Marco Severo é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo meu dia às 5h da manhã, de segunda a sexta, mas não tenho uma rotina matinal. Sou professor de inglês e, desde que decidi sair do ambiente escolar, meus dias são pautados pelas demandas dos alunos de aulas personalizadas, de modo que não há horário específico para começar (nem terminar) o dia. Duas vezes por semana acordo e vou nadar às 6h; nos dias seguintes, acordo cedo para dar aulas. Tento tomar alguma coisa no café da manhã, quando há tempo e, quando não dá, procuro alternativas. As manhãs se iniciam de forma intensa. Como não posso controlar essa força com que me atinge a realidade, minha resposta a Cronos, esse titã de temperamento violento e negativo, é sempre acordar de bom humor. Faço exatamente o que Erasmo Carlos sugere na canção: “nasça sempre com as manhãs”. Eu nasço. Inclusive com as segundas-feiras, que tanta gente desgosta – eu adoro. Aprendi a renascer todos os dias.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo mais disposto pela manhã, mas por conta da rotina extenuante, o único dia em que consigo de fato sentar para escrever ao começar do dia é aos domingos, quando acordo por volta de 5h:30 e escrevo até umas 8h; então levanto, como alguma coisa, e se não tiver uma tarefa a demandar minha atenção, sento para escrever um pouco mais.
Não há um ritual propriamente dito, mas antes de sentar para começar a escrever coloco o celular em modo silencioso e longe da minha vista; penduro na maçaneta, pelo lado externo da porta, o aviso de que estou a escrever – assim, por acordo, sabe-se que só poderão me interromper se houver aviso de incêndio no prédio – , abro alguns dicionários online com os quais gosto de trabalhar e ajusto a cortina do escritório para manter a quantidade de luz certa. Sou fotofóbico e luz em excesso me desconcentra. A penumbra é o ambiente ideal de trabalho para mim.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Gosto muito dessa reflexão a respeito da escrita. Quando ela de fato começa? Quando se dá? A escrita acontece apenas quando o escritor está colocando as ideias no papel? Da maneira que eu penso, sim, eu escrevo todos os dias. Isso significa pensar a respeito do conto ou crônica que eu estou escrevendo, todos os dias, conscientemente buscando soluções e avanços narrativos, ainda que eu não esteja literalmente escrevendo algo. Por essa razão, não lido com metas. Essa ideia de um número X de palavras ou páginas por dia me angustia, e eu não conseguiria fazer o que eu faço, da maneira ruminativa como são os meus construtos, sem a liberdade de criar apenas o que sou chamado a criar num dado dia, seja uma frase, um parágrafo, ou todo o texto de uma só vez, num jorro. A criatividade com rédeas é a privação da possibilidade da palavra, e penso mesmo que ela tem até o direito de não vir, num dado dia – faz parte do tempo da escrita, e eu respeito esse tempo.
Chego em casa por volta das 22h, tomo um banho que ajuda a me revitalizar, como algo leve e, depois de um tempo concluindo questões a respeito dos meus alunos, escrevo por mais ou menos 1h e meia. Isso pode significar, além da escrita propriamente dita, reler o texto que eu estiver escrevendo, modificando ordem de frases ou parágrafos inteiros, lendo o texto em voz alta para ver como ele soa e, frequentemente, trocando uma palavra por outra que eu acho que soa melhor, ou que traz uma força maior para o meu texto, e sobre a qual eu só vou me dar conta nessas releituras. A tudo isso eu também chamo de escrita.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Escrevo as minhas crônicas no desejo de atravessar um portal que me surge no instante em que algo me arrebata o olhar cotidiano. Meus livros de crônicas partem da necessidade de fazer essa travessia. Assim, vou escrevendo-as apenas com a palavra sentida e, quando há necessidade, da palavra procurada, pesquisada, mas com o intuito de voltar para a palavra que vem dessa necessidade de me submeter ao que está para além do olhar. Nesse sentido, não é difícil começar, porque existe uma efervescência do querer saber que é anterior a mim, porque parte da curiosidade, contida em mim em toda a sua ancestralidade. A crônica é explosão, que depois de escrita arrefece, ganha seu espaço e, quando acho que tem razões de permanecer, incluo num livro.
Já os meus contos não vêm do olhar muitas vezes contemplativo que a crônica enseja. As tramas para a escrita ficcional vêm de todos os lugares, e me ocorrem a todo instante. Vou anotando cada uma delas, seja nas minhas cadernetas, que mantenho comigo exatamente para este fim, seja no bloco de notas ou no gravador de voz do celular, ou até mesmo diretamente num arquivo do Word. Em algum momento começo a pensar em um novo projeto ficcional e vou buscando juntar numa mesma pasta as ideias que convergem para aquele projeto específico. Não é incomum que outras ideias surjam nesse processo, daí duas coisas podem acontecer: ou o projeto inicial se desdobra em outros com o mesmo tema, mas regido por variações, ou eu escolho as histórias que melhor estruturarem o livro que quero criar, e me debruço sobre a escrita dessas histórias. É um processo cheio de idas e vindas, em que aquilo que eu pensava anteriormente pode não se concretizar, e aquilo que me parecia certo de ficar fora mostra-se sólido o suficiente para fazer parte do todo. Também não é difícil começar. Difícil como seja – e é – gosto do ato da escrita. A maior complexidade na criação de um livro de contos, para mim, está em chegar o mais próximo possível daquilo que eu vislumbrei.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A disciplina é uma busca, porque improvável diante da dificuldade de impor uma rotina aos meus dias. Mas eu tento, e tento.
