Marco Aurélio de Souza é escritor, autor de “Anjo Voraz” (Benfazeja, 2018) e “Os touros de Basã” (Kotter/Patuá, 2019).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Desde que minha filha nasceu, há cinco anos, a possibilidade de estabelecer uma rotina matinal é remota: eu e minha esposa somos professores, por isso, além de termos horários de trabalho muito flexíveis, que mudam todo ano, vamos revezando nosso tempo com a filha, que às vezes fica a manhã toda em casa e às vezes não. Portanto, embora eu renda melhor neste período do dia, não posso discipliná-lo para o trabalho. Quando estou sozinho (como agora), aproveito o silêncio e tento produzir. Quando não, dedico-me a coisas que exigem menos minha concentração – respondo emails, envio textos, leio alguma coisa mais leve, reviso alguma produção; qualquer coisa que funcione ao som da Ladybug ou dos Detetives do Prédio Azul (risos). Para iniciar um projeto de escrita, seja literário ou acadêmico, dependo muito da solidão, pois não consigo fazer várias coisas ao mesmo tempo, e escrever com alguém ao lado foi sempre algo que senti como invasivo. Neura minha, sei, mas é como me sinto ao escrever. Em suma, não me cobro uma rotina, pois se eu tento escrever fazendo outras coisas, interrompendo meu fluxo para dar conta de outras atividades, invariavelmente, todas elas ficam uma merda (risos).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Manhã e tarde são os períodos em que efetivamente consigo produzir. À noite, dou mais atenção à família e aos meus vícios. Escrever depois de uma cachacinha, sem chance, então à noite eu ouço música, vejo um filme (às vezes fico olhando pra parede com um ódio fulminante pela vida). Quanto aos rituais, não tenho nenhum: sento em frente ao notebook e, se não consigo escrever nada, deixo o teclado de lado e pego um livro para ler. São dezenas deles começados, por aqui. Leio muito mais do que escrevo, e não vejo como isso poderia ser diferente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não sou do tipo que consegue ou se obriga a escrever sob qualquer circunstância. Não me imponho o dever da escrita. Não vejo a escrita literária como uma atividade profissional, no sentido capitalista da coisa, até porque a minha renda vem mesmo do trabalho como professor. Ainda assim, escrevo quase todos os dias, mas sem estabelecer metas. Academicamente, tenho prazos, então é óbvio que, com a aproximação de certas datas, me cobro a escrever mais. Na literatura, prefiro respeitar o meu próprio ritmo. Mas também aqui faço uma distinção: para iniciar qualquer projeto literário, espero pelo momento certo, quase como um pescador olhando para o silêncio de sua isca. Os poemas curtos, por exemplo, nascem sempre num ritmo espontâneo. Mas quando tenho um projeto longo já iniciado (um romance, uma série de poemas, etc.), mesmo quando perco o interesse, vou me forçando a continuar, encaixo a escrita em qualquer momento disponível do dia, pois, do contrário, seria impossível terminar qualquer coisa: é preciso criar a disciplina da escrita para que o fôlego inicial não se perca em inúmeros abortos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Minha banca de doutorado deve acontecer em fevereiro de 2020. Quer dizer; neste momento, estou finalizando minha tese. Dos quatro anos disponíveis para a elaboração do trabalho, dois deles foram dedicados somente à leitura e à pesquisa. Só comecei a escrever minha tese em meados de 2018, com bom ritmo a partir de 2019. Quando sinto que já tenho um bom repertório sobre o tema, a escrita flui. Na literatura, porém, o movimento é outro, bem mais difícil de apreender.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quem sabe melhor sobre isso é minha esposa, que me aguenta nestes momentos (risos). Deixando de lado o meu emocional, contudo, por não ter formação para avaliar em que medida sou atravessado por estas questões (imagino que bastante), creio que, quando estou servido de um olhar racional sobre o que faço, lido bem com medos e expectativas. Quanto à procrastinação, tento explicá-la pra mim mesmo de outra forma: como respeito ao meu ritmo interior. Às vezes, atravesso longos períodos de abstinência da palavra. De repente, os poemas formigam à mente, aparecem aos bandos, geralmente em profusão. Não chamo a isso inspiração, embora não veja problema em usar o termo, mas entendo que seja uma questão