Marcio Tito é escritor, autor de “Nossa Senhora das Transexuais”.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Achei da maior importância a sua pesquisa e também a forma como você está cartografando escritores e escritoras para, quem sabe, algum dia termos aqui um documento (um parecer de época, um mínimo do que teria sido a nossa empreitada conjunta). Parabéns por isto!
Não tenho tido hábitos diurnos, aliás, nunca os tive. Entretanto, quando a manhã e eu nos cruzamos, fico sempre maravilhado com a beleza e a lentidão das primeiras horas do dia. Isso me inspira, mas não me define enquanto autor. Por hábito, e acho que até por tradição, escrevo de modo intermitente há anos.
Tive na infância muito medo de não conseguir me alfabetizar direito. Então, quando me entendi com as sílabas, os pontos e as vírgulas, acabei tomando para mim esta responsabilidade com o universo escrito. Desde que aprendi a escrever, sem que isso se pareça com uma obrigação ou com alguma demanda, escrevo todos os dias e muito mais de uma vez ao dia.
Não me recordo de ter passado um dia inteiro sem escrever. Hoje, com a facilidade do celular, escrevo muito, muito mais. No celular o material já aparece diagramado e isso me instiga. Escrevo, aliás, quando converso pelo whatsaspp. Aproveito para responder ou perguntar coisas de modo que eu possa depois reaproveitar a forma da conversa em alguma empreitada de fato literária.
Escrevo sobre o que penso, sobre o que vejo, sobre o que penso ter visto.
Acho uma bobagem tomar a realidade como única ou principal possibilidade de contraste para a produção de pensamento literário. Escrevo porque o texto é possível.
Em resumo, meu longo dia de escritor começou há uns 25 anos atrás, quando percebi que seria capaz de escrever com a mesma intermitência com que penso e me emociono. Escrever, pensar e “ser” são três condições que não controlo e não pretendo nunca controlar. No entanto, escrever foi a única dessas três coisas que descontrolei intencionalmente. E fico com orgulho dessa conquista. Eu consegui não consegui domesticar algo que cresce nesse descontrole, e isso me parece ser algo bastante difícil, sobretudo quando analisamos alguns eventos da vida dos outros.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meu principal ritual é conseguir não me sentir deprimido. Deprimido não escrevo, exceto por alguma obrigação profissional. Agora, pensando o que é que mantenho aceso ao meu redor, com a intenção de que me acompanhe na criação, penso que meu principal ritual esteja na pesquisa. Me sinto e sou incapaz quando não encontro ou recordo gente que me faça sentir que a nossa espécie está para muito além do cotidiano.
João Gilberto e Philippe Petit me trazem uma profunda sensação de realidade, assim como Caetano Veloso, Roberto Piva, Cecília Meireles, Robert Bresson… E quando a realidade fica explícita em sua exuberância, posso participar dela com uma coisa que considero extremamente real: o texto.
Meu mais constante ritual é este: Não me deprimir e encontrar coisas maravilhosas, para participar ativamente da maravilha da vida. Sou como aquela atriz que teria dito que utilizava chamapgne e joias porque a riqueza é curativa. Mas a minha champagne é a vida em evidência, e minhas joias são esses e essas artistas que rompem a fronteira espiritual da existência e nos oferecem uma centelha divinatória em seus trabalhos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo muito, todos os dias, e ainda assim erro algumas vírgulas rs.
A questão é que julgo a arte de escrever algo tão complexo quanto medicina, filosofia, atletismo. Dentro dessa observação, também me vejo menos disciplinado que um médico, um filósofo, ou um atleta ideais. Portanto, sentindo extrema necessidade de participar da produção de coisa tão complexa, insisto diariamente na produção daquilo que eu mesmo não me considero ainda plenamente capaz de alcançar.
A minha maior meta é deixar admirados meus ídolos mortos, para isto, e sem poesia alguma, sei que seria preciso escrever algo radicalmente humano, sincero, autoral e imortal que rompesse o mundo que toco e o mundo invisível que nos assombra (se é que realmente assombra).
Falo isso sem poesia ou metáfora alguma, ainda que seja mais ateu do que cristão. Acredito que a arte seja capaz de conjurar o invisível. Assim, diante da compreensão de que escrevemos 50 livros para cometer arte em duas ou três páginas no máximo, assim como Fernanda Montenegro diz ter realmente feito arte em algumas cenas, de algumas peças, em alguns poucos dias, não me contento com uma produção coerente ou admirada.