Não tenho medo de não corresponder a expectativas porque não penso nisso enquanto escrevo. Aliás, penso, mas em surpreender a mim mesmo e fazer o melhor que eu puder. A escritora estadunidense Toni Morrison, vencedora do Nobel de Literatura de 1993, disse certa vez: “Se houver um livro que você quer ler, mas que não foi escrito ainda, então é você que deve escrever esse livro”. Gosto de pensar que escrevo livros que eu gostaria de ler, e que outras pessoas também poderão gostar. A cada livro que me proponho a escrever, mantenho em mente as palavras que Philip Roth disse ao anunciar que não escreveria mais, citando o boxeador Joe Louis, a um entrevistador que lhe perguntou se ele estava satisfeito com a obra que havia escrito: “Eu fiz o melhor que pude com aquilo que eu tinha”. Não penso em me aposentar da escrita, mas me apetece pensar que a cada obra que entrego para o público, estou dando o melhor que eu posso neste determinado momento da minha vida.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Vou escrevendo e revisando e, com o avançar do processo, paro a escrita para reler tudo o que fiz até ali e revisar, fazer as modificações que já mencionei, na intenção de ir melhorando o texto, nesse movimento lapidar. Geralmente, enquanto isso acontece, acabo escrevendo o que falta de uma maneira já quase finalizada, e não intervenho mais tanto naquele momento. Então, entrego para duas pessoas de confiança, que sei que terão vigor para dizer tudo o que pensam a respeito do texto para, somente depois de receber o parecer crítico delas, voltar a trabalhar no texto. Terminada esta última parte, entrego para a editora, que faz a revisão e pequenas sugestões, até termos o livro pronto.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não sou extremamente afeito à tecnologia, no entanto, me adapto a ela para que eu consiga utilizá-la a meu favor. Não escrevo os contos propriamente ditos à mão, mas faço as anotações deles em cadernetas – ou, se o que estiver mais perto de mim for o celular, anoto no celular. Quando não posso digitar, uso o gravador de voz. O importante é não perder a possibilidade de uma boa história.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm de multiversos impossíveis de serem numerados ou mesmo apontados de forma muito precisa. Da maneira como olho o mundo. Da forma como compreendo esse olhar, como ele me afeta, me impacta, o que me causa. De lembranças de coisas que vivi, que me foram contadas, ou de histórias que penso que me lembro, mas que seguramente são invenções ou memórias parciais – sempre tive uma mente absurdamente inventiva e, por não ter sido compreendido na infância, fui muitas vezes punido por isso. A leitura também ajuda nos processos de criação. Ao ler, a mente mantém-se encharcada de possibilidades e, ao lidar com tantos acontecimentos advindos da criação da mente dos outros, o cérebro acaba elaborando esse processo de criação e construindo outras narrativas, que desaguam em contos e crônicas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tenho estado cada vez mais consciente do que quero dizer com a minha obra, essa é uma das mudanças, embora eu não imponha a mim mesmo nenhum tipo de cobrança quanto a isso. Seja lá o que eu vier a escrever mais adiante, minhas histórias surgem das minhas inquietações, que vão se transformando com o passar do tempo, das pessoas, dos governos. Gosto também de acreditar que tenho escrito melhor com o tempo, devido à prática, à reflexão sobre a prática. Hoje entendo quando ouvia de outros escritores que deve-se “escrever, escrever, escrever” para se tornar escritor (Fernando Sabino, Marina Colasanti, Antonio Carlos Viana e Rubem Fonseca me disseram isso em diferentes momentos da vida). Com a prática, desenvolve-se um olhar para o que se está dizendo, o escritor ou escritora começa a ter melhor noção de suas próprias qualidades e limitações e desenvolve estratagemas para fazer, da melhor forma possível, o que se propõe.
Não sou muito autoindulgente comigo mesmo, mas não fico me punindo severamente por contos e crônicas que hoje eu talvez não escrevesse, ou que escreveria de outra maneira. Penso que eles tiveram sua razão de ser naquele determinado momento. Gosto inclusive de poder olhar para trás, relê-los, e ver como se comportava na escrita o Marco Severo dos primeiros anos, dos tempos em que só escrevia, sem pensar em publicação. Ficou o registro, a memória afetiva, e a certeza de que eu nunca deixei de ocupar o lugar de tentar fazer da minha escrita algo que valesse a pena. Eu tenho amor pela escrita, respeito e reverência. Nunca foi em vão. De modo que todos os textos valem a pena. Inclusive resisto à tentação de modificá-los, de uma edição para outra. Gosto de acreditar que quando o Alzheimer se abater sobre mim, reler escritos de diversas épocas da minha vida, com suas marcas, seus defeitos e qualidades, me ajudarão a compor o quebra-cabeças do que eu um dia terei sido, e isso me conforta.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu sinceramente não tenho isso comigo. Neste momento estou trabalhando em um livro de microcontos, um livro de contos sobre o amor que virá para complementar o meu primeiro projeto abraçado por este tema e em um livro de crônicas inéditas. Enquanto trabalho nesses três livros, tenho uma série de outras pastas com projetos que em algum momento iniciarei, bem como sei que durante esse processo outras ideias, que darão vazão a outros projetos, surgirão. Concluo um projeto, dou a ele seu devido tempo de gaveta e, enquanto isso, vou começando outro. Estão todos guardados, vou aos poucos, sem ansiedade. Sei que surgirão no seu devido tempo.
Os livros que eu gostaria de ler e ainda não existem jamais existirão: um livro de contos inéditos de Machado de Assis, um romance inédito de Philip Roth, de Elvira Vigna, um novo livro de contos de Antonio Carlos Viana… Isso só para citar alguns dos meus maiores afetos literários, cujas obras se encerraram com suas mortes.