Marcio Fernando Campos é poeta e escritor, autor de “9 mm” (poemas e contos curtos), “Ato Falho II” (poemas), “Ato Falho I” (poemas) e “∞” (poemas e contos circulares).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia sempre começa com duas xícaras de café puro e cinco cigarros em média (consumidos em vinte minutos, aproximadamente). Quando não há este ritual inicial, tenho a impressão de que o dia nem existiu. Faz mais de vinte anos que o mantenho.
Literariamente falando, considero a manhã o pior momento para escrever algo. Odeio a sensação de “tábula rasa” na qual a cabeça se encontra em tal período do dia, então o aproveito para ler.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu gosto muito de escrever de madrugada, o que depois de voltar para São Paulo (morei cerca de três anos e meio em Sorocaba) e voltar a trabalhar no horário socialmente padrão (trabalho numa livraria atualmente), acabou se tornando um martírio. Desenvolvo boa parte da minha escrita na máquina de escrever e é difícil as pessoas aceitarem o barulho que ela faz num momento em que (supostamente) todos deveriam estar dormindo.
Os últimos seis meses que passei em Sorocaba, eu morava sozinho e foi de fato o momento em que desenvolvi melhor a minha escrita e onde acabei encontrando o meu ritual ideal. Como estava trabalhando de barman na época, acabava voltando para casa entre meia-noite e duas da manhã. Assim que chegava em casa, ligava o som em um volume que não incomodasse os vizinhos e ia preparar o jantar. Após a refeição, o ritual começava e era composto basicamente de uma garrafa de Ypioca Fogo Santo (e um copo de dose), de um a dois maços de cigarro (e o pote de azeitona em tamanho médio que eu usava como cinzeiro), a máquina de escrever e muito papel sulfite. Se o objetivo era a poesia, as músicas que compunham o ambiente não podiam ser cantadas (geralmente colocava jazz nessas ocasiões); se o objetivo era prosa, podia ser qualquer música pois presto muito mais atenção no ritmo que a máquina de escrever me traz do que na música em si.
Com esse ritual a escrita geralmente ia das três às sete da manhã.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não trabalho com metas, pois isso me faz lembrar uma empresa e qualquer coisa que me faça lembrar ordenações sociais para que as coisas supostamente funcionem me brocham. Costumo trabalhar minha escrita em períodos concentrados de acordo com os projetos que vão surgindo na minha cabeça e, ao final, lendo tudo conforme foi ordenado e onde chegou, decido se vou lançá-los ou não (ou seja, acabo descartando muita coisa).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A maior parte do meu processo de escrita acontece na minha cabeça. Quando uma ideia chega e vai tomando forma, só lanço no papel quando ela já está praticamente pronta. Seja qual for a forma de escrita (prosa ou poesia), quando começo a escrevê-los já estou certo de qual será o final e já pensei nos meandros que levam até lá.
Só tomo notas de frases e ideias quando acho que dá para desenvolver algo muito bom a partir dali e sinto que vai me escapar, mas é raro. E, nesses casos, anotar uma frase já me faz lembrar a ideia inteira.
Quanto ao processo pesquisa/escrita, comigo funciona ao contrário. Geralmente parto mais do processo intuitivo da escrita e, se vejo que algo durante o processo exige pesquisa, anoto no próprio texto que ela é necessária e só a realizo no final.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sempre acreditei que procrastinar é maturar. Se uma pessoa não se deu ao trabalho de sentar e escrever aquilo que está dentro de sua cabeça, talvez o trabalho de fato não seja necessário ainda. Há textos meus que demoraram dez anos para sair do jeito que eu queria e sempre me lembro de ficar sentado horas a fio ou fazendo qualquer outra atividade não relativa ao texto em que pensava: “como você vai fazer para desenvolver o ponto x do texto?!” Lembro de uma frase de Charles Bukowski em que ele diz: “Onde quer que a multidão vá, corra na outra direção. Por séculos estiveram errados e sempre estarão errados”. Por isso, viver em um mundo que, por conta da tecnologia e da falsa sensação de que podemos fazer tudo de uma vez para ontem, acredita no falso lema de que “o instante é agora”, me faz sentir muito mais seguro na procrastinação.
Quanto às expectativas, esteja certo de que tudo o que eu quero é não atendê-las. Inicialmente, eu nem lançaria meus escritos porque, internamente, eu estava pouco me fodendo para o que as pessoas iam dizer sobre eles. Só que as poucas pessoas que os liam diziam gostar muito e que aquilo deveria ser publicado. Dessa forma, comecei a fazer as coisas funcionarem à minha maneira.
