Marcio Markendorf é professor, pesquisador e escritor, autor de “Soy loca, Lorca, feito um chien no chão” (Urutau, 2019).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Há um ano, em razão da pandemia, tenho uma rotina bastante atípica. Apesar disso, de um modo geral, acordo cedo, passeio com minha cachorra, tomo o café da manhã, depois confiro a fila de trabalho, e o dia começa. Gosto um pouco de ordenação e roteiros.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Creio que no período matutino eu trabalho melhor porque, a princípio, estou mais descansado. Mas já singrei madrugadas adentro produzindo, lá no passado, e creio que os impulsos dependam do espírito do tempo (rs). Na cronologia de agora, acordo cedo e durmo cedo. E embora eu goste de seguir percursos sequenciais, o ato de criação dispensa rituais: muitas vezes surge de uma forma caótica, espontânea, em conexão de imagens ou ideias, emersão de matérias da memória. Estou, por exemplo, lendo um artigo e palavras começam a tomar relevo, pulsar e alguma coisa cresce, eclode. Eu queria é ter um ritual (mágico) para captar tudo que me aparece nas horas mais impróprias (rs). Nem sempre tenho uma caneta à mão – ou qualquer coisa para anotar – e acabo perdendo a imagem cima-baixo do iceberg que veio na minha direção. Daí é muito frustrante se contentar apenas com a ponta emersa, sem reter a matéria densa que estava no fundo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Trabalhar com microliteratura acabou me dotando de uma disposição mais profissional – escrita como compromisso. Como preciso alimentar a conta no Instagram, o que faço praticamente de forma diária, acabo por criar com a mesma regularidade. Essa prática constante da ficcionalização é muito boa porque me mantém ativo por mais tempo, a criatividade fica sempre rodando em um tipo de segundo plano no hd mental. Creio que seja por isso que muitas histórias brotam inesperadamente quando estou fazendo algum trabalho mais técnico. Quando eu mantinha o blog Incorrespondencias (www.incorrespondencias.blogspot.com), voltado para o gênero confessional, eu escrevia de forma mais irregular, à mercê das emoções e das experiências amorosas, o que acabava deixando vários hiatos na produção. Não significa que eu sentia ser imperioso ser atravessado pelos sentimentos para produzir, mas naquela época essas experiências biográficas sentimentais moldavam a massa literária de um modo singular. Agora que estou trabalhando em um livro de contos, o exercício é mais moroso porque estou tentando desentranhar algumas coisas lá do fundo, dragar as memórias e depois dar um bom tratamento literário a tudo o que sobe. Não é uma tarefa simples, dependo de um trabalho emocional e técnico ao mesmo tempo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu faço muitas anotações em papéis avulsos ou cadernetas, especialmente quando estou trabalhando de forma mais científica (planejando aula, escrevendo artigos etc). Por vezes a prática não é um bom negócio porque volta ou outra não entendo o que escrevi (rs). Também registro muitos trechos no celular, vou compilando coisas, depois sento para tentar dar uma ordenação a tudo. Aí é que começa o maior desafio, pois tento colar as partes com imagens. Na prosa longa sou muito visual, então gosto muito de consultar dicionário de símbolos para me inspirar imageticamente e preparar o amálgama de uma forma sensível.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não penso muito sobre. Em geral, quando estou inseguro quanto a algum texto, acabo elegendo algum ‘leitor beta’, do meu círculo mais próximo, para me dar um feedback. Isso ajuda um pouco a ajustar o que eu espero que as pessoas experienciem. Já quanto aos bloqueios e procrastinações, tento não me culpar demais, nós já somos uma casa assombrada por fantasmas pessoais, não preciso de mais um encosto na habitação (rs). Acabo trabalhando na pesquisa criativa e na leitura literária, o que é um modo de cavar novas ideias e prosseguir.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende muito do projeto ficcional, mas reviso pelo menos umas três vezes cada texto. A primeira versão sempre é o expurgo, depois as outras vão dando os acabamentos. Tenho um texto na sexta versão e ainda não estou contente com ele, segue na gaveta, esperando o dia de glória. Creio que cada texto exige seu tempo de depuração e nascimento. E quando preciso, chamo meus leitores-beta.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu sou uma pessoa muito analógica, preciso da materialidade do papel, especialmente para revisão textual. Gosto de riscar, reescrever, puxar flecha, tudo com caneta. O cursor piscando do computador é muito mais intimidador para mim que uma folha em branco.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
De muitos lugares. Acredito que é preciso manter um olhar curioso para realidade porque de qualquer esquina pode surgir um fragmento, uma imagem, uma narrativa. Eu combino esse olhar deslumbrado com a pesquisa criativa e a leitura literária, o que me dá um bom reservatório de possibilidades. É a imagem do mar de sargaços.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Creio que a dicção mudou bastante, especialmente pelo trabalho que tenho feito ultimamente com microliteratura, que tem um quê mais bem humorado, às vezes sardônico, às vezes sagaz. Eu tenho um bom conjunto de textos da juvenilia que volta e meio releio. Embora eu não me identifique mais com aquele estilo, com a ingenuidade daquele tempo, uso-os como termômetro da minha maturidade. Não sei se eu diria alguma coisa para mim no passado – a meu ver, esse acontecimento hipotético seria quase como uma catastrófica viagem no tempo (afinal, também não pode ser possível que eu diga algo que me faça desistir da literatura?).
Desde os nove anos escrevia poesia e insisti no gênero por um tempo, hoje sei que não faz parte do que sei escrever, mas foi essa insistência que me deu a oportunidade de desenvolver uma prosa mais poética, com ritmo, imagem e sonoridade.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um projeto de livros de sonhos, mas já está começado, só que em stand-by. Eu tenho o sono agitado, o que me faz sonhar muito, muito mesmo. Algumas dessas histórias oníricas ficam persistindo na memória ao longo do dia, depois que eu acordo, como se tivessem acontecido, é o que chamam de sonho vívido. Já traduzi do mundo mental e dei tratamento literário para muitas dessas narrativas-de-dentro e quero forjá-lo como o livro de sonhos de um escritor.
A segunda pergunta é muito difícil, quase uma armadilha. Pode ser que esse livro já exista e eu não tenha esbarrado por ele. Mas quando esbarrar, espero que o livro me devore inteiro e nunca mais de devolva para o lado de cá.