Marco Antonio Zanfra é escritor e jornalista, autor de “O beijo de Perséfone” (Unisul, 2019).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Basicamente, tomo o café e acesso as edições dos jornais Folha de S. Pauloe Diário Catarinense, dos quais sou assinante; dou também uma passeada pelas redes sociais, principalmente o Twitter.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Costumo escrever à tarde, porque, como ‘dono de casa’ – a mulher faz mestrado e os sogros moram conosco – tenho muitas tarefas domésticas. Mas não tenho um ritual, porque a escrita faz parte da minha vida profissional: sou jornalista desde 1977 e trabalhei muito em jornais diários, o que te destrava na hora de começar um texto. Mas é claro que, durante o trabalho de construção de uma história de ficção, você está ‘escrevendo’ durante todo o tempo: vai criando cenários, situações, expressões, adaptando e corrigindo mentalmente o que já foi escrito… Você não para, mesmo depois de pronto o trabalho – sempre acha que alguma coisa pode ser melhorada.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta porque não tenho cobrança, tanto interna quando externa. Ninguém fica me apressando para entregar os trabalhos, nem mesmo eu. Escrevo praticamente todos os dias, desde um ou dois parágrafos até duas ou três páginas. Depende do ‘fluxo’ do texto. Mas é claro que, para escrever mais, o fluxo já está ocorrendo na minha cabeça desde muito antes – isso que eu expliquei no item anterior, de você estar ‘escrevendo’ no decorrer das pelo menos dezesseis horas em que permanece acordado (ou até mesmo durante um despertar mais prolongado durante o período de sono).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu texto é inteiramente ficção. Então, não há pesquisa específica – apenas os anos de pesquisa empírica que consegui trabalhando como repórter. Pode ser que, eventualmente, eu precise solucionar alguma dúvida ou resgatar alguma informação meio obscurecida na memória, mas são apenas ‘flash’, que demandam um tempo curto e que nem chegam a interromper o processo criativo. Quando era repórter, às vezes coletava uma grande quantidade de dados e tinha de pô-los na matéria, mas sempre tive a capacidade de pensar como um todo mesmo durante o período de coleta de informações. Quando me sentava para escrever, sabia que tinha a informação, sabia onde encontrá-la e sabia onde colocá-la. Às vezes o único problema era pensar num ‘lead’ mais abrangente; mas, feita essa introdução, o resto fluía naturalmente.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não costumo ter travas de escrita. Posso às vezes não achar de primeira a melhor forma de dizer algo, mas revendo o texto, e revendo de novo, e revendo outra vez, vou chegar a um que me agrade. Já me aconteceu de, durante um fluxo de escrita, não achar uma palavra adequada e deixar um espaço em branco (…) para encontrar a palavra mais tarde. Mas não travei nem impedi que o texto continuasse fluindo, porque o que faltava não era a ideia, mas a palavra que melhor a representasse. Quanto a trabalhos longos, eles também podem ser revisados, suas partes podem ser substituídas por outras melhores. No meu primeiro livro (As covas gêmeas), por exemplo, descobri na primeira leitura crítica após o fim da escrita que o capítulo 14 quebrava o ritmo do texto que eu vinha mantendo até então. Era como se a orquestra estivesse tocando em prestissimoaté o final do capítulo 13 e passasse a larghettoa partir daí. Tive de reescrever metade do capítulo para devolver-lhe a vibração. No último livro (O beijo de Perséfone), tive de experimentar algumas fórmulas para me dar por satisfeito com o primeiro capítulo – depois de um prólogo do qual gostei muito – e com o último, que teve de ser bem trabalhado para não tirar o brilho do penúltimo capítulo, onde houve o clímax da narrativa.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Tenho o hábito de reler um grande trecho a cada vez que retomo a escrita, que é para não perder a continuidade e o ritmo. Ao final, faço uma primeira leitura crítica – para descobrir alguma incongruência no texto, quebra de ritmo (como aconteceu com As covas gêmeas) ou trechos que podem ser substituídos por outros mais elegantes. Essa primeira leitura é feita em ambiente isolado: costumo ir a um hotel e ficar sozinho com a história. A leitura é muito atenta e crítica, e é onde grandes mudanças podem acontecer. Depois dessa, costumo ler pelo menos mais uma vez por conta própria. Depois, o livro vai para a editora aprovar a publicação e encaminhar para a revisão – no período de revisão, que abrange tanto erros de digitação quanto o uso inadequado de palavras ou expressões, eu praticamente leio mais uma vez. Em As covas gêmeas, quando a Editora Brasiliense pediu que eu reduzisse o texto, acabei lendo ainda mais duas vezes.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Profissionalmente, nunca escrevi a não ser diretamente na máquina. Quando comecei na Folha de S. Paulo, em 1977, escrevia na máquina de escrever. Em 1982, o jornal começou a explorar os terminais de texto e tivemos nosso primeiro contato com os computadores. No meu caso, acho que não consigo escrever um texto (profissional, claro!) à mão, por causa da lentidão da escrita manual – as ideias fluem rapidamente e vão perder-se se você não colocá-las imediatamente no papel, o que só é possível com a rapidez da digitação.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm da observação, do hábito do repórter. Meus dois primeiros livros, aliás, são extensões ficcionais de histórias reais que colhi quando repórter policial em Florianópolis. No mais, vivo sempre atento, lendo muito, acompanhando as venturas e desventuras – mais desventuras do que venturas – da Humanidade. Qualquer coisinha que possa parecer mínima vale um texto, uma crônica. Para os romances policiais, entretanto, o que mais vale é a dedicação à leitura de outros autores, clássicos ou contemporâneos, para manter acesa a chamada do mistério. É claro que minha experiência como repórter policial vale muito nessa equação, mas no texto de um escritor renomado você pode conseguir boas referências.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A tendência de todo mundo é evoluir, e eu não acho que seja diferente comigo. No meu caso, modéstia de lado, acho que meu texto e a construção da narrativa vem melhorando a cada livro. Devo muito disso a jamais abandonar a leitura, um hábito diário, e a ouvir sempre as críticas profissionais. Não creio, porém, que meu processo de escrita tenha mudado: escrevo melhor, conto a história melhor, uso palavras e expressões de maneira melhor… mas o processo é o mesmo desde que comecei a escrever profissionalmente, em 1977. E o que eu diria para mim? Que eu me comportasse da mesma forma como me comportei até agora e deixasse que a evolução chegasse naturalmente.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Comecei a escrever um novo romance policial, mas estou encontrando um pouco de dificuldade de absorção. Explico: os três últimos livros tinham o mesmo personagem principal e a narrativa era em primeira pessoa; como aposentei esse personagem, estou criando um novo, e mudando a narrativa para a terceira pessoa, criando a figura do narrador onisciente. Se você trabalha três livros com o mesmo personagem, você chega ao terceiro livro como se ele fosse um membro de sua família. Ele é um amigo, quase com existência física; e, como a narrativa é em primeira pessoa, você praticamente incorpora o personagem, dando-lhe até mesmo parte de sua vida… Com o novo personagem, estou ainda encontrando dificuldade de absorvê-lo, de dar-lhe vida. Parece por enquanto apenas um retrato na parede, e eu não vou ficar satisfeito enquanto não sentir que ele está vivo, como estava o personagem dos livros anteriores. Não escrevi duas páginas ainda, já reescrevi duas ou três vezes, mas ainda não achei o tom. A história promete, mas vai ficar mais fraca se o protagonista não tiver credibilidade. De resto, projetos sempre haverá enquanto tivermos condições de colocá-los no papel!