A minha meta não é por medida por perímetro, mas por espanto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Minha compilação é automática. Vejo e escrevo. Outras coisas, que não elejo para tanto, se abrigam em algum ponto desconhecido e surgem de repente. Por exemplo, um dia escutei uma piadinha que era “a diferença entre o troco e o segredo é que o troco a gente conta e o segredo a gente guarda”. Achei uma graça. Fiquei com isso na cabeça e escrevi uma peça, que foi até premiada, utilizando essa frase enquanto experiência central das personagens.
As notas são… são sapatos novos para velhas ideias.
Escrevo diariamente sobre as coisas que já escrevi. Acho que a arte de escrever é a arte de reescrever. Nelson Rodrigues teria dito que a arte da leitura é a arte da releitura. Concordo. Eu me movo pela escrita assim: Numa interminável e profunda conversa com as coisas etéreas e as pessoas mortas que jamais aparecerão para me responder com palavras. Assim, nesse delírio místico e ateu, vou procurando respostas em coisas que elejo serem capazes de responder às minhas expectativas.
No fundo, sei que minha produção é póstuma à uma outra produção – a produção de sentido.
Procuro dar sentido para tudo, isso é natural da minha experiência. Vejo significado em coisas insignificantes. Uma pessoa desconhecida. Um lugar abandonado. Procuro fabular todas as coisas, e essas coisas também me fabulam de volta. Escrevo, essencialmente, o texto que existe e não existe entre essas coisas que jamais teriam conversado se eu não estivesse ali presente para fingir que essas conversas aconteceram.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Minha única trava é estar triste. Contra isso, não há remédio imediato. Mas, ainda assim, procuro ver muitos filmes ruins, tipo sessão da tarde mesmo, porque sei que quando a melancolia passar a memória não vai embora junto.
Eu, bem humorado, não consigo ver coisas chatas. Triste, prostrado, consigo. Então quando volto ao estado que prefiro, de bom humor e tranquilidade, sei que absorvi muitas informações que eu não teria acesso se não fosse a apatia que me toma às vezes.
Recapitulo tudo e procuro extrair impressões sofisticadas à cerca das bobagens que vi. É o que digo em aula – se você conseguir não ser idiota, tudo dará certo, porque a fricção entre a sua não idiotice e as coisas que são desinteressantes, em confronto, produzirá uma terceira coisa, algo inesperado e que romperá com a obviedade das coisas. Acho que a minha trava sempre perde para mim, criei estratégias para tanto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso ao infinito e agora pago alguém que saiba ser mais técnico ou técnica do que eu. Inclusive, ter alguém que adeque o meu sentimento à padrões técnicos me ajuda a produzir com maior velocidade. Foi a minha grande descoberta da vida adulta: o desejo de ser um artesão, porém consciente de que o verniz não sairá da minha maleta.
No mais, mostro para todo e qualquer um que tiver interesse. Uma comentário simples, vazio até, me ajuda demais. Demais. Eu sou feito de utopia e troca. Assim, quando a pessoa diz algo inesperado, amo. E quando diz algo bobo, amo igualmente. Procuro sentir a razão da pessoas ter visto daquela maneira, e não a limitação do comentário segundo a minha noção do que é que seria um comentário inteligente ou não.
Mostro porque algum dia aquilo será visto. Não tenho compromisso com o acerto. Escrevi muito nessa vida, é impossível que eu tenha acertado sempre. Escrevo e mostro na mesma velocidade. Reviso ou envio para a revisão com a mesma velocidade com que escrevo. Texto, para mim, é matéria prima para mais texto. Não me importo com a perfeição (e nem ela comigo).
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não me lembro de ter escrito algo relevante sem que fosse num celular ou em um computador. Aliás, quando tive acesso à esses meios aproveitei para escrever as coisas que guardava na cabeça havia anos. Passei a redigir as coisas que ia decorando para não perder, e que tinha dificuldade em escrever no papel.
Escrevo tão rápido quanto escuto, e escrevo tão rápido quanto penso. Estou dizendo umas coisas malucas, não estou? Mas como percebi este espaço como uma plataforma capaz de nos registrar com verdade, não vou tentar parecer educado ou modesto além da conta. É assim. Sou assim. Talvez sejam coisas que pareçam incríveis, mas que cabem apenas à mim e ao meu processo.
