tudo muito fácil. É possível, inclusive, guardar versões e experimentar outras.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Ah, creio que ter tempo livre é muito importante. Roubando aqui Domenico de Masi, todo escritor necessita deste ‘ócio criativo’. É conhecida a passagem da vida do Jorge Amado – não sei se é folclore ou fato, tanto faz – em que um vizinho passa diante da casa e vê o Jorge empenhado em cuidar de um canteiro. Diz: trabalhando, hem, Jorge! Ao que ele responde: não, descansando. Noutra ocasião, lá está o Jorge Amado deitado numa rede, tranquilo da vida, olhando o céu. E o vizinho comenta: descansando, hem, Jorge! Ao que o escritor responde: não, agora eu estou trabalhando. Pois então, eu adoro ficar assim. Leio um livro, corro para outro (sou completamente sem critério em minhas leituras), mexo num canteiro, assisto a filmes, depois um noticiário… Na verdade tudo isso é fonte de inspiração, é fornecimento de dados para o inconsciente fazer aquelas necessárias conexões com as ideias que anotei, com roteiros que estou montando para novos trabalhos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que aprendemos com o passar dos anos é que o tempo, a vida, é uma fonte muito rica de matéria prima para a criação literária. A vivência do escritor enriquece seus textos. Essas gerações X, Y, Z… sofrem por essa ansiedade de resultados a curtíssimos prazos, quando na verdade não é possível amadurecer em minutos. Querem o ontem, o hoje e o amanhã tudo em um pacote. Eu leio minhas coisas, publicadas nos anos 70, dentro daqueles anos de chumbo, quando havia raríssimos canais de publicação no Brasil. Juntamente com outros jovens amantes da literatura (ninguém achava que iria se transformar em escritor, acredito) fundamos uma revista literária, a Protótipo, que era feita pelo único sistema de reprodução que tínhamos ao nosso alcance, que era o mimeógrafo a tinta. Isso, no interior de Minas Gerais, não no Rio ou em São Paulo. Pois bem, essa revista foi citada pelo Pasquim, pela revista Veja, como resistência cultural, como janela aberta para textos novos. E nós nem fazíamos ideia de que éramos tão raros no cenário brasileiro. Quando leio os textos que eu produzia naqueles dias, não gosto. Mas isso não quer dizer que não tiveram valor para a minha formação. Tiveram e muito. O que eu poderia dizer àquele escritor iniciante? Leia mais, estude mais, aprenda mais, faça mais amigos para ampliar a ebulição de ideias. O diabo é que eu era – e sou até hoje – tímido e tenho baixa autoestima. Teria que voltar ao passado e arrancar essas duas coisas daquele sujeito. Quando abandonei meu curso de Letras na UnB, simplesmente porque não sabia o que queria da vida, me mudei para o Rio – fui morar em Niterói – e arrumei um emprego de datilógrafo na Fundação Getúlio Vargas, na Praia de Botafogo. Naquela época, trabalhava lá o escritor já consagrado, José J. Veiga, autor de livros que eu tinha lido e admirava. Pois jamais tive coragem de chegar até a sala dele, conversar… Essa timidez é terrível. Eu tive oportunidade de ir até o Pasquim, onde trabalhava um amigo, já falecido, que eu conheci dos tempos de revista literária, em Belo Horizonte, o Jeferson Ribeiro de Carvalho, já falecido. Eu ia até o Pasquim e jamais tive coragem de entrar na casa – que ficava numa rua aos pés do Morro do Pavãozinho, no Rio. Faz alguns anos, fui a Salvador para um encontro com professores da rede pública, num processo de escolha de livros para as bibliotecas escolares. Por mero acaso, o livreiro que tinha me levado a Salvador também tinha chamado o Ziraldo e eu tive a oportunidade de me sentar à mesa com ele, em um restaurante. Foi quando contei a ele sobre esse fato. E ali eu vi que tinha perdido uma boa oportunidade de me entrosar com pessoas muito receptivas, que poderiam ter contribuído para minha formação. E assim foram muitos outros casos. Hoje, evidentemente, tenho essa carga de existência a colocar nos textos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho absoluta convicção de que preciso abrir uma porta na internet para interagir com escritores e leitores. Contudo, reconheço minha dificuldade para lidar com essas coisas, embora todos digam que são fáceis e simples. Uma hora vai. É como ficar na prancha do trampolim de uma piscina. Quanto à segunda parte, é questão para o Fernando Pessoa responder, pois foi ele quem lascou lá no ‘Pecado Original’: Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido? Será essa, se alguém a escrever, A verdadeira história da humanidade”. Para mim, sempre será o livro a ser escrito aquele que realmente importa.