Marco Antonio Martire é escritor, autor de “O gato na árvore”, “Capoeira angola mandou chamar” e “Cara preta no mato”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Pratico uma rotina matinal muito regular, raramente escapo dela. Não faço disso uma obrigação, nada a ver com ideia de rotina como obrigação, a que somos atrelados em função do dever. A rotina a que me refiro é a parte boa do meu dia que eu decidi disciplinar, por vontade própria, por querer desse momento um cumprir de tarefas necessárias. Sendo assim cumpro essa rotina com satisfação, e me alegro ao ver que as tarefas foram realizadas, mais uma vez, mais um dia. Então, depois de me levantar da cama, pego o jornal diário ao pé da minha porta, se já há café, encho metade da minha caneca. Se não há, eu ponho a cafeteira no fogo. Com a caneca de café na mão, e talvez um pedaço de pão, passo os olhos no jornal durante meia hora. Terminado esse ritual, levo o meu cachorro para dar uma volta no quarteirão. Quando retorno, uma ducha fria e pronto: tenho de me vestir e sair, hora de ir para o trabalho. Sou servidor público, tenho um expediente a cumprir. Isso durante a semana. Aos finais de semana, substituo a rotina do servidor com a de escritor, leio mais, escrevo, confiro as redes sociais, saio para caminhar ou correr no dia claro.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não é muito a hora, mas o andamento do dia. Gosto de uma atmosfera de sossego, dos momentos quietos. Trabalho muito melhor nesses dias, a janela aberta mais do que o ar condicionado, sons de vento, talvez uma música em volume bem baixinho. Não costumo escrever de noite, curto escrever até o início da noite. Ao escurecer, me libero para outras atividades, ler, encontrar os amigos, assistir tevê, esportes. Não tenho ritual de preparação para a escrita, até onde eu percebo não vejo. Sento-me e teclo, em geral já com a ideia, ou inspiração na cabeça. Prefiro quando não sou perturbado, quando não me interrompem com alguma questão corriqueira. Sei que em casa essas questões são inevitáveis, surgem. Faço o que for preciso e retorno ao texto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias, falta que me incomoda. Gosto desse ideal de escrever em tudo que é dia, mas até aqui minha produção tem sido gerada em períodos concentrados. O que não é mau, só é um pouco ruim quando enfim se deve estabelecer a disciplina necessária para pôr em forma de texto esse conteúdo antes íntimo, que precisava vir à tona. Algumas atividades ficam relegadas, encontros, programas, outros projetos nem tão prioritários. Essa disciplina autoimposta pode parecer bem obsessiva ao olhar alheio, principalmente para o olhar de quem não conhece as vicissitudes da criação literária. Sempre digo: enquanto geral aproveita o dia de sol para curtir uma praia, e admirar as belezas da cidade, o escritor em processo criativo gasta essas mesmas horas em casa, diante de uma tela em branco, levando a imaginação até os seus limites. Percebo que muita gente acha estranho, não entende. Sobre metas, minha meta de regularidade está marcada pela crônica quinzenal, essa é meu ritmo, o que me carrega. Quando escrevo textos mais longos, me comprometo com uma cota de páginas diárias. Se um dia escrevo uma página a menos, no outro escrevo uma a mais. Assim funciona.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não acho difícil começar, acho que é difícil aprender a continuar, e concluir. Uma vez iniciado, gosto de concluir. Mas olha, escritor desperdiça muito material, existe mesmo essa contradição: tem hora que não vale a pena, não adianta, o rumo da história não é o que se desejaria, e a ficção foge de nós, vai embora. Não é uma mecânica, não é exato, o escritor lida com o imponderável. O que eu escrevo hoje, se devo prosseguir amanhã? Difícil haver um escritor que não tenha desprezado metade do que por ventura tenha escrito. Há uma frase: escrever é a arte de cortar palavras, do Drummond. Que frase! Mas volto ao processo de continuar e terminar. Muitas vezes ocorre o contrário, o texto que se escreveu ontem, e ficou guardado por meses, será o texto que escreverei hoje, quando aquele material me tentar como possível. Com crônica acontece direto. É assunto que não acaba, que depois se retoma. Não há arrepender-se nisso, um por-que-não-escrevi-isso-antes. Rola uma dor quando houve muita pesquisa, aí sua pergunta vem com tudo. Pesquisa exige tempo, preparo, estudo. Trabalho que muitas vezes se ignora, ao vermos o livro brilhar naquela resenha e conseguir destaque na vitrine de uma livraria. Afinal, o livro está ao alcance da mão, não é mesmo? Mas quem conta histórias pesquisa muito. Abandonar, ou mesmo adiar, um projeto ao entender que não era a história que se queria contar é um escangalho. Mas acontece, e o escritor precisa cultivar a esperança. Outras histórias virão. Eu compilo poucas notas, tenho algumas, mas minhas notas são principalmente em função de cronologia, faço anotações sobre o tempo dos acontecimentos, momento em que ocorreu determinado fato na vida daquele personagem, o que fazia outro personagem na mesma época. Essas são as minhas notas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação é uma trava séria. Mas na turma da procrastinação vive também