Com um empurrão primordial do Andy Alves (guitarra e vocal das bandas “The Name” e “Club America”), comecei a publicar os meus textos de forma independente em livretos com formato A6 e o preço módico que eu cobrava era mais para cobrir os custos da produção artesanal (sim, eu realizei todo o processo de escrita, revisão, impressão, montagem e acabamento) do que qualquer outra coisa. Sempre me importei com os textos e não com um possível reconhecimento.
Foi o lançamento destes livretos (há dois anos atrás) que começou a me fazer pensar em projetos longos… e isso só está acontecendo agora. Estou deixando tudo maturar por aqui: trabalhando em uma novela que exige um pouco mais de pesquisa agora (invertendo assim o processo que sempre segui de escrever primeiro e pesquisar depois), pensando num primeiro livro de poesia mais longo e comercialmente editado. Mas se tem uma coisa que eu não tenho é pressa.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
De duas a três vezes, apenas. Como disse anteriormente, quando vou escrevê-los já tenho na minha cabeça qual a linha que eles vão seguir e onde quero chegar com isso; logo, a primeira escrita já é feita com um princípio de revisão sumária.
Quando se faz necessária pesquisa para o texto, insiro as informações coletadas de uma forma que siga mais ou menos o tom que ele exige e depois só vou arrematando-o, numa última revisão, para que ele fique linear (aquele processo de cortar excessos e inserir fluidez). Adotei essa técnica de revisão para que as coisas funcionem melhor e para que não se torne algo perpétuo.
Nos primeiros textos lançados, algumas pessoas já haviam lido e dado uns pitacos, mas não era esse o objetivo. Hoje lido melhor com esse lance das pessoas lerem exatamente para enxergarem algum erro que eu não estou vendo, mas são poucas as pessoas para quem mostro.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Hoje me dou melhor com a tecnologia. Por conta de não conseguir escrever como gosto de fazê-lo, acabei adotando-a para conseguir fazer a escrita fluir. No caso da poesia, sempre prefiro fazer à mão nos caderninhos que carrego, mas, como nem sempre é possível, já fiz vários primeiros rascunhos no celular. Quanto à prosa, já comecei a aderir ao computador para fazê-los pois facilitam e muito o trabalho posterior.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Durante muito tempo fiquei me questionando de onde vinham minhas ideias e porque eu as aplicava da forma que faço em meus textos e creio que há um tempo atrás cheguei num denominador comum. Para além de minhas próprias experiências e da atenção que presto no cotidiano e nas conversas alheias (que pesam muito na hora de escrever) acabei chegando à conclusão de que o principal motor da minha escrita é a descrença; e aqui abrimos um leque de possibilidades.
Vivo rodeado de pessoas que acreditam num deus que me dá asco só de imaginá-lo. Creio que o amor (tão sonhado/idealizado por todos) é apenas uma forma de satisfazer o seu próprio ego e que a felicidade (status pleno que todos buscam em vida) não existe. São nessas teclas que bato quando vou escrever. Eu busco o limite dos sentimentos e ações humanas, tento colocar todo o desespero e a pequenez do humano no papel para que todos se situem em sua insignificância.
Partindo dessa ideia é fácil achar meios para se manter criativo. O desespero humano está em todos os lugares. Creio que se fosse para “fazer carinho” com a escrita, eu nem me daria ao trabalho.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mais mudou na minha escrita ao longo dos anos foi deixar de florear as coisas e tentar fazer algo mais fofo e começar a ser mais objetivo e direto com o que pretendo dizer. Comecei os meus escritos muito cedo e julgo isso um grande erro que cometi, pois quando se é muito jovem não discernimos bem o que se passa, tudo está muito à flor da pele ainda. Com o tempo, as leituras certas e as experiências vividas creio que seja mais fácil saber o que se pretende com a escrita. Hoje, muitas pessoas chamam o que escrevo de “literatura-porrada” e penso que deveria ter sido assim desde o início, mas tenho um certo orgulho da maturação que ocorreu no processo.
Se eu pudesse dar um conselho a mim mesmo nos primeiros anos de escrita seria: “larga essa porra dessa caneta e vai ler Augusto dos Anjos, Hermann Hesse e Jean-Paul Sartre, mas depois volte”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho um projeto de romance em mente que gostaria muito de desenvolver onde o suicídio é o mote principal, pois o tema me encanta muito. Uma anti-epopeia onde a humanidade se extingue por ter todos os seus mitos desmascarados e por se dar conta da sua insignificância (que sonho seria na vida real).
Quanto ao livro que eu gostaria de ler, penso que há tantos livros fantásticos no mundo que torço apenas para ser surpreendido cada vez mais e mais. Não consigo pensar em um específico que não tenha sido escrito.