Tenho colegas de profissão que escrevem numa lentidão que me deixa angustiado, e que ao mesmo tempo apresentam resultados que eu não seria capaz de entregar. Ou seja, o meu método é meu e serve para atingir a minha identidade. É isso mesmo: Sempre escrevo em coisas que sabem brilhar no escuro rs.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias saem como respostas a essa responsabilidade que estabeleci como fosse minha e só minha. Escrevo porque me convenci de que sou escritor. Alguns dias escrevo para responder autores, outros dias escrevo para pensar melhor. Escrevo para utilizar alguma palavra que esteja latente no meu vocabulário. Escrevo porque quero dizer algo. Contar algo. Me exibir. Seduzir. Escrevo porque escrever é a minha relação mais imediata com a vida. Escrevo, sobretudo, porque a escrita tem um acabamento melhor que a fala. Escrevo porque há fantasmas demais, em toda parte, com infinitas e inacabáveis fisionomias. Acho a realidade uma coisa a ser vencida. Escrevo porque o tempo e o espaço me exigem fabular, sempre e sobre tudo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Meu texto mudou, mas meu objetivo é o mesmo. Ainda escrevo com as mesmas intenções. Antes eu perseguia tudo de modo mais inocente, sem organizar a produção, e escrevia porque queria ainda performar a linguagem como um brinquedo devorador de tempo.
Em vinte e tantos anos acho que já brinquei demais. Agora escrevo com maior responsabilidade, e querendo que o leitor ou a leitora entendam de fato a realidade do que estou fazendo. Antes eu queria que quem não me entendesse ficasse ofendido e fosse dar um jeito nesse desencontro. Agora não aceito mais isso. Preciso que leitores e leitoras estejam comigo, enquanto iguais, dentro da mesma experiência de velocidade e sentimento.
Escrevo porque há gente que presta outros serviços à sociedade, portanto escrevo com a responsabilidade do trocador de pneus, da moça que anota telefones. Escrevo também para dignificar outros e outras escritoras.
É preciso colocar cada coisa em seu lugar, e escrever faz com que as pessoas que escrevem sejam pessoas participativas, reais, políticas e ativas. O que mudou? Perdi o interesse pelo aplauso imediato. Agora eu quero que numa palma do aplauso esteja a minha mão, e na outra palma as mãos de quem tiver lido. Numa contrição. Numa utopia mesmo. Isso aprendi com o teatro. O coletivo me atravessa e ao coletivo me refiro. É isso. O teatro mudou o meu processo de escrita, radicalmente e para sempre.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto que não realizei foi ter publicado algo importante antes dos trinta. Faltam só 3 meses agora! No entanto, pretendo publicar um volume que compilará a minha produção dos últimos 29 anos. Coisas que imaginei na infância e agora incluí em textos atuais, coisas que escrevi na adolescência e agora revisei com meu coração adulto.
O meu projeto atual é escrever um romance, mas também não sei se vai acontecer assim tão breve. Talvez eu diga o mesmo aos quarenta anos e tanto faz. Talvez não dê tempo. Talvez sobre tempo. Por isso eu escrevo como se fosse tudo pra ontem. Meu projeto não é este de viver de arte, ou da escrita. Meu projeto é, basicamente, escrever como um religioso. E venho escrevendo com disciplina e coerência. Estou realizado nesse sentido.
O livro que eu gostaria de ler e não existe… bom… Algo que ainda não me parece completamente dito na poesia, no amor, nos encontros transcendentais.
Gosto muito de poesia. Mas nunca li um volume perfeito. Eu gostaria de ler um livro perfeito. Que cada vírgula fosse adequada e cada substantivo a traição mais linda. Não quer dizer que eu precise concordar com os escritos. Mas apenas que mesmo em desacordo eu coloque aquilo entre os dois arquétipos que julgo essenciais em todo artista – Kurt Cobain e Jesus Cristo. É. Talvez isto.
O volume perfeito há de ser este. Uma longa e extraordinária conversa entre Cobain careta e Cristo chapado, com as rimas da Cecília Meireles e prefácio de Dráuzio Varela. Posfácio de Nelson Rodrigues. E a Bethânia declamando essa doideira toda (de um jeito que saia som do livro, mas que isso não interfira na produção gráfica da coisa, é claro).