a vontade. Se escrever é um trabalho, é preciso cultivar a vontade. Senão é passatempo, nada contra, mas daí o sujeito pode procrastinar à vontade. Dorme mais, vai à praia, curte o churrasco. Sem estresse. Mas se quer escrever, vai ter que encarar esse estresse, é trabalho, não pode procrastinar, vai ter que dar um jeito. Suponho que muita gente faz a opção do passatempo, como eu disse, por causa desse medo que você cita, o medo de não corresponder às expectativas. Digo uma coisa sobre isso: tem que arriscar, porque a gente aprende muito com a experiência. Não é preciso ter todas as respostas para começar. A ansiedade do projeto longo vem na sequência, o sujeito começa e normalmente quer dar conta do mundo, quer uma história que conte sobre todas as coisas. Isso é um passo largo para sofrer com a ansiedade. Eu prefiro trabalhar com projetos mais curtos, porque sei que vou dar conta.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso dezenas de vezes. Repete aí: dezenas de vezes. Não adianta. Pra mim, reescrever é a parte mais gostosa. Reescrever é ler a própria história, não há trabalho melhor no mercado do livro. Escrever da primeira vez é deixar-se levar pelo fluxo criativo, a história vai se contando por si mesma, se o escritor pára para pensar e reflete sobre o que escreveu, perde o ritmo da frase, do parágrafo, vai ter que retomar e isso incomoda, muitas vezes não se consegue. Por isso revisar, reescrever, é tão gostoso, não tem essa obrigação de seguir com a história, eu paro no parágrafo, gasto horas, até o dia inteiro naquela frase, naquela palavra, sem esquentar a cabeça com o dever de ter que seguir em frente. Isso é ótimo, curto demais. Mas eu mostro o livro em progresso para pouca gente. Geralmente, amigos também escritores. Dar opinião sobre o trabalho alheio, antes de publicado, é sempre muito difícil, mas há quem saiba fazê-lo. Claro, ouço também sempre a opinião do meu editor, temos uma parceria, que valorizo e respeito.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu curto tecnologia. Fico ligado não só no que rola no mundo dos gadgets e aplicativos, como no que acontece no campo das ciências. Nada exagerado, apenas curiosidade mesmo, de acompanhar e participar, nem que seja na forma de um comentário em uma crônica, algo que eventualmente arrisco. Por exemplo, em 2017 eu registrei meu encontro fortuito com um drone na crônica “Esses drones de outro mundo”. Essa crônica foi publicada na RUBEM em outubro daquele ano, mas acabou não entrando no meu livro de crônicas “O gato na árvore”, lançado em abril do ano seguinte. Ficou para uma próxima coletânea. Sobre os rascunhos, eu os abandonei faz tempo. Amei o microcomputador e o processador de texto à primeira vista. Cheguei a fazer trabalhos de colégio em máquina de escrever, mas o micro me virou a cabeça. Lembro de um processador de texto da época, chamava-se Carta Certa. Depois vieram outros, Word na dianteira. Mas rascunhos a mão eu parei. Depois do smartphone então, quando me surge uma ideia, vai para um aplicativo de notas do Android, um registro bem básico, uma frase ou duas, no máximo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Digo que as ideias vem da atenção que se dá ao mundo. Se o sujeito não tem interesse no que ocorre no mundo, à sua volta, ou mesmo em outro tempo e lugar, por que ter ideias? Ter ideias é propor soluções, dá um trabalho, depois de tê-las é necessário decidir o que fazer com elas, quem você será depois de ter uma ideia? Então, completando com a pergunta seguinte, as ideias vêm de uma atitude perante o mundo, perante à sociedade, uma atitude que se cultiva feito um hábito, prática. Dou um hábito que tenho, como exemplo? Converso com outras pessoas sobre minhas ideias. Considerar que possui o privilégio das melhores ideias é estancar a própria criatividade. Uma armadilha que pega muita gente.Tudo fica triste, preto no branco. Não gosto.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu comecei tateando palavras, devagarinho, envergonhado. Não tinha noção de meu vocabulário, das histórias que queria contar, não sabia para quem queria contar. Essa é a vantagem do tempo, uma vantagem considerável. Poupam-se horas valiosas com a experiência, horas que a gente reaplica na própria vida e na criação, que evolui soberbamente. A vantagem dos primeiros anos é a disposição para aprender, que eu sempre tive e tenho, aquela sensação de coração meio vazio, mas também meio cheio, de onde o autor vai tirando suas histórias. Se o autor percebe que se preencheu completamente, o que fazer? É preciso paixão. Se eu pudesse voltar à escrita de meus primeiros textos, o que me diria é: insista.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto que eu gostaria de fazer é o meu próximo. Um livro de poemas, em que estou trabalhando. São poemas guardados na gaveta, que agora estou revisando. Quero publicá-los em breve. Mas nesse caso, já comecei, né? Um projeto que ainda não comecei? Tenho ideia de chamar uma turma, montar um papo sobre literatura contemporânea, pra gente falar o que der na telha. O livro que eu gostaria de ler? O livro que eu gostaria de ler já deve existir. Já foi escrito, penso. E é genial. Sei que não o teria escrito, nem escreveria. Eu quero é ler.