de conexão com o mundo. Também não tem nada que ver com a negação do trabalho literário, com achar que só se deve escrever quando este momento surge – depois que o texto está escrito, volto a ele muitas vezes, melhorando sua forma. Mas quando me sinto morto, quando me sinto vazio, alienado, não me forço a escrever, simplesmente porque não existe em mim um desejo de comunicação. Então espero pelo momento em que a vida me toma de assalto outra vez, quando recupero a densidade das coisas e das pessoas, desfazendo em mim a caricatura falsa ou chapada que impus ao mundo no período anterior, neste momento eu sinto que tenho algo a dizer – mais que isso, sinto que escrevendo me aproximo ou entro em contato com o enigma do mundo. É um clichê, sei, mas não fosse por isso, eu jamais perderia o meu tempo escrevendo coisas sobre as quais a maior parte das pessoas não possui qualquer inclinação para ler. Dedicava este tempo a coisas úteis, que dessem dinheiro, que trouxessem algum conforto material.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende do texto, reviso muito. Outros, sinto que já nascem quase prontos. Não existe regra. Geralmente, mostro para alguns poucos amigos e para a minha esposa. Também depende muito do texto.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo tudo no computador. Só faço manuscritos quando estou fora de casa e me sinto impelido a escrever. Aí o bloquinho me salva. Depois, passo tudo pro PC, revisando o que foi escrito à mão.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Academicamente, elas surgem da leitura de outros livros. Na literatura, pode ser a partir de qualquer coisa. Os livros me informam sobre procedimentos, sobre as formas, sobre os recursos que posso usar, combinar, etc.; mas existe um olhar, que chamo poético, que é exterior aos livros e para mim é fundamental na criação. Não nasce da poesia como gênero literário, porque ele existe em qualquer criança, porque todas as artes possuem, porque é muito mais básico do que uma forma literária. Os poemas são um trabalho, a poesia não: ela é um modo de funcionamento. Deste olhar poético é que surgem as minhas ideias, mas este olhar, embora seja comum a toda a humanidade, evidentemente requer cultivo: precisa ser adubado, precisa de podas regulares, precisa de tempo dispendido à contemplação e à sua análise minuciosa, tudo para que ele não continue ingênuo, refém das circunstâncias, como é na criança e no adulto alienado da arte. Certas pessoas descuidam tanto de seu olhar poético que simplesmente o atrofiam. Quer dizer, todo o mundo pode olhar o mundo com poesia, mas nem todo o mundo é poeta.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Meu processo está mais maduro, claro. Reviso mais, dialogo mais com a tradição e com os contemporâneos, deixo os textos mais tempo de molho, já não tenho tanta pressa para publicar. Se pudesse voltar no tempo e falar comigo mesmo, não diria nada: primeiro porque aprendi e aprendo com todos os erros; segundo porque sou orgulhoso como uma mula e sei que não daria ouvidos ao que o meu eu de agora tem pra dizer. “Quem este meu outro eu pensa que é pra querer me dizer o que devo fazer?” (risos).
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho quatro livros prontos: dois de poemas que estão no prelo, um romance aprovado para captação em edital de cultura (que provavelmente não vai captar nada, mas deve sair em 2020), e o quarto livro é exatamente o que eu gostaria de ler e ainda não foi publicado, mas que já existe porque eu já o escrevi (risos). É um poema longo sobre o vício, sobre a miséria do vício, um épico da derrota, um mergulho em busca de uma humanidade mais profunda, que considero a melhor coisa que já fiz em literatura. Sobre projetos que eu gostaria de começar, talvez um livro infantil, uma história em quadrinhos, uma coletânea de ensaios sobre discos de rock que me marcaram; não sei, gosto de pensar que a escrita é o meu terreno de liberdade, porque as escolhas são (quase?) infinitas, mas acontece que o meu tempo não: já é quase meio dia e agora preciso terminar a entrevista pra tomar banho e sair almoçar, pois a vida em família, diferente da minha escrita, tem sempre alguma rotina, e é bom que seja assim, e é assim que deve ser, porque a poesia alimenta, sim, mas não como o amor de uma criança, e nem como o virado tropeiro que o restaurante aqui da esquina faz.